07 Abril 2022
Apesar dos desvios de uma tradição muito persistente (e ainda hoje não totalmente superada), a cruz não deixa de ser um evento fundamental da história da salvação: o mistério pascal é mistério de morte e de ressurreição.
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado na revista Il Gallo, de abril de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A excessiva relevância atribuída por muito tempo à cruz na proposta do mistério cristão – pensemos apenas na centralidade do crucifixo nas igrejas e no caráter sacrificial atribuído no passado à celebração eucarística – provoca hoje, em reação, a sua rejeição por muitos fiéis, que lhe atribuem (e não equivocadamente) a razão principal de uma visão do cristianismo como religião do sacrifício e da autoaniquilação (cf. G. Ferretti, “Spiritualità cristiana nel mondo moderno. Per il superamento della mentalità sacrificale”, Ed. Queriniana, 2016).
A cruz parece ser para muitos um símbolo anacrônico não só por motivações religiosas – o Papa Francisco convida repetidamente a olhar para o cristianismo como uma religião da alegria – mas também porque contrasta com uma exaltação do gozo da vida que, embora com aspectos de inegável ambivalência devido a uma cultura hedonista generalizada, é, em todo caso, expressão de um legítimo desejo humano.
Por outro lado, o uso que se fez dela (e ainda se faz) em nível civil contribuiu, em medida consistente, para aviltar o significado da cruz. A presença do crucifixo nos locais públicos tornou-se progressivamente, graças ao avanço do processo de secularização, um verdadeiro sinal de contradição.
A indiferença de muitos, que o consideram um simples objeto decorativo, é acompanhada pela discordância explícita de um círculo cada vez mais amplo de pessoas que, reivindicando a laicidade do Estado, rejeitam, por motivos não injustificados, aliás, toda ingerência religiosa, incluindo a presença dos símbolos sagrados nos locais públicos.
Essa atitude torna-se hoje ainda mais plausível diante do avanço de uma sociedade multirreligiosa como consequência do constante aumento do fenômeno migratório. A rejeição radical do mundo judaico, que considera a cruz uma ofensa ao próprio sentimento religioso, está associada à do mundo muçulmano, cuja consistência quantitativa cresceu exponencialmente nas últimas décadas na Itália.
Diante dessa situação, é legítimo se perguntar, portanto: ainda faz sentido apresentar a cruz como um elemento constitutivo da mensagem cristã? E, se ela tem um sentido, em que consiste?
Não se pode negar que a cruz exerceu (e em alguns aspectos ainda exerce) um papel excessivo na proposta que, em diversos níveis, se fez (e se faz) do mistério cristão: da liturgia à catequese, da homilética à teologia.
Essa sua preeminência teve, inegavelmente, repercussões significativas sobre o modo de interpretar a mensagem cristã nas diversas situações da existência cotidiana. A apresentação do cristianismo como religião do sacrifício implicou (e para alguns ainda implica) a adoção de estilos de vida inspirados em uma ascese centrada na mortificação do desejo, na renúncia a todas as formas de prazer e na exaltação da dor e do sofrimento – o chamado “dolorismo” – como vias privilegiadas de resgate da condição de pecado na qual o ser humano e o mundo estão imersos e, portanto, como possibilidade de alcançar a salvação.
Na raiz de tudo isso, está, por um lado, uma concepção pessimista do ser humano, que tem a sua fonte original na corruptio naturae do protestantismo luterano, mas que também está presente em algumas correntes do catolicismo, principalmente no jansenismo, que influenciou amplamente a ética e a espiritualidade modernas.
Por outro lado, há a imagem de um Deus justiceiro, que desperta temor e impõe uma rígida submissão à sua vontade como caminho obrigatório para “merecer” a bem-aventurança eterna.
Em ambos os casos, emerge uma visão deformada do cristianismo, que é a religião do Deus-caridade (cf. 1Jo 4,8), o Deus da misericórdia, que exorta Pedro a perdoar não só sete vezes, mas até setenta vezes sete as culpas do irmão (Mt 18,22) e que confere aos seres humanos, tornados filhos no Filho, a possibilidade de aderir ao mandamento do amor, gastando a própria vida ao serviço constante dos irmãos (“Vejam que prova de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus. E nós de fato o somos! [...]. Ninguém jamais viu Deus. Se nos amamos uns aos outros, Deus está conosco, e o seu amor se realiza completamente entre nós” (1Jo 3,1; 4,12).
Apesar dos desvios de uma tradição muito persistente (e ainda hoje não totalmente superada), no entanto, a cruz não deixa de ser um evento fundamental da história da salvação: o mistério pascal é mistério de morte e de ressurreição.
Mas – é bom lembrar – a morte ignominiosa do Filho de Deus na cruz, longe de ter de ser considerada um ato reparatório (“pagar o preço”) destinado a resgatar o ser humano da condição de inimizade para com o Pai, deve antes ser entendida como um grande ato de amor. Ou, melhor, como o supremo ato de amor, que consiste em dar a vida por aqueles que ainda estão sob a escravidão do pecado: “De fato, quando ainda éramos fracos, Cristo, no momento oportuno, morreu pelos ímpios. Dificilmente se encontra alguém disposto a morrer em favor de um justo; talvez haja alguém que tenha coragem de morrer por um homem de bem. Mas Deus demonstra seu amor para conosco porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,6-8).
Tudo isso sem esquecer que a cruz não é a última meta, mas apenas a penúltima, e que ela só recebe o seu pleno significado no evento da ressurreição, que é – como Paulo nos recorda muitas vezes – o verdadeiro objeto da nossa fé. Graças a tal evento, a morte está definitivamente vencida, e a cruz torna-se a passagem obrigatória para ter acesso à verdadeira vida que é participação na vida do Ressuscitado.
A experiência cristã, que envolve a inserção do fiel no mistério pascal, assume precisamente este dinamismo: trata-se de morrer para renascer, de perder a própria vida para encontrá-la: “Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 10,39).
A cruz, como expressão do amor divino, é, portanto, uma peça essencial do mistério cristão, que não pode ser banida, mas deve ser integrada em um quadro mais amplo, que a reconduza à sua verdadeira função.
Por outro lado, nela se reflete um aspecto relevante da condição humana e, mais em geral, de toda a realidade: a caducidade devido à origem criatural. A vida está sujeita, em todas as suas expressões, a um processo por etapas sucessivas que culminam na morte. O enorme progresso científico-tecnológico realizado nas últimas décadas pelo ser humano o iludiu de que pode vencer toda forma de negatividade; foi-se afirmando, assim, uma espécie de prometeísmo, que não deixa espaço para a percepção da fragilidade e do limite que pertencem constitutivamente à natureza humana.
A recente pandemia, infelizmente ainda não derrotada, tornou evidente esse estado de coisas. Trouxe à tona uma situação de grande precariedade que era (e ainda é) motivo de profundo desconforto, de um mal-estar existencial desestabilizador. A gravidade objetiva do fenômeno se associou em muitos casos a uma sensação de insegurança e de medo devido ao colapso das expectativas nas quais se depositava a própria confiança; ao desaparecimento, de modo traumático, da esperança.
O que se torna transparente, portanto, é a consciência de que morte e sofrimento pertencem, de forma constitutiva, à condição humana e, por isso, não podem ser completamente debelados. Isso não significa que, diante deles, deva-se assumir uma atitude de mera passividade, ou seja, de renúncia a qualquer forma de reação.
O esforço feito pela medicina, com resultados cada vez mais eficazes, para reduzir a dor física e o sofrimento psíquico – basta pensar nos enormes passos dados nas últimas décadas no campo da terapia da dor –, assim como para prolongar a vida debelando doenças que antes eram letais, é um dado precioso (e irrenunciável) no caminho da promoção humana. Acima de tudo, deve-se resistir ao mal com todas as próprias forças, comprometendo-se sempre que possível a derrotá-lo.
Por outro lado, apesar desse compromisso necessário, não se pode deixar de reconhecer com realismo que tal derrota nunca poderá ser total; que sofrimento e morte, embora reduzidos, continuarão subsistindo.
Aqui entra em jogo o mistério da cruz, com o seu valor redentor. A possibilidade de o ser humano se render a essa situação, depois de ter lutado até o fim, não renunciando a cultivar a esperança, está ligada não apenas a nobres motivações humanas – o sofrimento pode se tornar uma oportunidade (e muitas vezes se torna) para redimensionar totalmente necessidades acessórias (às vezes fúteis) e redescobrir aquilo que realmente importa –, mas também à tomada de consciência do resgate que dela pode advir como participação na cruz e, portanto, plena inserção no mistério pascal que leva à ressurreição.
A relação entre “resistência” e “rendição”, para usar as expressões do título dado ao diário de Bonhoefer na prisão, é uma relação delicada. Se as duas atitudes descritas não forem mantidas devidamente em equilíbrio, corre-se o risco de incorrer, por um lado, em uma espécie de “mística do sofrimento” totalmente estranha à mais genuína tradição cristã; e de renunciar, por outro lado, a uma justa valorização do sofrimento como experiência que nos imerge no coração do mistério cristão.
A “cruz” continua sendo, assim, “sinal de contradição” no sentido mais elevado. O recurso a ela deve ocorrer atribuindo-lhe o papel que lhe cabe, o de ser o caminho que conduz à plenitude da vida na glória da ressurreição.
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A cruz, sinal de contradição. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU