23 Dezembro 2020
"Mesmo diante das chagas da epidemia, muitos insistem em querer festejar, em reiterar a beleza imperdível da convivialidade, da troca de presentes e do estar em família. É o negacionismo irrefletido que acompanha as nossas vidas e o nosso pensamento mágico-infantil de nos projetarmos já para fora do pântano horrível em que nos encontramos".
A opinião é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 22-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Será outro Natal, diferente do costume. Não pode ser de outro modo. Mas talvez também será um Natal mais próximo do sentido original dessa festa. De fato, a sua dessacralização se cumpriu de forma irrefreável nessas últimas décadas. Há muito tempo, já despojamos o Natal de todo significado simbólico, reduzindo-o a um ritual consumista sem alma.
O nascimento de Jesus foi reduzido a uma fábula entre outras, boas para alegrar o espírito dos nossos filhos na idade ainda sem pensamento crítico da sua infância. A própria celebração religiosa foi transfigurada principalmente em uma ocasião mundana de reencontro coletivo.
O trauma da Covid, porém, traz bruscamente à luz aquilo que gostaríamos de esquecer, ou seja, a trágica fronteira que une profundamente a vida e a morte. Estar cercado de mortos e da doença deveria nos impor um olhar diferente, uma atitude de solidariedade com os mais frágeis, com os atingidos no corpo e na sua economia vital com maior força pelo vírus. Deveria nos levar a distinguir o essencial do não essencial.
No entanto, mesmo diante das chagas da epidemia, muitos insistem em querer festejar, em reiterar a beleza imperdível da convivialidade, da troca de presentes e do estar em família. É o negacionismo irrefletido que acompanha as nossas vidas e o nosso pensamento mágico-infantil de nos projetarmos já para fora do pântano horrível em que nos encontramos.
Esse impulso a festejar ignora que se pense na condição de emergência dramática na qual todos ainda estamos imersos e que, de fato, torna todo festejo destoante e fora de lugar.
O bebê na manjedoura revela a condição de abandono em que todos estamos desde as nossas origens. O destino do pequeno Jesus já está escrito e é o de morrer na cruz. No entanto, esse destino mortal não elimina a necessidade do cuidado da vida que vem ao mundo, mas, pelo contrário, a potencializa. É para tornar “imensamente sagrada” a vida de cada um, como afirma o Papa Francisco na sua última encíclica, Fratelli tutti, que o Deus cristão se decide escandalosamente pela sua kenosis, pela sua encarnação, fazendo-se menino. A sua fragilidade manifesta que aquilo que torna humana a vida é a graça da atenção que a rodeia, o calor do contato, a presença do outro, o dom.
Não é essa a lição mais importante da festa do Natal que, no tempo atroz e inédito da Covid, deveríamos aprender a manter conosco antes de qualquer outra coisa? Assim, torna-se insuportável a lamentação pela festa perdida, pela convivialidade suprimida, pelo distanciamento social imposto pelos decretos governamentais, pelo abalo dos nossos rituais.
Este será, forçosamente, outro Natal que deveria nos levar a ressacralizar o seu significado: a vida do inerme é a de um Deus estranho que requer cuidado para sobreviver. Eis o paradoxo formidável do Natal cristão! O seu sentido sagrado insiste em nos recordar o gesto fundamental da acolhida, sem o qual a vida não se torna humana, mas precipita no abandono absoluto.
Àqueles que fecham a porta das suas próprias casas, recusando a hospitalidade à família, respondem aqueles que creram no evento, que acorreram à noite para encontrar e homenagear o Deus menino hospedado em um estábulo.
Sabemos que a noite de Natal no relato cristão anuncia a vinda ao mundo do “Salvador”. Existe um modo secular para ler o poder desse relato? A meu ver, trata-se do evento que torna a vida humana imensamente sagrada.
No tempo traumático da Covid, a festividade do Natal nos lembra que toda morte nunca é uma morte anônima, mas é a morte do imensamente sagrado. Agostinho reflete sobre o gesto de Maria, narrado pelo evangelista Lucas, de colocar o seu “primogênito” em uma humilde manjedoura, enfatizando a equivalência do corpo de Jesus com o do alimento. Este Natal não será o tempo da festa, mas sim aquele que nos obriga a pensar na existência de outro alimento diferente daquele a que nos acostumamos na nossa mundanização do Natal. O sofrimento e as mortes deste ano terrível nos convidam a isso.
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Instruções para um Natal diferente. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU