22 Fevereiro 2021
Em 5 de novembro, e por um único dia, Porto Alegre baixou da marca de 200 pacientes internados com covid-19 nas UTIs da cidade e registrou 197 casos confirmados. Foi o menor número desde meados de julho do ano passado, quando a crise causada pelo novo coronavírus cresceu com força na Capital. Mesmo naqueles primeiros dias, quando a curva de pacientes nas UTIs era decrescente e o governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB) comemorava a queda e afrouxava restrições no comércio, os médicos sempre alertaram que a contaminação continuava muito alta e os cuidados deviam ser rígidos.
A reportagem é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 17-02-2021.
De lá pra cá, o número de internações nas UTIs voltou a subir até marcar 333 pacientes às vésperas do Natal, depois diminui um pouco e desde o final de janeiro só cresce novamente. Nesta quarta-feira (17) são 310 pessoas confirmadas com covid-19 nas UTIs e 38 suspeitos. O quadro atual se torna mais preocupante porque hoje já se sabe que a temida variante de Manaus do vírus chegou ao Rio Grande do Sul, cenas de aglomeração foram registradas durante o Carnaval na Capital e no litoral, todo o comércio está aberto e a volta às aulas está prestes a acontecer, inclusive de modo presencial.
“A sociedade está em xeque total. Estamos à beira do colapso nos próximos dias”, afirma, convicto, o médico Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e responsável pelos testes clínicos na instituição da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca.
Perto de completar um ano da pandemia no Brasil, Sprinz recorda que por volta de abril de 2020 se começou o discurso em defesa do uso da cloroquina, receitado até hoje por alguns médicos apesar de inúmeros estudos mostrarem a ineficácia do medicamento para tratar covid-19. O resultado positivo, claro, nunca houve, tendo servido apenas para criar o discurso de voltar ao trabalho a qualquer custo, em detrimento dos cuidados realmente eficazes como o uso de máscara, distanciamento e higienização constante das mãos. “A agenda neoliberal estimula as pessoas a não se protegerem. Quer trabalhar, trabalha, mas tem que se proteger”, diz Sprinz, também professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAMED/UFRGS).
“A infecção sempre esteve entre nós, ela só deu antes uma trégua. A única coisa que funciona para retardar o ciclo da infecção é a redução da mobilidade, foi isso que ajudou o Rio Grande do Sul lá no início”, recorda o infectologista, lembrando do início da crise no RS, quando boa parte da população realmente ficou em casa. Agora, com as atividades econômicas funcionando de modo quase normal e parte significativa da população transitando como se não houvesse mais pandemia, Sprinz é taxativo em dizer que assim não se pode continuar: “Infelizmente, medidas restritivas devem ser tomadas imediatamente”.
O chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre diz que a volta às aulas de modo presencial e agora sem restrição de 50% na lotação das salas, fará aumentar ainda mais a mobilidade de alunos, pais e de toda a comunidade escolar, o contrário do que é preciso ser feito para frear o atual crescimento da contaminação na Capital e no Estado.
O cansaço costumeiramente alegado por muitas pessoas para justificar certas atitudes, analisa o infectologista, também acomete os trabalhadores da saúde que estão na linha de frente há quase um ano, diariamente submetidos a alta carga de estresse e pressão psicológica. “Estou cansado também. A gente está cansado e os recursos humanos são finitos. Não adianta ter leitos se não vai ter pessoa pra trabalhar. As pessoas estão cansadas e os profissionais também. É muito difícil todos os dias estar carregando um monte de sentimentos”, confessa Sprinz.
A epidemiologista Lucia Campos Pellanda, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), também destaca a consequência do comportamento da população nos rumos da pandemia. Ela chama atenção para o aumento expressivo das internações nos últimos dias e teme que haja uma “explosão” de novos casos. A situação, até hoje, nunca foi vivida no Rio Grande do Sul. Apesar do elevado nível de contágio, a rede de saúde nunca colapsou. Os próximos dias e semanas, porém, podem ser diferentes.
“Os riscos de se chegar numa situação crítica são enormes. E tudo isso com a exaustão dos profissionais de saúde”, afirma Lucia, enfatizando o esgotamento dos trabalhadores que estão na linha de frente. “Ninguém suporta isso por um período muito longo.”
A reitora da UFCSPA destaca que o possível colapso dos serviços de saúde aumenta a mortalidade também em outras doenças, como um infarto, acidente vascular cerebral ou qualquer outra que precise de atendimento e não encontre leito disponível. “É ruim pra todo mundo, não tem escapatória.”
Apesar de todos os alertas que vêm sendo dados há quase um ano, Lucia diz que as pessoas passaram a se comportar como se não houvesse mais pandemia. “Infelizmente, as pessoas desistiram, escolheram não tomar mais cuidado.” Para ela, é preciso haver um esforço de comunicação maior, porque muitas pessoas se informam mais por mensagens de WhatsApp.
A epidemiologista ainda pondera que parte do comportamento visto nas cenas de aglomeração ou na falta de cuidado com o uso de máscara, pode estar associado a um mecanismo de defesa, um estágio de negação e não aceitação da realidade, ainda que saiba a informação correta sobre os riscos. “Temos que continuar tentando, mesmo se influenciarmos poucas pessoas, já faz diferença”, explica, ressaltando que o uso de máscara, o distanciamento e a higienização das mãos salvam vidas.
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Covid-19: ‘A sociedade está em xeque total. Estamos à beira do colapso nos próximos dias’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU