03 Janeiro 2022
"Hoje, num tempo de inúmeras cruzes, onde somos obrigados a ouvir constantemente a melodia de gritos sufocados e a contemplar uma paisagem de sofrimento humano que nos causa horror e vergonha do que nos tornamos, seria bom retomarmos a Cruz de Cristo em seus aspectos de perigo e subversão, pois é só assim que Deus poderá nos resgatar do inferno que entramos", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
A história humana é, inegavelmente, marcada pela Cruz e pelas cruzes. A Cruz remete para a existência de Alguém que oferece o caminho da humanização. Alguém que viveu com intensidade, fiel a uma causa. Apesar de ter se confrontado com a normalidade da violência de um império, não desistiu de levar a cabo a sua missão, aquela de sarar as feridas, de aliviar os fardos e de mostrar o caminho de uma vida plena. E a Cruz Dele tornou-se um lugar-experiência irrenunciável para quem almeja assumir o seu estilo de vida. A Cruz de Jesus é a fonte inesgotável do poder-serviço, do perdão imerecido, de uma humanidade plena e de um amor universal. Essa Cruz pode, sim, restaurar o mundo e dar sentido ao desespero humano que busca um sentido.
No entanto, existem as cruzes. São responsáveis pela injustiça, a perseguição, o poder irresponsável: se inserem no mistério do sofrimento e se enraízam lá onde o mau pode se alastrar como erva daninha. As cruzes são causadas devido à ganância do ser humano e por causa de desejo mal-intencionado de pôr-se no centro de tudo à custa das vidas inocentes. Estão espalhadas e fincadas em todas as partes: sob os viadutos, nas ruas, periferias, na dor existencial da classe média, no fechamento das fronteiras, na irresponsabilidade com a política. Enfim, o lugar privilegiado onde as cruzes são plantadas sem qualquer escrúpulo é o porão da humanidade, onde está o resto indesejado, a massa podre e o escuro da solidão. Daqui ecoam os gritos sufocados, sem articulação de palavras, sem uma verbalização da dor, pois a muito se perdeu a capacidade de usar a linguagem para sinalizar o socorro que tanto imploram.
As cruzes são, sem dúvida, a criação que geme e grita por dias melhores. Sem a Palavra que penetra as inteligências, as vítimas das cruzes da história representam a estética do feio que não atrai por suas belas formas, mas geram repulsa e escárnio. Mas vivem, na própria carne, a Paixão do Senhor e se transformam numa parábola que narra o lado obscuro do ser humano, ou seja, mostram – sem nada dizer – até onde o ser humano pode aflorar sua bestialidade e perder sua dignidade. As cruzes são, portanto, o ser corrompido, a carência do bem, o irracional, tudo aquilo desprovido de verdade e de belo.
No entanto, as cruzes adquirem um novo significado na Cruz de Jesus. Todo o sofrimento causado é combatido com resiliência e esperança. As noites frias do porão são aquecidas com uma presença compassiva, marcada por mãos e rostos concretos. A Cruz de Jesus é a mensagem mais perigosa e subversiva de toda a história. É perigosa: revela os mecanismos que estão por trás das formas desumanas. Desmonta a máquina de produção daqueles que vivem à custa de sangue inocente. Põe em crise as seguranças, a sede de poder tirano, a rotina de bem-estar dos que se acostumaram a viver sufocando vidas inocentes.
A Cruz de Cristo é tão perigosa que, mesmo aqueles que a usam como símbolo religioso, são atormentados à noite no reclinar da cabeça sobre o travesseiro, quando a consciência deles acusa que não cumpriram o dever de modo justo, quando sabem que mentiram para ganhar proveito à custa de gente simples e ignorante. Por isso, o perigo da Cruz tem alcance moral cada vez que penetra o profundo da consciência e a corrige, convidando-a a tomar o caminho da verdade.
Mas a Cruz de Cristo, ao combater as cruzes, também é subversiva. Jesus trouxe ao palco aquela camada da sociedade que não tinha o direito a desfrutar de uma vida mínima, ou seja, trouxe à luz aqueles que acreditavam que viver não valia a pena. Para Jesus a Cruz não confirma a política e a religião reinantes, era claro para ele que estas não eram fiéis à vontade de seu Deus. Por isso, Ele dá um aspecto messiânico à existência, ou seja, debruça-se sobre o sofrimento alheio e combate-o a partir de gestos e ações de compaixão e misericórdia. Esta atitude messiânica de Jesus diante das vidas anônimas e ocultas que foram relegadas ao esquecimento, não aprimora nem aperfeiçoa a política de César nem a religião de Caifás e Anás, mas as destrói pela raiz!
Hoje, num tempo de inúmeras cruzes, onde somos obrigados a ouvir constantemente a melodia de gritos sufocados e a contemplar uma paisagem de sofrimento humano que nos causa horror e vergonha do que nos tornamos, seria bom retomarmos a Cruz de Cristo em seus aspectos de perigo e subversão, pois é só assim que Deus poderá nos resgatar do inferno que entramos.
Pela Cruz, a vida!
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Cruz e cruzes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU