22 Dezembro 2020
"Uma atuação pública dos seguidores e seguidoras de Jesus, o Deus criança, deveria ser marcada pelo serviço amoroso e gratuito ao próximo, não pela imposição intransigente de suas vontades por meio de sua força política. Eles estão, indubitavelmente, mais próximos de Herodes do que de Jesus, tornando-se, por omissão ou por conivência, cúmplices do massacre de crianças em nosso tempo", escreve Jefferson Zeferino, doutor em Teologia.
Em várias tradições cristãs o evento do Natal serve de referência para se pensar o inimaginável – um Deus vulnerável. O Natal, portanto, vem carregado de força simbólica, podendo significar humildade, simplicidade, pobreza, esperança, vida, entre outras coisas. De todo modo, o Natal cristão mistura a celebração da vida com a expectativa do futuro. E o fato de que sua comemoração acontece no último mês do ano traz um tom de retrospectiva e perspectiva. Olha-se para trás, se pensa sobre aquilo que passou e, ao mesmo tempo, o novo ano já bate à porta, em muitos casos, os fogos de artifício (de preferência daqueles que não fazem barulho para não se assustarem os bebês e os animais) e os espumantes, champagnes e cidras já foram comprados ou recebidos naquelas cestas de fim de ano distribuídas por várias empresas. Se pode dizer, então, que Natal é período de comemoração. E comemorar é lembrar, recordar junto com outras pessoas, perceber o enredo da própria vida enredada na vida das outras pessoas – para se utilizar uma expressão cara a Paul Ricoeur.
A comemoração cristã tornada arte, não raro, traz a figura de um presépio, de um estábulo em que Deus está deitado na palha, rodeado por animais e por seus pobres pai e mãe. Um Deus menino, não branco e de periferia. Que chances teria Jesus hoje?
A hinologia não deixa passar despercebida a força da imagem de um Deus criança, como em Bate o Sino e Noite Feliz:
Bate o sino pequenino
Sino de Belém
Já nasceu Deus menino
Para o nosso bem
Paz na Terra, pede o sino
Alegre a cantar
Abençoe Deus menino
Este nosso lar
Ao soar o sino
Sino pequenino
Vai o Deus menino
Nos abençoar
***
Noite feliz, noite feliz! Ó Senhor, Deus de amor,
pobre e humilde nasceu em Belém. No presépio, Jesus nosso bem,
dorme em paz celestial, dorme em paz celestial.
(Franz Josef Mohr, tradução de Pedro Sinzig)
Em narrativas bíblicas, a singeleza das crianças é contraposta à crueldade dos poderosos. Ao se sentir ameaçado por um bebê, narra o Evangelho de Mateus, Herodes “mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus territórios, de dois anos para baixo [...]” (Mt 2,16). Neste mesmo contexto, se menciona uma fuga ao Egito (Mt 2,13-15), levando à imaginação de um Deus criança que é também um Deus refugiado. Esse Deus-vulnerável subverte a lógica do poder, uma vez que a salvação está na simplicidade, na interdependência, no esvaziamento de si em favor do outro (kenosis, cf. Fl 2,6-11).
A assim chamada literatura marginal, um movimento literário cultural atuante sobretudo na periferia de São Paulo, também preserva a noção de crianças em risco em virtude da ação dos poderosos. Esse poder dominante, tornado sistema, invisibiliza injustiças e mantém os algozes no anonimato. Mais que isso, os verdugos são as novas divindades, os novos imperadores, os reis de cada tempo incomodados pela singeleza das crianças e pela força salvadora da vulnerabilidade.
Trago aqui alguns recortes do conto de literatura marginal assinado por João Anzanello Carrascoza (2015), intitulado No morro[1]. O texto alarga horizontes e ajuda a interpretar o tempo presente:
Gostava de vê-la, mãe, vivendo silenciosamente a sua vida diante dele, sem gritos e resmungos, assim como ele à frente dela. E tanta era a força de seu olhar que a mulher sentiu como se lhe ardesse uma brasa na nuca e virou-se, desconfiada de que os anos a tivessem iludido e, ao girar, de repente, encontrasse não seu menino, e sim um homem, quase a bater a cabeça no teto, o homem que ele seria um dia, não a criança que agora era – e, imperceptivelmente, a usina de seu corpo o gerava. (p. 11-12).
A mãe o examinou como quem descasca uma cebola, tirando as películas que escondem o seu miolo sadio e, se o filho se enternecia vendo-a pelas costas – esperando que se virasse e lhe revelasse um sorriso de cumplicidade -, a mãe podia detectar o que ainda era semente nele, o que raiz, e reconhecê-lo pelo avesso, folha que se soltara de seu corpo, como a pena caída ainda o é do pássaro. (p. 12).
Bom, quando tinha a idade do filho, não sabia que haveria de passar a vida a fazer tantas coisas às pressas, e todas a dar em nada, que nada era aquele viver, só suportável por ter os olhos dele envolvendo-a em silêncio – grãos únicos de luz na nuvem de poeira que era. (p. 13).
