15 Janeiro 2021
Produzida em maior volume e a preço de custo, a vacina desenvolvida pela universidade e pelo laboratório britânicos deveria, a princípio, beneficiar principalmente os países em desenvolvimento.
A reportagem é de Thomas Abgrall, publicada por Alternatives Économiques, 13-01-2021. A tradução é de André Langer.
Em menos de uma semana, o horizonte subitamente se iluminou para a vacina da Oxford-AstraZeneca. No dia 30 de dezembro, a Agência Britânica de Medicamentos (MHRA) aprovou o seu uso. A campanha de vacinação de 100 milhões de doses pré-encomendadas pelo Reino Unido começou no dia 4 de janeiro.
De lá para cá, tudo aconteceu rápido: Argentina, El Salvador, México e Índia concordaram com a administração da vacina em “situações de emergência”, abrindo caminho para grandes campanhas de imunização em países de baixa e média renda.
Um ponto culminante para a equipe de pesquisadores do Instituto Jenner, centro de pesquisa da Universidade de Oxford fundado em 2005, que projetou o produto. Os pesquisadores começaram a trabalhar em meados de janeiro de 2020, assim que o sequenciamento do genoma do SARS-CoV-2 foi revelado.
Este resultado não é, na realidade, uma surpresa, pois há vários anos a equipe de cerca de 30 cientistas vem se preparando para o surgimento de uma “doença X”, uma futura pandemia. Desde 2012, tem desenvolvido pesquisas sobre vacinas candidatas usando uma versão enfraquecida do vírus do resfriado (adenovírus) como vetor viral, que geralmente infecta chimpanzés. Essa tecnologia foi usada durante as fases preliminares dos testes clínicos para desenvolver uma vacina universal contra a gripe, outra contra o Ebola e outras vacinas contra patógenos emergentes (vírus Zika, Chikungunya...), mas nenhuma dela foi, até agora, aprovada principalmente porque várias dessas epidemias não são ativas o suficiente para conduzir os ensaios clínicos da fase 3.
Em 2016, os dois principais pesquisadores do Instituto Jenner, Sarah Gilbert e Adrian Hill, decidiram patentear seu vetor viral, denominado ChAdOx, e criam a startup Vaccitech, a fim de levantar fundos para lançar novos ensaios com fins lucrativos, no modelo comprovado das universidades americanas. O principal acionista da empresa é uma sociedade de capital de risco intimamente ligada à universidade, chamada Oxford Sciences Innovation, que também inclui outros investidores como a Google Ventures e a Sequoia Capital China.
Em janeiro de 2020, portanto, os pesquisadores reagem rapidamente: eles querem aproveitar as vantagens dos ensaios clínicos que realizaram em 2018 em Oxford com o ChAdOx no MERS, um coronavírus primo do SARS-CoV-2, identificado na Arábia Saudita em 2012. Eles dispõem, na Oxford, de uma pequena unidade de produção que lhes permite, em menos de duas semanas, fabricar um primeiro lote de doses da vacina candidata. Ao mesmo tempo, eles se mobilizam e entram em contato com meia dúzia de produtores desde fevereiro na Europa e na Índia para produzir a vacina candidata em maior escala.
“A Universidade de Oxford até queria inicialmente dar licenças não exclusivas e livres de direitos para fabricantes de todo o mundo, diz Ellen’t Hoen, diretora do Medicine Law & Policy, um grupo de pesquisa sobre a propriedade intelectual. Mas a equipe logo percebeu que eles próprios não tinham capacidade técnica para colocar em prática um plano de industrialização e, como o interesse pela vacina fora despertado, ela era fortemente incentivada pela Fundação Gates, ou mesmo pelo próprio Bill Gates, a firmar parcerias com um grande laboratório farmacêutico para acelerar a produção da vacina”.
O Instituto Jenner foi sensível aos argumentos do bilionário americano, que já havia financiado vários de seus projetos, incluindo seus ensaios clínicos sobre o MERS, por meio da CEPI, uma fundação anglo-sueca criada em 2017 e financiada pela Fundação Gates para apoiar vacinas candidatas contra vírus emergentes. Em 2018, o Instituto Jenner recebeu 19 milhões de dólares em financiamento da CEPI, compartilhado com a Janssen Vaccine, subsidiária da gigante farmacêutica norte-americana Johnson & Johnson.
Em março, começam as primeiras negociações entre a Vaccitech, a Universidade de Oxford e o grupo farmacêutico americano Merck & Co. Mas elas esbarram em diversos obstáculos, segundo informações divulgadas pelo Wall Street Journal (WSJ). Sarah Gilbert e Adrian Hill, os pesquisadores do Instituto Jenner e acionistas de 10% da Vaccitech, querem uma vacina amplamente acessível, enquanto a Merck se recusa a produzir uma vacina a preço de custo. A Merck também propõe pagar à universidade apenas 1% em royalties, valor que a universidade considera insuficiente. Com um impasse nas negociações, os dois pesquisadores decidiram em abril encarregar um banco de investimentos londrino para encontrar outros parceiros.
As negociações avançam rapidamente com o grupo farmacêutico britânico AstraZeneca, até agora pouco especializado em vacinas, mas que tem ligações importantes com diversos produtores internacionais. Ela se compromete a vender cada dose a preço de custo “durante a pandemia”, sendo essa tarifa mantida “para sempre” para países de baixa e média renda. Os acionistas da Vaccitech, sob pressão da universidade, concordam em perder os direitos exclusivos da vacina, e uma licença exclusiva é concedida à AstraZeneca pela Oxford.
O acordo firmado em 30 de abril entre a universidade, a Vaccitech e a AstraZeneca vai acelerar o futuro ritmo de produção. Dois meses após o início dos primeiros testes clínicos na Grã-Bretanha em abril, a AstraZeneca assina contratos com diversos fabricantes em países em desenvolvimento: na China, Brasil, Argentina, México, Rússia e especialmente na Índia. Lá, a AstraZeneca fecha um acordo com o maior produtor mundial de vacinas, o Serum Institute of India (SII), para fabricar um bilhão de doses até o final de 2021, destinadas a países com renda baixa ou intermediária, incluindo a Índia.
O grupo britânico é hoje capaz de fornecer quase 3,5 bilhões de doses da vacina AZ1222, de acordo com a sociedade de informação e análise científica Airfinity. Esta é a maior capacidade anunciada até o momento entre as quinze vacinas mais avançadas. O modelo econômico da AstraZeneca consiste em vender vacinas mais baratas, mas em grande escala, enquanto seus outros concorrentes diretos, a Pfizer e a Moderna, optaram por produzir menos doses a um preço mais elevado.
Juntas, estas últimas anunciaram que serão capazes de fornecer um pouco mais de 2 bilhões de doses até o final do ano, 96% das quais serão fornecidas para um pequeno número de países de alta renda, segundo a ONG Oxfam, membro da People's Vaccine Alliance. Por outro lado, 64% das doses da vacina da Oxford serão distribuídas aos países em desenvolvimento.
O custo de cada dose da vacina Oxford-AstraZeneca será de aproximadamente US$ 3-4 (duas doses são necessárias), enquanto para a Pfizer e a Moderna é estimado em US$ 19,50 e US$ 25-37, respectivamente, por dose. Outras vacinas produzidas a baixo preço, como as da Novavax (US$ 16) ou da Johnson & Johnson (US$ 10), com perfis relativamente próximos à da AstraZeneca, não têm previsão de chegar ao mercado nos próximos meses.
“A abordagem baseada em custos é interessante, mas de forma alguma constitui um gesto filantrópico, uma vez que a Oxford e a AstraZeneca se beneficiaram de um financiamento público significativo”, lembra Nathalie Ernoult, da Médico Sem Fronteiras (MSF), encarregada da campanha de acesso a medicamentos essenciais. A vacina já recebeu cerca de 1,5 bilhão de libras em recursos públicos, principalmente dos Estados Unidos e da União Europeia. É a segunda vacina candidata com mais financiamento público, depois da Moderna.
“O acordo entre a Universidade de Oxford e a AstraZeneca carece de transparência. Permitiria a esta última atingir uma margem de até 20% acima do custo de produção, segundo fontes que conseguiram ter acesso ao contrato”, acrescenta Nathalie Ernoult. De acordo com o Wall Street Journal, os lucros das vendas de outros concorrentes da Oxford, Pfizer e Moderna, podem chegar a US$ 32 bilhões até o final do ano.
A referência a uma vacina a um preço de custo “até o fim da pandemia” também é ambígua. Esse fim será definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS)? Um memorando de entendimento entre a AstraZeneca e a Fiocruz, o maior centro público de pesquisas médicas do Brasil, divulgado pelo Financial Times, revelou que o grupo britânico estava reivindicando o direito de declarar o fim da pandemia já em julho de 2021.
Maurício Zuma, diretor do laboratório médico Bio-Manguinhos, da Fiocruz, procurado pela Alternatives Économiques, no entanto quer ser tranquilizador. “Mesmo que a AstraZeneca declare que a pandemia acabou já em julho, eles terão transferido para nós a fórmula para produzirmos a vacina, e não a venderemos por mais de 4 dólares a dose”.
Se a vacina chegasse a ser comercializada além do custo já neste verão, e o SARS-CoV-2 se tornasse um vírus sazonal como a gripe, os lucros da AstraZeneca poderiam ser significativos. A Universidade de Oxford poderia se beneficiar com royalties de cerca de 6%, ou seja, mais de 100 milhões de dólares, de acordo com o WSJ. Ela se comprometeu a reinvestir esse dinheiro em um centro de preparação para pandemias e de pesquisa de vacinas que ela montará “com a colaboração da AstraZeneca”, sem fornecer mais detalhes. Quando questionadas, a universidade britânica e a AstraZeneca se recusaram a responder às nossas perguntas.
Além disso, embora em teoria a vacina seja acessível no longo prazo para países de renda baixa e média, é improvável que os mais pobres dentre eles se beneficiem da vacina já em 2021. “Os acordos de parceria concluídos até agora pela AstraZeneca referem-se principalmente aos grandes países emergentes, que, por sua vez, podem mostrar nacionalismo de vacinas da mesma forma que os países desenvolvidos. Os países mais pobres correm o risco de ficar para trás”, acredita Achal Prabhala, pesquisador indiano e coordenador do projeto AccessIBSA, que faz campanha por medicamentos acessíveis na Índia, Brasil e África do Sul.
É o que acaba de acontecer também com a Índia: o diretor-geral do Serum Institute, Adar Poonawalla, disse à agência americana AP no dia 3 de janeiro que não estava no momento autorizado pelo governo a exportar doses da vacina para países em desenvolvimento, conforme anunciado em acordo com a AstraZeneca, sendo a população indiana considerada prioritária.
A companhia indiana não entregaria antes de abril doses ao Covax (Advance Market Commitment, AMC), um mecanismo financeiro que permite a 92 países pobres ter acesso às vacinas Covid-19, estabelecido pela aliança para a vacina GAVI (Aliança Global para Vacinas e Imunização) em parceria com a Organização Mundial da Saúde.
A AstraZeneca, por sua vez, anunciou que fornecerá 470 milhões de doses à Covax através de contratos separados. O grupo farmacêutico é um dos poucos Big Pharma, junto com a Johnson & Johnson e a GSK-Sanofi, que se comprometeu a fornecer doses para este mecanismo de solidariedade internacional.
Do ponto de vista operacional, entretanto, a colocação da vacina AZ1222 no mercado parece ser a única solução viável atualmente para os países em desenvolvimento. As duas vacinas desenvolvidas pela Pfizer e a Moderna são baseadas na tecnologia inovadora de RNA mensageiro e requerem armazenamento de longo prazo em temperatura muito baixa (- 70 °C para a primeira, - 20 °C para a segunda). A Oxford, que usa tecnologia mais tradicional, pode ser armazenada a uma temperatura de 2 a 8 °C.
“Transportar e manter vacinas em temperaturas muito baixas é quase impossível na África Subsaariana ou nos países do Sudeste Asiático, particularmente nas áreas rurais, o que não é o caso com a vacina Oxford”, diz Michael Head, diretor de pesquisa para saúde global da Universidade de Southampton.
Os primeiros resultados detalhados dos ensaios da fase 3, entretanto, levantaram preocupações sobre sua eficácia. A Universidade de Oxford relatou uma taxa de 70,4% no final de novembro, mas por trás desse desempenho se escondem na realidade lacunas entre dois protocolos diferentes. A eficácia era de 62% para um grupo majoritário, que recebeu duas doses completas com um mês de intervalo, e chegou a 90% para um grupo menor de voluntários do Reino Unido com menos de 55 anos, que receberam por engano meia dose e uma dose completa um mês depois.
As vacinas da Pfizer e da Moderna apresentam taxas de eficácia próximas a 95%. Devemos deduzir disso que a vacina mais amplamente disponível nos países em desenvolvimento terá uma qualidade menor? “Você não pode comparar maçãs e laranjas, enfatiza Nathalie Ernoult, da MSF. Os protocolos não têm sido os mesmos em todos os ensaios clínicos, e dados muito mais abrangentes serão necessários para comparar os resultados de eficácia em larga escala”.
Novos ensaios clínicos devem ser lançados no final de janeiro nos Estados Unidos, fornecendo dados mais claros sobre a eficácia da vacina AZ1222. Ela só deve ser autorizada na Europa e nos Estados Unidos daqui a vários meses, enquanto a Pfizer e a Moderna já receberam luz verde das autoridades de saúde americanas e europeias.
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AstraZeneca-Oxford, uma vacina milagrosa para os países em desenvolvimento? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU