"Refletir sobre a cruz, sempre de novo, de modo teológico, psicológico, sociológico e político; essa é a tarefa de cada cristão. Precisamos refletir sobre este símbolo constantemente de maneiras novas e diferentes desenvolvendo uma nova sensibilidade diante da cruz", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro de Anselm Grün, A cruz: a imagem do ser humano redimido (Paulus, 2018, 128 p.).
A pergunta sobre a cruz leva-nos a temas essenciais de nossa existência humana, a perguntar como lidamos com a nossa fragilidade, com a nossa imperfeição e com o nosso dilaceramento interior. No símbolo da cruz, os cristãos pensaram não só o sofrimento de Jesus, mas tematizaram esse símbolo também as saudades e anseios mais profundos dos seres humanos e que estavam vinculados com a cruz.
Refletir sobre a cruz de modo simbólico, teológico, psicológico, político e sociológico – é a tarefa da obra: A cruz: a imagem do ser humano redimido (Paulus, 2018, 128 p.), escrita por Anselm Grün. O referido autor há muito tempo dedica seu trabalho teológico à cruz. Já durante seus estudos de teologia fascinou-se com a pergunta: por que veneramos a cruz com tanta intensidade, por que vinculamos nossa redenção justamente à cruz? Escreveu, por isso, sua dissertação de licenciatura sobre a redenção pela cruz na perspectiva do teólogo evangélico Paul Tillich. Na sua tese de doutorado, pesquisou o mesmo tema no teólogo católico Karl Rahner, na qual perguntou sobre visão acerca da cruz e da redenção pela cruz.
Capa do livro "A cruz: a imagem do ser humano
redimido" (Paulus, 2018, 128 p.), escrito por
Anselm Grün (Foto: Editora Paulus | Divulgação)
O livro estruturado em cinco (5) partes propõe uma nova reflexão teológica e espiritual sobre a cruz, para que possamos lidar de modo mais consciente com as muitas cruzes que vemos em nosso cotidiano.
Na primeira parte, intitulada: O símbolo da cruz (p. 11-31), Grün mostra que não foi o cristianismo que descobriu a cruz. Ao contrário, a cruz é um símbolo importante e todas as religiões, em todos os círculos culturais, a cruz é um símbolo da benção que as divindades dão ao ser humano, um símbolo de vida e de felicidade. Destaca, por isso, que independentemente da morte de Jesus na cruz, ela é um sinal de salvação, um sinal que nos indica a verdadeira vida, que deseja nos mostrar como a vida humana pode dar certo (p. 11). Neste sentido, o autor destaca que o escândalo da cruz tornou-se ao mesmo tempo o sinal da sabedoria de Deus, no qual se sintetizaram em uma única imagem os conhecimentos das Sagradas Escrituras e os conhecimentos da filosofia e poesia gregas (p. 12-14).
Nos Padres da Igreja, as abordagens da vida a partir da cruz ocupara um grande espaço. A cruz é vista como sinal universal de salvação (p. 14-21), ou seja, os pensamentos dos Padres da Igreja mostram que estes viam a cruz de maneira muito positiva. Para eles, a cruz não era em primeira instância um símbolo do sofrimento e da morte, mas um símbolo da vida, da vitória do amor sobre o ódio do mundo. Eles enxergam o efeito sanador, transformador e centralizador da cruz, e não se cansam de cantar os louvores da cruz e de bendizê-la em sempre novas imagens. Diante disso, Grün salienta que a espiritualidade da Igreja antiga era fortemente marcada pela cruz (p. 22-28), por isso, a Igreja antiga vinculou a simbologia da ressurreição à simbologia da cruz (p. 28-31).
O significado da cruz no Novo Testamento (p. 33-44) é o assunto abordado no segundo capítulo. Destaca-se que quem na Igreja primitiva mais se dedicou ao desenvolvimento de uma teologia própria da cruz foi o apóstolo Paulo (p. 33-36). Na cruz se mostra a força e sabedoria de Deus, isto é, na cruz torna visível a sabedoria de deus, que consiste justamente em seu amor que não exclui ninguém, mas que se volta especialmente às pessoas fracas e fracassadas. Para os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas a cruz é o sinal da salvação (p. 36-41): em Marcos a cruz é a virada das trevas para a luz, da impotência para novo poder, do ódio para o amor (p. 37), em Mateus, a cruz não só é uma imagem de não violência, mas também de reconciliação entre Deus e os seres humanos, entre céu e terra, entre rico e pobre, e entre os distintos grupos e povos (p. 37-39). Em Lucas, a cruz é a imagem daquilo que cruza e contraria diariamente o nosso caminho e nossa vida para quebrar as ideias erradas que construímos em relação a nós mesmos.
Nossas autoimagens devem ser esmagadas pela cruz, para que nós, nosso verdadeiro ser, não sejamos esmagados, mas possamos brilhar de modo cada vez mais claro e belo (p. 38-41). Por sua vez, o evangelista João conhece uma teologia da cruz totalmente diferente: a cruz é a plena realização da encarnação. A cruz é o momento em que mais brilha a glória de Deus, que ficou visível na Palavra que se tornou carne. A palavra se tornou carne, carne fraca e débil. A glória divina não brilha no poder exterior, mas justamente na debilidade, na impotência do amor humano (p. 41-44).
Na terceira reflexão, Grün trabalha a interpretação da cruz em Karl Rahner (p. 45-72). A união entre a teologia e a espiritualidade manifesta-se em Rahner de modo muito especial na cruz (p. 61). Por isso, Grün esclarece que em Rahner a teologia da cruz tem raízes na mística inaciana da cruz (p. 45). Dentre outros aspectos (p. 46-61), Rahner entende a cruz não só de maneira teórica, como o lugar de nossa redenção, mas também como a estrutura básica de nossa espiritualidade, como caminho para crescer cada vez mais na comunhão com Jesus Cristo. A cruz é o distintivo da existência cristã (p. 61-67), e torna-se para Rahner a imagem de nosso relacionamento muito pessoal com Jesus Cristo (p. 61).
Na cruz, as três virtudes divinas – fé, esperança e amor – alcançam sua realização plena, tornando-se por isso a imagem da vida cristã, de uma vida que se realiza em fé, esperança e amor e que procura, exatamente desse modo, realizar o espírito de Jesus Cristo (p. 62-63). A cruz é o caminho pelo qual a salvação chega a nós e transforma nossa vida (p. 63-65). Por fim, para Rahner, o Jesus pregado na cruz é o sinal do verdadeiro humanismo, a imagem do ser humano como Deus o pensou originalmente. Nele se manifestam os valores da verdadeira humanidade. A cruz impede que o ser humano se esquive da morte (p. 67-72).
O quarto capítulo (p. 73-94) discorre sobre outras tentativas de interpretações da cruz:
a) para o teólogo evangélico Paul Tillich a cruz é uma resposta a perguntas existenciais (p. 73-77), por isso esse teólogo refere-se à cruz como aquela que desempenha um papel importante no processo da superação da alienação. A cruz é especialmente o símbolo da submissão sob as condições da existência. Ao levar na cruz as últimas consequências autodestruidoras da alienação humana para a união com Deus, Cristo as supera. A vitória sobre a alienação é conquistada na cruz e exteriormente revelada na ressurreição (p. 73-74). Tillich refere-se também à cruz como a medida de nossa existência e de nosso pensamento (p. 75-77), pois impede que absolutizemos algo finito que o confundamos com Deus. A cruz é protesto contra cada absolutização do finito (p. 75), nos protege contra a dominação e a escravidão do finito (p. 76), e, nos capacita também a experimentar sempre de novo o incondicional, através de tudo o que é finito (p. 77);
b) para o teólogo luterano Jürgen Moltmann (p. 78-84), a cruz é centro de toda teologia que, para ele como luterano, pode ser somente teologia crucis, uma teologia da cruz (p. 79). Assim, para Moltmann a cruz têm três significados: a) é o auge do conflito de Jesus com a lei da graça e da liberdade e uma nova justiça de Deus; b) é a morte de um revoltoso contra o poder e a violência do Estado (relevância política da cruz); c) o grito de Jesus pelo Deus que o abandonou revela a cruz como um acontecimento entre Jesus e seu Deus, entre o Filho e o Pai. Esse grito de abandono é para Moltmann o ponto de partida para nosso discurso sobre Deus (p. 78). Na perspectiva da ressurreição a cruz é entendida como a irrupção da justiça de Deus, uma vez que, a cruz e a ressurreição visam responder à pergunta se os carrascos poderão triunfar para sempre sobre suas vítimas, ou se a vitória final porventura pertence à justiça de Deus (p. 79). Grün mostra ainda que para Moltmann a cruz é a revelação do Deus triúno (p. 80), esclarecendo que a cruz revela um Deus que ama e que, por isso, é vulnerável e deixa-se machucar pelos seres humanos. Deus não está entronizado acima do mundo, mas se deixa envolver no sofrimento deste. A cruz é sinal de que Deus sofre junto dos seres humanos, de que o próprio Deus experimenta a dor do abandono e da morte (p. 80-81). Por isso, Moltmann desenvolve não só uma teologia da cruz, mas também uma anthropologia crucis, uma antropologia da cruz que reconhece a natureza do ser humano ao olhar a cruz de Cristo. A cruz é a revelação do Deus verdadeiro e a libertação do ser humano para a humanidade (p. 82-84);
c) para o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (p. 84-94), a cruz é um caminho de individuação, da autorrealização humana, ou seja, no curso de sua vida cada ser humano precisa passar do ego, que é o âmago consciente de sua pessoa, para o self, o centro mais íntimo da pessoa, que inclui simultaneamente o consciente e o inconsciente (p. 84-85). Assim, como a cruz desempenhou um papel importante no caminho da transformação de Jesus, também nosso caminho da individuação passa pela cruz (p. 85). A cruz tem para Jung vários significados no processo de individuação: é um símbolo do sacrifício (p. 86), o símbolo do sofrimento (p. 86-89); o símbolo da contrariedade e oposição (p. 89-93), a imagem da reconciliação dos opostos (p. 93-94). Em todos estes distintos aspectos da cruz, trata-se para Jung sempre do efeito sanador e centrador sobre o self do ser humano (p. 85).
Por fim, na quinta reflexão Grün apresenta alguns aspectos daquilo que a cruz pode significar para nós, especialmente hoje (p. 95-115). Em primeiro lugar a cruz é um protesto contra o esquecimento do sofrimento (p. 96-104), é um lembrete do sofrimento de pessoas estranhas e como expressão do sofrimento que surge em nossa própria vida liberta-nos da ilusão de um mundo isento de sofrimento (p. 103). Quando o sofrimento é suprimido, quando ele se torna um desaforo para nós, essa atitude leva à brutalização da sociedade, ou seja, leva à necessidade de “desfazer-se” do sofrimento como nos desfazemos de detritos. E a cruz nos lembra de que não podemos fechar os olhos diante do sofrimento (p. 101-103).
Em segundo lugar a cruz é uma imagem do verdadeiro ser humano (p. 104-111), ela nos mostra o caminho da verdadeira encarnação. Faz parte da encarnação dizer sim aos opostos e contradições dentro de nós. Sendo seres humanos, pertencemos ao mesmo tempo à terra e ao céu. Estamos estendidos entre luz e trevas, entre Deus e ser humano, entre homem e mulher, entre altos e baixos, entre o bem e o mal. O ser humano é cruz (p. 105), e, justamente por estarmos fincados na terra, precisamos nos estender para o céu e, como seres carregados de paixões e pecados, precisamos procurar por Deus. Não podemos nos desfazer dessa tensão (p. 106).
Em terceiro lugar a cruz é um protesto contra toda a absolutização de poderes finitos (p. 111-115), a cruz abre uma brecha nu mundo fechado sobre si mesmo: cada partido, cada entidade secular, cada associação porta dentro de si a tendência para a absolutização (p. 112-113). Quando o mundo fica abandonado a si mesmo, ele têm a tendência de comportar-se como se fosse absoluto, de tornar-se brutal e cruel. A cruz quer nos lembrar que a presença amorosa e sanadora de Deus nos cerca por todas as partes, que não estamos abandonados e entregues a nós esmos e a pessoas que querem exercer seu poder sobre nós, mas que podemos experimentar em meio ao mundo secularizado o amor de Deus (p. 114-115).
Refletir sobre a cruz, sempre de novo, de modo teológico, psicológico, sociológico e político; essa é a tarefa de cada cristão. Precisamos refletir sobre este símbolo constantemente de maneiras novas e diferentes desenvolvendo uma nova sensibilidade diante da cruz. Diante disso, Anselm Grün chama a atenção para o fato de que na discussão sobre a cruz encontramos muitos preconceitos arraigados: muitas pessoas acusam o cristianismo de ter glorificado o sofrimento unilateralmente, através do símbolo da cruz.
As pessoas não procuram entender o que a cruz significa verdadeiramente. Por isso, precisaríamos de uma discussão honesta, na qual alguém não pede simplesmente a informação sobre o que a arte nas representações da cruz queria dizer, mas na qual se pergunta também pessoalmente o que a cruz tem a nos dizer hoje e o que ela quer operar dentro de nós quando a contemplamos.
As reflexões propostas por Anselm Grün ajudaram o leitor a alargar horizontes de compreensão. Um excelente material para meditação. O conteúdo ajudará o leitor a perceber que cada compromisso e engajamento é somente possível quando aceitarmos com ele a cruz. Nossa vida dará certo somente quando aceitarmos a cruz que está colocada sobre nós como seres humanos. A cruz quer nos proteger das ilusões que o mundo quer nos impor constantemente. A cruz é o convite para a vida verdadeira, o convite para o verdadeiro humanismo. A cruz vigia sobre a liberdade em relação a tudo que é finito. Na cruz decidem-se nossa imagem de Deus e nossa imagem do ser humano. A cruz nos impede de contentar-nos com uma imagem inofensiva de Deus, uma imagem da qual foram coados todos os elementos do tremendum e fascinosum, daquilo que, ao mesmo tempo, assusta e atrai. E a cruz revela-nos onde partimos de autoimagens erradas, onde seguimos uma imagem do ser humano que já não tem nada a ver com a humanitas verdadeira, como aquela que nos apareceu em Jesus Cristo. A cruz mostra-nos a imagem do verdadeiro ser humano, o ser humano misericordioso, simpatético, vulnerável. E somente quando reconhecermos na cruz a imagem do verdadeiro ser humano, podemos conviver humanamente nosso mundo de hoje.
Esta obra mostra, portanto, que a cruz é um sinal do amor de Deus e um sinal da salvação do ser humano redimido.