O menino sai para desenhar no lado de fora do barraco.
O calor atordoava, mas o vento circulava pelas ruas do beco e vinha dar naquela ruela onde ele colhia mais uma tarde de sua vida. E era vento tão vigoroso, que entrou sem cerimônia no barraco, derrubou umas ripas de madeira e chegou até a mãe diante do fogão. Ela sentiu com gratidão aquele frescor e girou o corpo como se pudesse ver o vento, como se ele fosse um conhecido que ali chegasse para saudá-la, mas se não o viu, invisível que era, o visível agarrou-se aos seus olhos como um imã: emoldurado pelo retângulo da porta, estava seu menino, de costas, a cabeça baixa, a nuca semicoberta pelos cabelos, as espáduas magras, os cotovelos dobrados, a bermuda abaixo da cintura, revelando o rego das nádegas. Comoveu-se ao vê-lo daquele ângulo, que realçava ainda mais a sua fragilidade. A ele não tinha nada a oferecer senão a sua muda resignação, a comida que nem sempre conseguia comprar com os caraminguás das esmolas, a vida sem esperança. Às vezes, em desespero, tinha desejos de se atirar à frente dos ônibus que passavam velozes na avenida beira-mar, mas um fiapo de sonho a impedia, e lá estava ele, inconsciente de sua força, sem saber que, à semelhança de um prendedor no varal, segurava a existência dela como uma roupa seca. (p. 14-15).
De súbito, uns rapazes passaram correndo pelo beco em fuga; o menino sequer pôde ver quem eram, e já no encalço lhes seguiam uns policiais armados, aos gritos. [...] O menino ouviu outros estampidos. E, antes que os policiais sumissem morro acima, sentiu algo lhe beliscar o peito. [...] Um vulto se inclinou sobre ele, não conseguia distinguir seu rosto, mas sabia: era a mãe. E ela o abraçava com força, podia sentir suas costelas magras e sua boca de café. (p. 17).
Começou a tremer. Tentou dizer à mãe que sentia frio, mas não lhe saíam palavras. Parecia que ela o embalava no colo e o levava para dormir no colchão. Onde estava a bola? Queria pegá-la, mas faltava-lhe força. Abriu a mão, o lápis de cor caiu na terra. Ouviu outro estampido, remoto. Depois, o zunir do vento, desfolhando as páginas brancas de seu caderno, tingidas do mais vivo vermelho. (p. 18).
A perseguição e morte de crianças continua, não está apenas nos relatos bíblicos, ou na literatura marginal, está nas manchetes dos jornais e nas ruas das periferias. Com um tiro na cabeça e outro no abdômen duas meninas, de 4 e 7 anos, tiveram suas vidas ceifadas durante uma ação da polícia nesse mês natalino (cf. Santos & Tufani, 2020). Pelas ruelas em que, para muitos, as vidas não importam, a opressão de um sistema injusto que protege os verdadeiros carrascos dilacera famílias pobres e suas crianças. Elas são imoladas em sacrifício ao deus da morte, um deus branco, hétero, rico, machista, racista e cruel escondido em discursos meritocráticos, individualistas e de prosperidade. Que chance teria o Deus menino nesse contexto?
A teologia da libertação fala em baixar da cruz os crucificados e a ver no rosto das pessoas sofredoras o rosto de Jesus (cf. Sobrino, 1994). Como não enxergar o Deus criança nos corpos assassinados de tantos meninos e meninas cujas vidas não valem nada para muitas famílias tradicionais cristãs brasileiras? Assim como o sangue de Abel, assassinado por seu irmão Caim, o sangue delas também grita da terra (cf. Gn 4,10) e coloca em xeque nossa ética e política. Onde está o enfrentamento a essas injustiças? Onde estão as igrejas diante da cruz carregada por essas crianças? Há quem celebre o Natal e ignora que Deus se faz criança, a cada dia, nesses mais pequeninos (cf. Mt 10,41-42) e que das crianças é o reino dos céus (cf. Mt 19,14).
Há, para cristãs e cristãos, um chamado de construção de um mundo melhor para essas crianças. Um reino dos céus ou ainda, reino de Deus, constitui importante horizonte ético para a fé cristã. John Cobb (2016), efetivamente, oferece uma reinterpretação da terminologia basileia tou theou, que pode ajudar a pensar aquilo que se quer dizer aqui. Para ele, o termo basileia, comumente traduzido por reino ou reinado, poderia ser mais bem compreendido a partir da ideia de comunidade, e o theou em questão é o Deus de Jesus, que o chama de Abbá, expressão aramaica utilizada por bebês para fazer referência a uma figura parental. Uma comunidade do Abbá, portanto, pode ser caracterizada como uma comunidade marcada pelo carinho materno-paterno e pela simplicidade das crianças.
De modo diametralmente oposto se organizam as igrejas que vivem uma mensagem de dominação e que traduzem sua força política em imposição de pautas privadas. Para elas, o reino de Deus é uma teocracia, um poder a ser utilizado de cima para baixo de modo hegemônico. Há uma cegueira que atinge elites pastorais dominantes em relação ao Deus criança, um Deus vulnerável. Interessam-se por um Deus triunfalista que derrota seus inimigos e os enriquece.
Uma atuação pública dos seguidores e seguidoras de Jesus, o Deus criança, deveria ser marcada pelo serviço amoroso e gratuito ao próximo, não pela imposição intransigente de suas vontades por meio de sua força política. Eles estão, indubitavelmente, mais próximos de Herodes do que de Jesus, tornando-se, por omissão ou por conivência, cúmplices do massacre de crianças em nosso tempo.
Mais ainda, com Ricoeur (2003, 2006; cf. Zeferino & Fernandes, 2020), se poderia falar em uma dívida moral com as vítimas. Em que aqueles e aquelas que não podem mais contar suas histórias são assumidos eticamente por quem tem condições de narrar. Fazer memória do sofrimento, nominando algozes e lutando contra esquecimentos programáticos se faz tarefa ética diante dos rostos sofredores calados, marginalizados e esquecidos. O que seria da história do Deus menino se ela não continuasse sendo contada século após século? Se faz necessário enxergar Deus nos rostos das crianças vítimas de violência. Dizer o sofrimento de si e do outro está na base de uma teologia encarnada e de um humanismo encarnacional (Zeferino & Sinner, 2020), perspectivas herdeiras do nazareno crucificado pelas forças religiosas e políticas de seu tempo.
Que este Natal seja tempo de comemoração e que o período de advento que o antecede possa cumprir sua tarefa litúrgica de apontar à necessidade de conversão. Aqueles e aquelas que se entendem como seguidores de Jesus, sintam-se chamados ao arrependimento de suas práticas (mesmo que irrefletidas) geradoras de uma cultura de morte. Que nesse novo ano se afastem de Herodes, ou qualquer nome que ele possa receber por devaneios messiânicos, e abracem o Deus criança presente nos rostos das crianças sofredoras de nossas periferias para que possam, efetivamente, percorrer o discipulado de Jesus que, não raro, é o caminho do martírio.
No sacramento dos corpos martirizados de tantas crianças está a presença real de Cristo, o Deus criança que é também um Deus sofredor, crucificado. Que a presença de seus seguidores seja sinal de vida em meio ao caos e que, como provoca Westhelle (2008), pratiquem ressurreição, pois não se pode comemorar a manjedoura esquecendo da cruz.
[1] Para uma abordagem mais ampla acerca deste conto em relação com a filosofia de Ricoeur e a teologia pública ver nosso texto: A construção de pequenos espaços de cuidado e gratuidade como resistência às violências: uma relação entre pastoral e teologia da cidadania (Zeferino, 2019). Para uma outra abordagem sobre Teologia Pública e Literatura Marginal ver O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal (Zeferino & Fernandes, 2020a).
BATE o sino. Disponível aqui. Acesso 10 dez. 2020.
CARRASCOZA, João Anzanello. No morro. In: ANACAONA, P. (Org.). Eu sou favela. São Paulo: Editora Nós, 2015, p. 9-18.
COBB, John. Jesus’s Abba: The God who has not failed. Minneapolis: Fortress Press, 2016.
MOHR, Franz Josef. Noite Feliz, noite feliz! Tradução de Pedro Sinzig. Disponível aqui. Acesso 10 dez. 2020.
NOVA Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2013.
RICOEUR, Paul. A memória do sofrimento. in A hermenêutica bíblica. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 239-243.
RICOEUR, Paul. Memória, história, esquecimento. 2003. Textos Traduzidos de Paul Ricoeur. Instituto de Estudos Filosóficos. Universidade de Coimbra. Disponível aqui. Acesso: 22 mai. 2020.
SANTOS, Ana Paula; TUFANI, Vivi. Meninas de 4 e 7 anos são mortas em tiroteio em Duque de Caxias. 05 dez. 2020. G1. Disponível aqui. Acesso 10 dez. 2020.
SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008.
ZEFERINO, Jefferson.; FERNANDES, Márcio Luiz. O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal. Teoliterária, v. 10, n. 21, p. 470-497, 2020a.
ZEFERINO, Jefferson.; FERNANDES, Márcio Luiz. Sobre os sofrimento humano: uma hermenêutica da carne a partir de Richard Kearney e Paul Ricoeur. Reflexão, v. 45, p. 1-15, 2020b.
ZEFERINO, Jefferson.; SINNER, Rudolf von. O humanismo cristão de Dietrich Bonhoeffer: contribuições para uma epistemologia teológica. Teologia em Questão, n. 37, p. 37-63, 2020.
ZEFERINO, Jefferson. A construção de pequenos espaços de cuidado e gratuidade como resistência às violências: uma relação entre pastoral e teologia da cidadania. Estudos Teológicos, v. 59, n. 1, p. 152-165, 2019.
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Uma crônica de Natal: um Deus criança e seu massacre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU