"O debate, necessariamente restrito à questão do sigilo confessional, move cordas muito antigas e interpela uma laicidade que, para sair vitoriosa, corre o risco de implodir", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 25-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O segredo da confissão se salvará da onda de choque dos abusos eclesiásticos? O debate diz respeito ao direito e à moral. Relato das intervenções.
O segredo da confissão se salvará da onda de choque dos abusos eclesiásticos? Dobrado pela lei e duramente discutido na Austrália, Chile, Bélgica, agora também está sob escrutínio na Alemanha e na França. Neste último país, a retirada do sigilo no caso de predadores e vítimas de abusos foi solicitada pelo Relatório da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (Ciase).
Na recomendação (n. 43) consta: “Transmitir, pelas autoridades da Igreja, uma mensagem clara aos confessores e aos fiéis indicando que o segredo da confissão não pode derrogar da obrigação do direito divino natural de proteção da vida e da dignidade da pessoa, de sinalizar às autoridades judiciais e administrativas os casos de violência sexual infligidos a um menor ou a uma pessoa vulnerável”.
E acrescenta-se: “A comissão levanta a questão de saber se a obrigação moral (de proteger os menores) não deve prevalecer sobre as considerações que historicamente estão na origem do segredo da confissão, ou seja, a manifestação da obra do próprio Deus, por intermédio do sacerdote, além da proteção da reputação do penitente” (parágrafo 0925). “Numa perspectiva autenticamente cristã, a profanação de um sacramento não pode fazer esquecer a profanação prioritária, aquela das pessoas” (par. 0928).
Monsenhor Eric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal, expressou algumas perplexidades ao relembrar a censura da excomunhão para o sacerdote que viola o segredo. A obrigação eclesial “é mais forte do que as leis da República”.
O ministro do Interior, Gerard Darmanin, reagiu imediatamente, lembrando que "não há lei na França que esteja acima das leis da Assembleia Geral e do Senado". Uma afirmação muito repetida nos últimos meses contra o islamismo (sharia) e em apoio às mudanças introduzidas na lei sobre os cultos. Mudanças criticadas por católicos e protestantes pela conotação "teológica" da laicidade do Estado, uma espécie de religião civil.
O ministro da Justiça, Eric Doupont-Moretti, também interveio, reafirmando a obrigação vinculante para os sacerdotes de denunciarem os crimes contra menores, dos quais se veio a conhecimento inclusive na confissão.
Num encontro no Ministério do Interior em 12 de outubro, Mons. de Moulins-Beaufort admitiu a imprecisão de suas palavras, sem por isso dar razão ao governo. Se é verdade que na França o segredo confessional é posto no mesmo nível que o segredo profissional, para o qual são previstas algumas exceções, incluindo os abusos contra menores, também é verdade que há sentenças que vão na direção oposta quanto às especificidades do segredo confessional.
Para o advogado Emmanuel Le Miére, se a formulação de Mons. de Moulins-Beaufort é imprecisa e não verdadeira é porque "a proteção do segredo confessional é reconhecida pela lei da República".
A gravidade do comportamento daqueles que utilizaram o segredo confessional para encobrir os crimes é injustificável, disse Mons. Olivier Leborgne. E acrescentou: “Creio que o segredo da confissão continua a ser importante. Caso se soubesse que ao confessar algumas coisas poderiam se tornar públicas, se ficaria tentado a não as dizer em hipótese alguma, condenando ao esquecimento crimes graves. Em vez disso, com a garantia do segredo, a pessoa pode falar, o que pode ser um primeiro passo para iniciar um processo, para ir se denunciar”. Para evitar o foco indevido no segredo, ele ressaltou que, em trinta anos de ministério, nunca aconteceu a ele que alguém confessasse ser um predador. As vítimas também se deram a conhecer em contextos não sacramentais.
O ator de abusos em geral não sente a gravidade de seu gesto e dificilmente o confessa. Para isso, disse Christopher Prowse, bispo de Canberra (Austrália), os sistemas de proteção civil e eclesiástica não precisam invadir o segredo confessional. Mesmo que, tanto na cultura jurídica quanto na cultura midiática no Ocidente, não haja a percepção de uma diferença entre segredo confessional e segredo profissional.
O debate estendeu-se à Alemanha. O jurista Gregor Thüsing afirmou que o sigilo confessional já se tornou um corpo estranho no estado laico devido à sua pretensão ilimitada. “O clero não está acima da lei. Qualquer abuso contra menores que possa ser confessado sem (o consequente dever de) prevenir novos abusos é um fato cruel e causa um grito de horror".
Oliver Rohte, de forma contrária, considera os ataques ao sigilo confessional como uma retórica política porque um afrouxamento do segredo seria improdutivo do ponto de vista prático e grave do ponto de vista eclesial. Lembra que é protegido pela Lei fundamental (Constituição) e o Estado se empenhou nesse sentido com a Concordata. Garante ao cidadão um espaço inviolável em sua vida privada, que permanece fora da influência do poder público. Somente se pudesse ser demonstrado que o eventual afrouxamento do sigilo mostrasse eficácia na prevenção, ele poderia ser cancelado da práxis atual. Isso é muito difícil e improvável. Nem o predador nem a vítima procurariam o confessor. Desapareceria a única oportunidade para um padre encaminhar o predador às autoridades investigativas.
O canonista Georg Bier segue a mesma linha. Na Alemanha, os padres podem se recusar a testemunhar apelando para o sigilo confessional. Uma vontade política de remover o segredo entraria em conflito com a Concordata de 1933. “A confissão reconcilia com Deus, é Ele quem perdoa os pecados. O confessor é apenas o mediador do perdão divino. Portanto, é um evento entre Deus e o pecador. O segredo confessional é essencial para o funcionamento desse sacramento. Funciona porque quem se confessa pode ter certeza de que o conteúdo da confissão não será tornado público. É essa segurança que abre para a confiança”. Por lei, obrigar o padre a violar a confidencialidade da confissão forçaria o clero a escolher entre obedecer ao Estado e não à Igreja e a sua própria consciência ministerial.
Embora a história do sacramento da penitência tenha conhecido muitas variações ao longo dos séculos, em sua forma pessoal, sempre manteve o segredo. Na Nota da Penitenciaria Apostólica de 1 de julho de 2019, lemos: “Recentemente, falando do sacramento da reconciliação, o Santo Padre Francisco quis reiterar a indispensabilidade e indisponibilidade do sigilo sacramental. ‘A própria reconciliação é um bem que a sabedoria da Igreja sempre salvaguardou com toda a sua força moral e jurídica com o sigilo sacramental. Embora nem sempre seja compreendido pela mentalidade moderna, é indispensável para a santidade do sacramento e para a liberdade de consciência do penitente; que deve estar certo, a qualquer momento, de que a conversa sacramental permanecerá no segredo da confissão, entre a sua própria consciência que se abre à graça de Deus, e a necessária mediação do sacerdote. O sigilo sacramental é indispensável e nenhum poder humano tem jurisdição, nem pode reivindicá-la, sobre ele’".
“Todo penitente que humildemente se dirige ao sacerdote para confessar os seus pecados, testemunha assim o grande mistério da Encarnação e a essência sobrenatural da Igreja e do sacerdócio ministerial, através do qual Cristo ressuscitado vem ao encontro dos homens, toca – ou seja, realmente - suas vidas e os salva. Por isso, a defesa do sigilo sacramental pelo confessor, se fosse necessário usque ad sanguinis effusionem, representa não só um ato de lealdade obrigatória para com o penitente, mas muito mais: um testemunho necessário - um martírio - prestado diretamente à unicidade e à universalidade salvífica de Cristo e da Igreja”. A remoção do segredo é uma ofensa à liberdade da Igreja, uma violação da liberdade religiosa e da liberdade de consciência.
O segredo pode ter diferentes formas? Eis a sugestão da liturgista Andrea Grillo: “O segredo do penitente não corresponde ao segredo do confessor. Aliás, uma das razões do sacramento é precisamente tirar o penitente do segredo. A ponto de pedir-lhe formalmente, como ato penitencial, que fale de seu crime com as autoridades competentes. Não é raro que esta seja a única forma de realmente acertar as contas com o pecado”. Somente se o penitente reconhecer sua responsabilidade pode receber o sacramento da reconciliação. No entanto, a hipótese não está prevista na Penitenciaria Apostólica.
Outra solução é convidar o penitente, avisando-o do que pode acontecer, a repetir o relato do abuso fora da confissão. “Um bispo ouvido pela Ciase indicou que a solução estava na inteligência do confessor, em sua capacidade de fazer repetir o caso fora do estrito quadro sacramental, antes de encaminhar a denúncia à justiça” (par. 1327).
Em entrevista recente, o card. Mauro Piacenza ressaltou a distância entre o segredo profissional e o sigilo sacramental: “É essencial insistir na impossibilidade de comparar o sigilo confessional e o segredo profissional, para evitar que legislações seculares apliquem ao segredo confessional inviolável as exceções do segredo profissional por justa causa".
Dos estados que compõem a federação da Austrália, pelo menos cinco já legislaram no sentido de obrigar o sacerdote a denunciar abusos informados na confissão. Das 80 recomendações sugeridas pela Royal Australian Abuse Commission, os bispos aceitaram a maioria e 13 foram submetidas à Santa Sé. Duas delas foram rejeitadas: a abolição do celibato para os padres e do segredo confessional. "Um confessor está completamente proibido de usar aquilo de que veio a conhecimento na confissão ... certamente ele pode, e em alguns casos deve, encorajar a vítima a procurar ajuda fora do confessionário ou, se for o caso, relatar o caso de abuso às autoridades".
Em abril de 2019, a Câmara dos Deputados do Chile aprovou um projeto de lei que impõe que as autoridades eclesiásticas denunciem à justiça civil qualquer abuso contra menores de que tenham conhecimento, mesmo na confissão. A redução do segredo confessional ao segredo profissional comum também já existe na Bélgica. É de se esperar que, onde a questão de abusos no clero explodir, o pedido de abolição do sigilo confessional seja renovado.
O compreensível debate sobre os eventos atuais ameaça obscurecer os dinamismos de longa duração histórica. Hanna Arendt advertiu para se ter cautela com uma sociedade que pretende total transparência. É um sinal de totalitarismo.
E Gustavo Zagrebelsky acrescenta: “Talvez existam âmbitos que estão por natureza excluídas da norma jurídica externa e necessariamente se referem à norma moral, que olha para o homem por dentro (Rm 7,22). Talvez as fontes da vida e da sociedade estejam entre eles”. No confronto secular entre o poder político e o poder eclesial que funda o Ocidente, entre crime e pecado, assistimos hoje ao crescimento impetuoso do direito positivo. Sua reivindicação hegemônica tende não apenas a isolar o sagrado, mas a expulsá-lo como um demônio. Esquecendo que a vitória total de um ou do outro significaria a implosão do Ocidente.
O historiador Paolo Prodi observa: "A difusão do direito em todos os aspectos da vida humana é cada vez mais percebida ... não como um fato positivo, mas como um sinal de fragilidade que nos alerta para um perigo para as próprias estruturas de sustentação da nossa sociedade democrática e liberal" (Cristianesimo e potere, ed. Il Mulino, Bologna 2012, p. 177).
Continua assim: "Mas talvez possamos demonstrar que nossa civilização, a civilização ocidental, tem uma de suas almas na tensão dialética entre a esfera do poder e a esfera da moral e que, no centro dessa tensão, cresceu o direito como hoje nós o conhecemos e o vivemos; se coincidisse totalmente com o universo do poder ou com o universo do sagrado, nosso ser como homens ocidentais estaria em grave perigo. Se é verdade, como creio, que nos encontramos numa passagem não só de século, mas de época, torna-se indispensável uma reflexão de longo prazo”.
O debate, necessariamente restrito à questão do sigilo confessional, move cordas muito antigas e interpela uma laicidade que, para sair vitoriosa, corre o risco de implodir.