01 Junho 2022
A guerra mostra, mesmo em época ecumênica (ou pós-ecumênica), como é difícil para as Igrejas resistir à atração fatal das paixões nacionais.
A opinião é do historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 31-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em fevereiro de 2009, havia um clima de festa debaixo das abóbadas da grandiosa Catedral do Salvador, em Moscou. Era a entronização do Patriarca Kirill, na presença de Medvedev, então presidente da Federação Russa, e de Putin, primeiro-ministro (antes de retomar o cargo presidencial), além do presidente bielorrusso e líder da família Romanov.
Na época, o primeiro patriarca eleito após o fim do comunismo afirmou que, sobre os seus ombros, recaía a tarefa de unir os povos ortodoxos, outrora parte do império e depois da URSS, mas agora divididos entre vários Estados. O patriarca se candidatava a referência do mundo russo-ortodoxo em uma perspectiva supranacional em relação ao catolicismo e à Europa.
Parecia uma linha coerente de um discípulo – como Kirill – do Metropolita Nikodim, amigo de Roma e reformador, falecido em 1978 no Vaticano, durante um encontro com o Papa Luciani. Em 2012, Kirill foi à Polônia para uma surpreendente visita de reconciliação entre poloneses e russos.
No entanto, ainda em 2007, Putin havia enunciado a sua doutrina internacional na Munich Security Conference, acusando os Estados Unidos de ameaçarem a Rússia e de alimentarem conflitos. Putin, que queria reunificar o “mundo russo”, invadiu a Geórgia em 2008 e anexou a Crimeia em 2014. O programa do patriarca foi abalado pela política russa até a separação oficial da Igreja ucraniana de Moscou, depois de mais de três meses de invasão russa à Ucrânia, um trauma que tornou não mais aceitável o vínculo com o Patriarcado de Moscou. O Concílio de 27 de maio condenou a guerra e pediu aos russos que negociassem com Kiev, discordando do apoio total de Kirill a Putin.
Ele também proclamou a “plena autonomia e independência” da Igreja Ortodoxa Ucraniana de Moscou. Não se tratou de um cisma, mas sim do fim do vínculo especial com Moscou. Na liturgia, o Metropolita Onufry, como primaz de uma Igreja autocéfala, recordou os outros primazes, inclusive o de Moscou, colocando-se no mesmo nível.
Para Moscou, é uma perda séria: uma Igreja grande, muitos padres e monges, a maior parte dos ortodoxos ucranianos. Os outros pertencem à Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana, reconhecida pelo Patriarcado de Constantinopla em 2018 e excomungada por Moscou.
Kirill, em 2014, após a invasão da Crimeia, tentou assumir uma posição “imparcial” na questão, diferenciada do governo, e não participou, no Kremlin, do ato de anexação da península à Rússia. Mas, com a invasão russa da Ucrânia, o patriarca não acolheu os apelos do metropolita de Kiev, Onufry, aliás não um nacionalista extremista, dirigido a ele e a Putin.
Pelo contrário, Kirill deu pleno apoio à política russa, suscitando protestos no cristianismo ocidental. Ele o fez de acordo com o modelo dos seus antecessores durante a Segunda Guerra Mundial, com Stalin, ou a guerra no Afeganistão. Mas Kirill era, até ontem, também patriarca dos seus “filhos espirituais” ucranianos, contra os quais a Rússia combate.
Para além das suas posições subjetivas, a Rússia de Putin em guerra está se aprofundando em um “modelo soviético”, em que estão previstos até 15 anos de prisão para quem criticar a “operação militar” em andamento. Quais são os espaços de autonomia do patriarcado, que sempre esteve tão ligado ao Kremlin, que – por exemplo – tem promovido a construção de igrejas russas em tantas partes do mundo?
A Igreja russa se “sovietiza” mais do que parece, mas muitos bispos se calam, apesar do clima nacionalista, favorecido por uma hábil e distorcida informação de Estado. A reação do Patriarcado de Moscou às decisões de Kiev, no entanto, foi prudente, afirmando que a comunhão entre as duas Igrejas permanece.
Agora, na Ucrânia, abre-se um novo jogo: a relação entre ortodoxos (ex-russos) e autocéfalos (que não são reconhecidos, por serem ordenados por bispos excomungados). Depois, há a questão da relação com a Igreja Greco-Católica (com o mesmo rito, mas unida a Roma), menos de 10% da população, de inspiração patriótica. Talvez a guerra possa desencadear novos processos de unificação no quadro da identidade ucraniana.
É certo que a guerra mostra, mesmo em época ecumênica (ou pós-ecumênica), como é difícil para as Igrejas resistir à atração fatal das paixões nacionais.
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Ortodoxos contra ortodoxos, divididos pelo nacionalismo. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU