15 Janeiro 2021
Desde que assumiu a Prefeitura de Porto Alegre no dia 1º de janeiro, Sebastião Melo tem cumprido a promessa de campanha de reduzir as restrições impostas ao comércio para o enfrentamento da covid-19. No dia 4, eliminou as restrições mais rígidas que haviam sido implementadas na gestão passada em relação ao modelo de Distanciamento Controlado do governo estadual. No dia 9, firmou um acordo de cogestão com outros quatro municípios da região metropolitana (Cachoeirinha, Gravataí, Viamão e Glorinha) para que a Região Covid nº 10 possa adotar regras sanitárias da bandeira anterior àquela definida pelo governo estadual. Isto é, quando o Estado atribuir bandeira vermelha à região, poder adotar regras da bandeira laranja. Quando estiver sob bandeira laranja, poder adotar as regras da bandeira amarela.
A reportagem é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 14-01-2021.
Em contrapartida, no dia 9, publicou um decreto que, de acordo com a Prefeitura, torna mais rígidos os protocolos que devem ser adotados pelas empresas, assim como promete aumentar as operações de fiscalização. O secretário municipal extraordinário de Enfrentamento à Covid-19, Renato Ramalho, argumenta que a estratégia da Prefeitura é adotar “liberdade com responsabilidade”. “Ao mesmo tempo em que a prefeitura flexibilizou para a bandeira laranja, publica também rígidos protocolos de funcionamento sobre higienização, distanciamento interpessoal, utilização de equipamentos de proteção individual (EPIs) e combate a aglomerações”, diz.
Segundo ele, os novos protocolos sanitários buscam evitar a propagação do vírus, tendo sido definidos com base em orientações da Diretoria de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde e após diálogo com entidades representativas de empresários, saúde, universidades e órgãos de controle.
Contudo, especialistas ouvidos pelo Sul21 contestam a estratégia de relaxar as restrições de ocupação do comércio em troca de maior rigor em protocolos. “Não possui evidência alguma de que isso seja uma estratégia de controle eficaz, pelo contrário, temos o exemplo sueco mostrando que isso não resultou em nenhum impacto positivo”, diz Ronaldo Hallal, médico infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.
Hallal destaca que a Suécia foi um dos países que primeiro adotou a estratégia de priorizar o distanciamento e o uso de máscaras, mas não implementar medidas rígidas de isolamento social. Porém, com a nova onda de coronavírus que assola a Europa, o país passou adotar medidas mais restritivas a partir de novembro. A Suécia contabilizava nesta quarta-feira (13) 9.667 mil mortes por covid-19, bem acima dos vizinhos Noruega (509), Finlândia (602) e Dinamarca (1.623). “Eu acho que essa experiência já foi ultrapassada, especialmente na Suécia”, diz Hallal.
Na mesma linha, Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, afirma que pesquisas apontam que há uma correlação explícita entre a propagação do vírus e a mobilidade das pessoas, o que acaba sendo estimulada pela liberação do comércio. “Essa mobilidade é afetada pelas medidas e pelos protocolos, mas os protocolos não conseguem evitar o contágio, só conseguem dar uma reduzida, diminuir a taxa de aumento. A gente percebe que, com protocolos ou sem protocolos, a gente acaba tendo aumento se tem uma mobilidade aumentada. Falando do ponto de vista de dados, eu acho [uma estratégia] bem temerária”.
Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19 (Foto: Arquivo Pessoal)
Para explicar o porquê acredita que uma maior liberação do comércio não pode ser balanceada por um maior rigor no controle de protocolos, Isaac faz uma analogia com um cenário de tiroteio. “Nós estamos num tiroteio. Eles vão dizer: ‘vamos incentivar as pessoas a sair e vamos dar capacetes e coletes à prova de balas’. Vamos ensinar como andar agachado, mas o tiroteio o continua. E, na verdade, quanto mais pessoas nas ruas, mais tiros. Ou seja, é um caminho, no que tange à saúde pública, muito temerário. O ideal seria eliminar a causa, o contágio”.
Por outro lado, ele defende que, se fosse possível colocar as pessoas “dentro de uma bolha”, em que pudessem manter suas atividades, mas sem entrar em contato com outras, o vírus praticamente seria eliminado em 20 dias. “Se a gente incentivar a mobilidade e achar que, individualmente, cada pessoa vai se proteger, vai ter aquelas pessoas que não vão botar o colete à prova de balas direito, que não vão botar o capacete direito, que vão tirar o capacete porque está calor, que vão desafiar”, diz, retomando a analogia do tiroteio. “É impossível”.
Quando relaxou as restrições à circulação de pessoas, no dia 4, a Prefeitura determinou, entre outras medidas, que missas e cultos não precisam mais cumprir o limite de 90 minutos de duração; bares, restaurantes e lanchonetes, inclusive em shoppings, deixaram de ter horário definido para abrir e passaram a poder oferecer o serviço de drive-thru, tele-entrega e pague e leve sem restrição de horário — pelo decreto anterior era permitido até às 23h; o comércio essencial em shopping deixou de ter limite de dias e horários; e a flexibilização também eliminou a ocupação máxima de 50% de público em comércios de rua, mantendo apenas o limite de 50% de trabalhadores.
Já entre os protocolos mais rígidos, implementados a partir do dia 9, a Prefeitura passou a exigir a utilização de máscara de proteção facial para ingresso e permanência em ambiente coletivo fechado ou aberto, público ou privado, incluindo vias públicas, veículos de transporte, elevadores, salas de aula, repartições públicas ou privadas, lojas, etc., o que, segundo a Secretaria Extraordinária, antes era exigido apenas para casos específicos. Além disso, determinou que empresas devem aperfeiçoar a comunicação de protocolos com cartazes para informar sobre a necessidade de regras de higienização, uso de máscaras e distanciamento, e informar o teto de ocupação de acordo com a bandeira.
Outras mudanças nos protocolos incluem (confira o documento completo):
Ao mesmo tempo, a Prefeitura recomenda que as empresas realizem a busca ativa de informações sobre casos positivos de seus funcionários, passando a adotar a triagem autodeclarada, preenchida pelo trabalhador, em que aponta a coleta dos sintomas, data de início dos sintomas, tipo de exame realizado e resultado. Em casos sintomas, o decreto orienta o afastamento imediato do trabalhador para isolamento domiciliar por 10 dias, a contar do início dos sintomas ou conforme determinação médica.
Desde a campanha, o prefeito Melo defende a ideia de que as atividades comerciais não são aquelas que apresentam o maior risco de contágio. Em entrevista à GaúchaZH publicada em 21 de dezembro, o então prefeito eleito disse: “A cidade, funcionando com os protocolos necessários, eu acho que não é caso de aumento de coronavírus. Eu acho que o aumento do coronavírus está se dando por outras razões, e não porque o comércio está funcionando. Acho que está havendo muito descuido. Estas festas de final de ano, por exemplo, é uma coisa que preocupa todos nós”.
No entanto, para o infectologista Ronaldo Hallal, o comércio, como qualquer local que há contato entre pessoas, pode sim ser considerado um local de risco. “É claro que uma aglomeração tem risco muito maior. Aglomeração num local fechado, que não é ventilado, sem usar máscara e com proximidade é o maior risco, mas a epidemia também se expande e se propaga nas atividades habituais da vida das pessoas. É por isso que muitos países determinaram medidas de restrição da circulação das pessoas, senão não teria sido definido isso”, diz. “Havendo circulação, vai haver transmissão, independente se é no comércio, na indústria, no campo de futebol. Os clubes de futebol tiveram surtos, porque não haveria surto no comércio?”, complementa.
Ronaldo Hallal, médico infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia (Foto: Arquivo pessoal)
Isaac Schrarstzhaupt também destaca que o maior respaldo que se tem para proteção contra o vírus é em relação a locais ventilados, ao ar livre, com ventilação adequada. “Quanto mais fechado, menos ventilados, for o lugar e mais tempo a pessoa passar dentro desse local, maior a chance dela acabar contagiando, contaminando alguém. Não tem haver com o comércio ou não comércio. Se for um comércio ao ar livre, uma barraquinha, é muito menos perigoso do que uma loja de aviamento toda fechada, com aqueles pavilhões que só tem as janelas no fundo, cheia de gente em corredores apertados. Não tem haver com ser comércio ou não. É muito mais relacionado ao comportamento das pessoas”, afirma.
Hallal questiona ainda quais seriam os dados que a Prefeitura se baseia para definir que estabelecimentos comerciais não são locais de grande risco de contágio, salientando que, até onde saiba, não há o nível de detalhamento no rastreamento de casos no Brasil para saber se as pessoas foram contaminadas nestes locais ou não. “Não existe base de dados que permita afirmar que não há transmissão no comércio. Há transmissão no deslocamento, há transmissão pegando ônibus aglomerado, há transmissão saindo para a rua e indo para o trabalho, então não se pode achar que aquele ambiente de trabalho é imune à transmissão. De onde sai essa informação?”, questiona Hallal.
A reportagem do Sul21 está em contato com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) desde segunda-feira (11) no aguardo de respostas para esse questionamento, de quais seriam os dados que embasam a estratégia atual da Prefeitura de relaxamento de restrições, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.
No boletim epidemiológico publicado diariamente pela Prefeitura a respeito da situação da covid-19 em Porto Alegre, há uma seção destinada ao acompanhamento de surtos, definidos como ocasiões em que dois ou mais profissionais de um estabelecimento são diagnosticados com a doença através de exame PCR em um período inferior a 14 dias. Até o boletim desta quarta-feira (os dados sobre surtos foram atualizados pela última vez no dia 8 de janeiro), a SMS já havia registrado 804 ocorrências de surtos em estabelecimentos comerciais, na indústria, no setor de serviços e na administração pública, dos quais 27 ainda eram considerados ativos.
Na investigação destes surtos, 44.137 mil pessoas foram testadas e 5.192 testaram positivo, com 192 vindo a falecer em decorrência do vírus. Mais da metade das pessoas investigadas, 23.788, trabalhavam no ramo alimentício, com 662 delas testando positivo e nenhum óbito registrado. Mas os setores com maior número de casos positivos foram o de serviços de saúde (7.939 pessoas investigadas, 2.119 resultados positivos e 53 óbitos) e em instituições de longa permanência (ILPI), destinadas a domicílio coletivo de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, que tiveram 7.339 pessoas investigadas, 851 casos positivos e 133 óbitos. Pelos dados do acompanhamento (disponíveis a partir da página 19), nenhum outro setor comercial teve um número expressivo de casos confirmados e óbitos.
Isaac expressa ainda preocupação com o fato de que, apesar de ter chegado a um novo pico de casos, mortes e internações por covid-19 no mês de dezembro (estando em leve queda na primeira quinzena de janeiro), o Estado e o Brasil ainda estão em um período do ano em que, tradicionalmente, há menor incidência de doenças transmitidas por vias respiratórias, mas que isso poderá mudar em breve, uma vez que os casos de Síndrome respiratória aguda grave (SRAG) começam a aumentar entre a sétima e a nona semana do ano, isto é, a partir da segunda semana de fevereiro.
“O que faz esse aumento? O comportamento da população. Além de o vírus ter facilidade de se transmitir em locais mais frios, mais chuvosos, no final de fevereiro, início de março, começam a chuvas no norte. O que as pessoas fazem com chuva? Se juntam mais, se protegem mais, não abrem as janelas nos ônibus. A mesma coisa no sul. Quando começa o frio, a gente começa a ficar mais amontoado, a ter um comportamento que tem mais a ver com a transmissão de doença respiratórias. Isso também não quer dizer que tem haver com o comércio, depende do comportamento. Essas variáveis acabam sendo tão difíceis de controlar, de ver se um comércio é seguro ou não, que, normalmente, os países fazem um fechamento forte, por 15 a 20 dias, porque é o tempo do vírus incubar, do vírus transmitir, das pessoas acabarem ou curando ou piorando e indo para o hospital e, eventualmente, vindo a falecer. Passou esse tempo, o vírus começa a não encontrar pessoas para ir, porque as pessoas curam e eliminam o vírus ou morrem e o vírus também acaba morrendo junto. O que acontece? Começa a cair a incidência da doença. É muito mais rápida a recuperação fazendo medidas de prevenção do que tentar conviver lado a lado com o vírus e ficar com esse patamar que é o que agente está tendo”, argumenta.
Ele reconhece que, nas últimas semanas, até foi registrada uma queda nos indicadores de contágio na Capital, mas destaca que eles ainda se mantinham em patamares elevados. Na terça-feira (12), Porto Alegre tinha 264 pacientes de covid-19 internados em leitos de UTI de hospitais da cidade. No dia 19 de dezembro, eram 333. Ainda assim, a ocupação dos leitos de UTI nesta quarta estava em 83,99%, patamar acima do considerado zona de alerta crítica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Se a gente manter esses números lá em cima por causa dessas políticas menos restritivas e isso encaixar com aquela subida que eu falei que é natural entre as semanas 7 e 9, o que pode acontecer? Pode amplificar a partir de um número alto, por isso que eu considero temerário”, afirma o coordenador da Rede Análise Covid-19.
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Porto Alegre. Especialistas criticam estratégia do novo prefeito para liberação do comércio: ‘não possui evidência de controle eficaz’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU