13 Abril 2011
No último dia do curso Ler Paulo hoje. Um estudo em diálogo com filósofos contemporâneos, dentro da programação da Páscoa IHU 2011, o teólogo suíço Daniel Marguerat convidou os participantes a entrar pela "pequena porta", pela "porta dos fundos" do pensamento paulino: a sua mística.
Para o professor emérito de Novo Testamento da Universidade de Lausanne, Suíça, e ex-pastor de Igrejas Evangélicas Reformadas da Suíça, a questão é refletir sobre de que vivia o homem Paulo em sua fé. Como ele alimentava, vivia e manifestava a sua fé pessoal?
Em primeiro lugar, afirmou, é preciso perceber como Paulo permaneceu fiel como judeu-cristão. Nas epístolas, vê-se que ele vivia uma espiritualidade mística assim como Jesus a viveu.
O ex-coordenador da Faculdade de Teologia da Universidade de Lausanne e ex-presidente da Studiorum Novi Testamenti Societas e da Federação das Faculdades de Teologia de Genebra-Lausanne-Neuchâtel abordou essas temáticas a partir dos estudos do teólogo judeu norte-americano Daniel Boyarin (A Radical Jew: Paul and the Politics of Identity, University of California Press, 1994). A partir dessa obra, Marguerat desenvolveu quatro pontos centrais ao longo do último dia do curso: os traços da mística de Paulo em suas cartas; a definição do que é mística; como a espiritualidade de Paulo se insere na mística; e como Paulo subverte a mística a partir do conceito de mística de Cristo, em contraponto à mística de Deus.
Partindo de uma definição generalista de mística como "consciência imediata da presença do divino", Marguerat, então, ofereceu alguns pontos mais aprofundados do que podemos entender como a experiência do sagrado em Paulo. Em primeiro lugar, a partir de São Tomás de Aquino, mística é "cognitio Dei affectiva seu experimentalis", ou seja, um conhecimento de Deus afetivo e experimental.
Mas, para grande parte das religiões, a mística é também uma união entre divino e humano, que torna "uno" o que é separado: é comunhão, união, visão do divino na contemplação. Citando o pensador judeu Gershom Scholem, Marguerat indicou ainda que a mística pode ser entendida como um fenômeno de interiorização e aprofundamento da consciência religiosa, de ordem mais individual do que comunitária. Mas não é um fenômeno isolado: o sujeito da experiência mística sempre é tocado, alterado, transformado, dissolvido. Para Marguerat, sempre há marcas de alteração do "eu" místico.
Paulo, o místico
Os traços presentes nas epístolas sobre a mística de Paulo referem-se principalmente a também quatro elementos. O primeiro é, segundo Marguerat, que Paulo fala línguas, um fenômeno conhecido como glossolalia, que tem manifestações pré-cristãs, tanto na cultura greco-romana quanto judaica, de acordo com o teólogo. Em síntese, é uma manifestação e "invasão" do divino em sua pessoa, o que provoca uma linguagem desarticulada, também descrita como "língua dos anjos" (I Co 13, 1).
Porém, em Paulo, a glossolalia requer uma interpretação em linguagem compreensível, e, por isso, o apóstolo a subordina à profecia, a submete a uma finalidade: a compreensão e o proveito de todos. "Aquele que fala línguas edifica-se a si mesmo, ao passo que aquele que profetiza edifica a assembleia. Eu desejo que todos vós faleis línguas, mas prefiro que profetizeis" (I Co 14, 4-5). A finalidade é comunitária, para a edificação de todos, afirmou Marguerat. "Em uma assembleia, porém, prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência para instruir também os outros, que dizer dez mil palavras em línguas" (I Co 14, 19).
Mas, segundo o teólogo, Paulo vai além, subvertendo a concepção da glossolalia como uma elevação da linguagem humana à linguagem angélica. O que ocorre, segundo Paulo, é, ao contrário, o Espírito que desce às profundezas das fragilidades humanas, auxiliando o fiel a pedir sua salvação, junto com toda a criação, por meio de "gemidos inexprimíveis" (Rm 8, 26). Assim, afirmou Marguerat, a glossolalia não é mais um movimento místico ascendente, mas sim descendente: eis a subversão paulina.
Outra característica da mística paulina são os "sinais, prodígios e atos de poder", ou seja, os "sinais do verdadeiro apóstolo" (II Co 12, 12) enquanto "curador carismático", seus atos de cura e de exorcismo, explicou Marguerat, que estão ligados ao seu arrebatamento ao "terceiro céu" (II Co 12, 2-9), o lugar do paraíso para a tradição mística judaica. Caberia ler todo o trecho citado, como fez Marguerat no curso, pois aí se percebe o núcleo da experiência extática de Paulo, a dissociação do corpo, o distanciamento do "eu", o arrebatamento aos céus e a consequente alteração do sujeito.
Mas essa experiência de arrebatamento não é concebida como uma performance bem executada, ou que ocorre pelo bom desempenho místico de Paulo: Deus se revela na fragilidade ("é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder", v.9). Aí encontra-se, segundo Marguerat, a relação daquilo que chamou de "mística do sofrimento" com a teologia da cruz: se Deus revela a sua força no corpo perdido de seu Filho na cruz, ele também revela a sua força no corpo frágil da testemunha. E essa contra-experiência de arrebatamento celeste em Paulo é demarcada pelo "espinho na carne" (v.7), ou seja, a experiência mística se manifesta não mais no céu, mas na terra, na existência carnal do apóstolo.
Por último, explicou Marguerat, Paulo tem "visões e revelações" (II Co 12, 1) sobre o Senhor, como no caminho de Damasco, que são fundamentais para a sua vocação apostólica. O teólogo analisou o trecho de Ga 2,19-20, em que Paulo interpreta a experiência de Damasco. Nesse trecho, o apóstolo afirma: "Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim". Marguerat, então, citou Keiji Nishitani, pensador japonês do budismo zen, que questionou: se não é Paulo que fala aqui (já que "não sou eu que vivo"), quem fala então? Aí manifesta-se, afirmou Marguerat, a profundidade da experiência mística de Paulo: a mudança, a dissolução do sujeito, do "eu" paulino. Agora, Cristo é o novo sujeito de Paulo.
Mas, além disso, ocorre uma nova subversão: aquilo que Marguerat chamou de "democratização da mística": na mesma carta aos cristãos da Galácia, nos versículos imediatamente anteriores, Paulo usa o pronome "nós". Portanto, a experiência mística vivenciada por Paulo não é um acontecimento exclusivo do apóstolo, mas reveste-se mais amplamente da assinatura de toda a comunidade cristã. Gera-se uma comunhão mística.
Mística da Paixão
Para Marguerat, o que se percebe mais profundamente na experiência espiritual paulina é o que ele chamou de "mística da Paixão", ou seja, a comunhão com Cristo no sofrimento ("fui morto na cruz com Cristo", diz o apóstolo em Ga 2, 19). Por meio do sofrimento da cruz – "que não tem nenhuma virtude em si mesmo", esclareceu Marguerat, distanciando-se de qualquer concepção dolorista ou masoquista da morte de Cristo –, revela-se a face incontornável do poder de Deus. A cruz subverte o imaginário de um Deus onipotente e revela um Deus que se manifesta no silêncio de uma morte solitária. Como diz o apóstolo aos cristãos de Corinto, "para aqueles que se salvam, para nós, [a cruz] é poder de Deus". Assim como em Cristo, sua miséria humana, sua fragilidade, seu corpo fraco, portanto, tornam-se o lugar da manifestação de Deus.
Assim, em suma, encerrou Marguerat, Paulo foi, sim, um místico, assim como também foram místicos o próprio Jesus, Estevão, o protomártir, Filipe, o evangelista, João, o vidente do Apocalipse. Mas sua originalidade, afirmou, está em interpretar sua experiência mística a partir de uma teologia da cruz, como uma radical encarnação do divino.
Nas próximas semanas, o IHU, por meio de seu site, revista e Cadernos Teologia Pública, irá publicar textos inéditos de Marguerat sobre Paulo em português, concedidos com exclusividade pelo autor, que aprofundam a chamada teologia da cruz, a questão da mística de Paulo e de sua relação com as mulheres.
(Por Moisés Sbardelotto)
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Mística da Paixão: o significado da cruz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU