11 Fevereiro 2021
“Discernir o que vem de Deus e o que pode vir de você é mais uma arte do que uma ciência. Mas é uma arte especialmente importante para dominar na vida espiritual”, escreve James Martin, jesuíta estadunidense, em artigo publicado por America, 21-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Não muito tempo atrás uma mulher veio até mim pedir uma orientação espiritual. Como a maioria dos orientadores espirituais fazem, eu comecei a estabelecer algumas diretrizes: quão frequente se encontrar, quantas vezes, que direção iria.
Então eu perguntei a ela o que ela esperava de uma orientação espiritual. A primeira coisa que ela me disse era, “eu quero ajuda para entender o que vem de Deus e o que vem – e ela apontou para sua cabeça – daqui”.
Como essa mulher percebeu, nem tudo que surge em nossas cabeças vem diretamente de Deus. É claro, toda a oração é mediada através de nossas consciências, mas quando eu digo “o que está vindo de Deus e o que está vindo de mim?” a maioria das pessoas sabe do que estou falando sobre. Existe uma diferença entre a voz de Deus e a nossa voz.
Vamos dizer que você está rezando sobre a “Multiplicação dos pães e dos peixes”, a história do Evangelho na qual Jesus alimenta uma imensa multidão com apenas poucos pães e peixes. Você chega à frase “peixes e pães”, e a palavra “peixe” te atinge. Você lembra de uma refeição ruim que fez na última semana em um restaurante de frutos do mar. Você ainda não está certo se era comida estragada, mas definitivamente veio daquele mousse de salmão. Sua mente vagueia e você promete a si mesmo nunca mais retornar ao restaurante.
Depois de um tempo você pensa, “o que Deus está me dizendo aqui? Eu não deveria estar seguindo Jesus? Seguir Jesus é algo que vai me deixar doente?”.
Em resposta, eu diria que isso provavelmente é algo que apenas apareceu na sua mente e que não há nenhuma mensagem profunda nisso. Isso parece mais com uma distração.
Agora, imagine que você está rezando com essa mesma passagem, e alguma coisa diferente aparece. Você tem um desejo de se sentar e comer com Jesus. Não simplesmente por fome física, mas pelo desejo de estar com ele. Você imagina como seria bom passar um tempo com ele, como um companheiro. Você nunca pensou sobre o que significaria fazer uma refeição com Jesus, e então você se lembra de comer com seu amado avô quando era mais jovem. Ele sempre foi tão gentil e ouviu você com muita atenção, como se você fosse a única pessoa no mundo, mesmo sendo apenas uma criança. Seu avô fez você se sentir especial e amado. Você o vê como uma figura de sabedoria real.
Estranhamente, você começa a pensar em Jesus da mesma forma que pensa em seu avô – alguém com quem você gostaria de estar, alguém que o ama.
Essa segunda memória soa diferente da primeira, não é? Então, o que distingue os dois? Como posso discernir o que vem de Deus e o que vem de mim? O que é uma distração e o que não é? Ou talvez uma maneira melhor de colocar isso seja: Em que devo prestar atenção?
Deixe-me ser claro: não há uma maneira de discernir essas coisas, e o que ofereço aqui são apenas algumas perguntas a serem feitas nessas situações, que considero úteis em minha própria vida e em ajudar os outros em suas orações.
Vamos voltar a ser desviado por um pensamento sobre aquele pedaço de peixe ruim. Se isso lhe causa ansiedade, perturba seu espírito ou afasta você de sua oração, pode realmente não ser simplesmente uma distração, mas o que Santo Inácio de Loyola chama de “espírito maligno”, um impulso que o afasta de Deus e impede seu progresso espiritual.
Nesse caso, o espírito maligno está tentando afastá-lo de Deus ou, mais precisamente, o espírito maligno está usando a distração para fazer isso. A última coisa que o espírito maligno deseja é que você se aproxime de Deus. Até mesmo usar um pedaço de peixe servirá, para seus propósitos. Da mesma forma, você pode estar pensando em seguir Jesus e depois começar a pensar: Se eu o seguir, provavelmente terei que trabalhar com os pobres e então ficarei doente! Exatamente como quando comi aquele peixe. Isso claramente não vem de Deus também.
Em geral, o espírito maligno tenta movê-lo para propósitos malignos ou, inicialmente, um sentimento de desespero e desesperança. Como escreve Santo Inácio nos Exercícios Espirituais, na pessoa boa o mau espírito procura “causar angústia corrosiva, entristecer e levantar obstáculos. Desta forma, ele os perturba por falsas razões destinadas a impedir seu progresso”.
Uma maneira simples de entender é que se você está sentindo desespero, desesperança ou inutilidade, isso não vem de Deus, porque, como entendeu Inácio, esses sentimentos levam à “prevenção do progresso” na vida.
Também tome cuidado com a linguagem “universal” que geralmente é característica do desespero, especialmente quando associada a afirmações negativas sobre você. Sempre que você se pega dizendo coisas como “nada vai ficar melhor”, “todo mundo me odeia”, “ninguém me ama”, “estou sempre falhando” ou “nunca serei capaz de mudar”, é comum um sinal da presença do espírito maligno. Detenha-se ao usar esses termos universais e tente não dar ouvidos a esses impulsos. Em contraste, escreve Inácio, o “bom espírito”, o espírito que leva a Deus, é aquele que age da seguinte maneira: “É característico do bom espírito despertar coragem e força, consolações, lágrimas, inspirações e tranquilidade. Ele facilita e elimina todos os obstáculos, para que a pessoa siga em frente fazendo o bem”.
O espírito maligno pode ser reconhecido quando você se desespera; o bom espírito quando você sente esperança.
Portanto, quando você está tentando discernir o que é e o que não vem de Deus, este é um bom lugar para começar.
Deixe-me dar um exemplo de minha própria vida. Por algum tempo, quando jovem, lutei contra um leve caso de hipocondria. Não foi debilitante, mas me fez enfatizar demais os problemas físicos e ter medo de ficar doente; no processo, isso me levou a me concentrar em meu próprio bem-estar de maneira egoísta.
Vinte anos atrás, eu estava programado para fazer uma cirurgia, que trouxe uma confusão de emoções e desencadeou um pouco de hipocondria – e algum “pensamento universal”: “Esta é a pior coisa de todas”. “Estou sempre ficando doente”. “Eu nunca serei capaz de superar isso”.
Mas também senti uma atração na outra direção: em direção a uma maior liberdade, em direção a uma libertação do ego arrogante que sempre me fez focar em mim mesmo, em direção à esperança.
No meio disso, eu me encontrei com meu orientador espiritual. Então, eu coloquei isso na forma de uma pergunta. “É uma nova experiência”, disse-lhe, “de sentir liberdade e esperança quando se trata de doença. Ainda assim, me sinto puxado de volta ao sentimento de desespero. E isso parece o espírito maligno. Mas o sentimento mais pensativo, positivo e esperançoso, mesmo que seja novo, parece que pode vir de Deus. É um novo lugar para eu morar, mas estou me perguntando: esse é o bom espírito?”.
Ele praticamente saltou de sua cadeira e gritou: “Sim!”.
Quando você sentir aflição, não escute; quando você sentir esperança, siga.
Se eu estou rezando durante um tempo difícil em minha vida, e eu espontaneamente relembro de outro tempo, quando Deus estava comigo durante minhas batalhas, talvez eu possa ver nessa memória o desejo de Deus para a minha confiança. Ou talvez eu tenha uma memória de um lugar que traz a mim um grande desafio de calma, e eu relaxo. Essa é uma forma que Deus tem de nos acalmar.
Pelo contrário, se eu estou rezando durante um tempo difícil e lembro de um e-mail que eu esqueci de responder, o pensamento não deve estar vindo de Deus. Neste contexto, o que eu estou rezando, não se encaixa. Lembre-se, você quer saber se isso faz sentido. Faz sentido que Deus me encontraria e me faria acreditar? Sim, isso parece que faz sentido, ou pelo menos se enquadra com o que está ocorrendo na minha vido no momento. Faz sentido que, durante um período de oração sobre alguma coisa séria, Deus me lembre de responder aos meus e-mail? Provavelmente não.
Esse padrão vem do Evangelho de Mateus, no qual Jesus fala, “vocês os conhecerão pelos seus frutos”. A voz de Deus pode ser conhecida por seus efeitos. Se seguindo esse impulso será levado a mais amor e caridade, então é mais provável que esteja vindo de Deus.
Digamos que você esteja orando por alguém de quem não gosta. Talvez você esteja pedindo a ajuda de Deus para lidar com essa pessoa. De repente, você fica furioso com algo que ela fez a você. “Eu adoraria dar um soco na cara dela!”, você pensa.
Vinita Hampton Wright, autora de “Days of Deepening Friendship” (“Dias de Aprofundamento da Amizade”, em tradução livre), oferece uma maneira de compreender esses sentimentos. Você provavelmente perceberia que, embora tenha tido esse sentimento durante sua oração, Deus não o está movendo para dar um soco no rosto desse sujeito. Então você passa desse desejo inicial para pensar em como poderia confrontá-lo sobre algum defeito dele que lhe deixa louco. Você pode até orar sobre o que gostaria de dizer a ele sobre suas falhas – para tirar as coisas do seu peito. Isso parece fazer sentido, então você pode ficar tentado a pensar que Deus está por trás disso.
“Ainda assim, após refletir”, como Vinita explicou, “você percebe que o confronto pode ser bastante satisfatório para você, mas provavelmente não aumentaria seu amor por essa pessoa, nem ajudaria a motivá-la a mudar para melhor - então, não leva a mais amor ou caridade”.
Se uma ação não leva a aumentar o amor e a caridade – em qualquer lugar – seu ímpeto provavelmente não vem de Deus.
Isso se encaixa com o Deus que você conhece das Escrituras, tradição e sua própria experiência? Se você é cristão, isso se encaixa com o que você sabe sobre Jesus?
Deus não vai fazer você se odiar ou acreditar que nada pode dar certo novamente, porque esse não é o Deus do Antigo ou Novo Testamento, esse não é o Deus da tradição da igreja, esse não é o Deus revelado em Jesus, e esse não é o Deus que você conhece. Deus dá esperança, não desespero.
Para muitas pessoas, Deus frequentemente se manifesta em um sentimento de calma. À medida que isso acontece para você, você pode começar a reconhecer como Deus “sente” na oração. Santo Inácio começou a ver que era assim que Deus trabalhava nele.
De certa forma, você conhece a voz de Deus, de modo que, quando a ouvir novamente, você possa reconhecê-la.
Às vezes, é óbvio que um pensamento perdido que vem à sua cabeça pode não ser de Deus. Se você está orando, seu estômago ronca e você pensa em comer um bom hambúrguer com todos os acompanhamentos, essa noção provavelmente não vem de Deus. Quanto mais você orar, mais será capaz de peneirar as distrações.
Pense nisso como uma conversa com um amigo. Se você estiver conversando com alguém sobre um assunto importante e de repente notar uma mancha em sua camisa, se desviar e começar a reclamar que a máquina de lavar estragou sua roupa, você perceberá que está distraído.
É o mesmo na oração. Normalmente, você pode dizer o que faz parte da conversa e o que não é. Da mesma forma, com a prática você pode dizer quando uma distração é um convite para outra conversa nova.
Esta é talvez a pergunta mais difícil, e não é frequentemente abordada em livros sobre oração. Como você pode saber se é o que você gostaria que Deus lhe dissesse?
É aqui que é especialmente importante testar as coisas. Às vezes, o que queremos ouvir é realmente o que Deus nos diz. Se você está ansioso, ore a Deus por alívio e se sinta mais calmo, provavelmente é Deus. Não há nada de errado em conseguir o que deseja com a oração. Isso não é necessariamente a realização de um desejo; é Deus dando a você o que você precisa.
Por outro lado, você precisa ter cuidado para não simplesmente invocar a resposta que deseja na oração. O melhor antídoto para isso é a paciência, aguardando o momento em que Deus fale com clareza.
Frequentemente, nessas situações, leva tempo, e a maneira como Deus responde não é a maneira que inicialmente imaginaríamos Deus respondendo. Thomas Green, s.j., autor de “Abrindo-se para Deus”, escreve: “Se a oração é autêntica, Deus vem quando eu não esperava, e às vezes quando eu preferia que Deus não viesse, de modo que não consigo controlar a situação”.
Em minha experiência, Deus entra em nossa oração dessas maneiras diretas com mais frequência quando há um assunto importante em mãos. Isso não quer dizer que Deus não possa entrar em nossa consciência sempre que Deus quiser ou sobre qualquer assunto. Mas normalmente (novamente, em minha própria vida e em minha experiência como diretor espiritual), se essa entrada ocorrer durante um momento de urgência, pode ser considerada um sinal da presença de Deus.
Discernir o que vem de Deus e o que pode vir de você é mais uma arte do que uma ciência. Mas é uma arte especialmente importante para dominar na vida espiritual.
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“É a voz de Deus ou é a minha?” Sete dicas sobre a escuta na oração. Artigo de James Martin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU