23 Dezembro 2020
"A 'flecha do evangelho lançada' há 2.000 anos era portadora de eternidade, de um amor mais forte do que a morte, de um modo de vida maior do que o medo de morrer ou de ser privado da vida", escreve Riccardo Larini, teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos, em artigo publicado por Riprendere Altrimenti, 20-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Jesus de Nazaré convida os seres humanos a realizarem a humanidade de acordo com Deus. É preciso ser muito limitado para considerar que o cristianismo se cumpriu, que se realizou plenamente no século IV, segundo alguns, no XIII, segundo outros, no XVI, de acordo com outros ainda. Na realidade, o cristianismo deu apenas os seus primeiros passos, e foram passos tímidos na história do gênero humano. Muitos dos ensinamentos de Jesus ainda permanecem incompreensíveis aos nossos ouvidos. E, de fato, embora a flecha lançada pelo Evangelho tenha como alvo a eternidade, nós ainda somos neandertais do espírito.”
Pensei por muito tempo em como desejar um Feliz Natal às minhas leitoras e aos meus leitores, ao término de um ano que pôs a todos nós à prova, por vários motivos.
Obviamente, em primeiro lugar, pelas proporções do sofrimento e do luto que ele trouxe por toda a parte, é impossível não citar o flagelo da pandemia causada pela Covid-19, que ainda nos vê intencionados, como seres humanos e – alguns de nós – como cristãos, a dar forma a respostas capazes de humanizar a dor, de nos ajudar a sair mais fortes (sem qualquer certeza de conseguir fazer isso) de uma experiência maior do que qualquer hybris nossa, de qualquer arrogância nossa.
Para muitas pessoas, além disso, provavelmente houve outras razões de sofrimento e talvez até de desespero, pelas desgraças muito pessoais de que a vida não poupa ninguém e que, postas no quadro de um ano horrível devido ao isolamento humano que fomos forçados a viver, foram para alguns realmente insuportáveis.
Por fim, houve questões mais circunscritas, que disseram respeito diretamente a apenas alguns de nós, como a triste história de Bose, que, no entanto, levantam grandes interrogações sobre o que podemos esperar e em que podemos esperar, se até mesmo quem parece um baluarte da vida humana e do testemunho evangélico parece afundar em divisões e em um túnel sem luz, e quem é chamado a ajudar e a vigiar só sabe ferir com golpes de autoridade, talvez e até mesmo em nome de Deus.
Então, me veio à mente o texto que abre esta minha reflexão, que eu traduzi há vários anos, de Aleksandr Vladimirovič Men’, padre ortodoxo russo que foi morto, presumivelmente por ordem da KGB, a golpes de um machado no dia 9 de setembro de 1990, por ser promotor de um verdadeiro renascimento humano e evangélico no mundo intelectual russo no fim dos anos 1980.
O Pe. Men’ sabia que o cristianismo é uma força pacífica e mansamente subversiva, e recebeu diversas advertências para que cessasse de compartilhar aquilo que girava no seu cérebro e que ardia no seu coração.
Ele também sabia, como verdadeiro intelectual, que as críticas mais radicais feitas ao cristianismo na era moderna, dos iluministas a Nietzsche, continham e ainda contêm muita verdade. No entanto, ele era habitado por uma convicção inabalável de que a “flecha do evangelho lançada” há 2.000 anos era portadora de eternidade, de um amor mais forte do que a morte, de um modo de vida maior do que o medo de morrer ou de ser privado da vida.
O Natal cristão é sempre uma dupla memória: por um lado, do fato de que, com o nascimento de Jesus em Belém, foi lançada uma flecha que tem como alvo a eternidade; por outro, do fato de que o que ele realizou na sua vida também poderá se realizar na nossa, se soubermos esperar de forma não passiva o senhorio de Deus, isto é, se nos recolhermos e fizermos crescer em nós e ao nosso redor, dia após dia, aquelas sementes de verdade e de reconciliação espalhadas por toda parte, misteriosamente, que representam as marcas, o rastro daquela flecha.
Justificar racionalmente o cristianismo, quando depois de 2.000 anos os seres humanos continuam sofrendo, fazendo guerras, oprimindo os fracos, exaltando os “vencedores”, às vezes pode ser ridículo. Em vez disso, testemunhar com as nossas vidas que é possível viver de outra forma, dando um sentido mesmo onde parece não haver nada além de trevas, é algo que não faz rir a ninguém, mas que, pelo contrário, semeia esperança.
Trata-se de recomeçar, de retomar, sentindo-nos humildemente, como dizia Aleksandr Men’, “neandertais do espírito”. E é isso que eu quero desejar a todos e a cada um. Nada mais nem nada menos.
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A flecha lançada pelo Evangelho: “Nós ainda somos neandertais do espírito”. Artigo de Riccardo Larini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU