12 Agosto 2020
"O vandalismo político irresponsável de Donald Trump e Jair Bolsonaro, dois trágicos líderes, tem uma matriz fantasmática que poderíamos definir grosso modo puberal-adolescente: A morte e a doença não existem e se existissem não me diriam respeito; a onipotência da minha imagem é imune a qualquer risco; se algum outro for atingido, faz parte do jogo mas este fato não determinará o fim do jogo do qual continuo senhor", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 11-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o psicanalista, "não é por acaso que a atitude negacionista pertence clinicamente ao tempo da adolescência patológica, onde a reivindicação absoluta da própria liberdade aparece desvinculada de qualquer referência ética àquela da responsabilidade, considerada apenas como uma impostura para enredar a força em si indomável de uma liberdade que não quer submeter-se a nada além de si mesma e que, acima de tudo, se recusa a assumir as consequências dos próprios atos".
"Se o trauma do Covid nos obrigou a ser adultos, - afirma o psicanalista italiano - a ter uma visão de vida que não pode se restringir àquela do nosso Ego, a verificar a impotência das nossas ações individuais se não forem concertadas com aquelas do nosso próximo, essa recente e nova onda antipolítica mostra, mais uma vez, o quanto seja antropologicamente difícil enxergar para além de nossa vida individual, apreender a dimensão solidária da liberdade, respeitar a dimensão coletiva do vínculo social".
As marchas negacionistas No-Covid se sucedem em diferentes regiões do mundo enquanto a epidemia continua semeando doenças e morte. O apelo à liberdade pisoteada pelo biopoder ressoa como um mantra não apenas entre as massas, mas também entre ilustres intelectuais.
Nas convenções não-Covid tudo isso é rodeado, de modo mais ou menos delirante, por motivos ideológicos, primeiro entre eles aquele da acusação do estado liberticida, do abuso de poder, do risco de um retorno totalitário possibilitado pela prorrogação política, desnecessária e meramente estratégica e instrumental, do estado de exceção.
Nessa manifestação sintomática, os extremismos políticos se tocam, não sem causar um efeito perturbador: é impressionante notar que a irritação diante das medidas sanitárias de segurança assimila discursos que encontram sua inspiração em ideologias profundamente antagônicas.
No entanto, a retórica libertária parece ser exatamente a mesma: a referência ao perigo Covid transforma as nossas democracias em máscaras inquietantes de um estado totalitário. Usar ainda a máscara, exigir ainda o distanciamento social, não considerar ainda totalmente vencido o vírus, significa abalizar um exercício autoritário de poder que comprime os nossos direitos inalienáveis, significa autorizar uma prática política claramente liberticida. Trata-se, em minha opinião, de uma crítica que tem como fundamento uma versão cegamente individualista da liberdade que não leva em conta nenhum critério de solidariedade e partilha e que, não por acaso, teve seus maiores e funestos representantes internacionais em Donald Trump e Jair Bolsonaro.
O vandalismo político irresponsável desses dois trágicos líderes tem uma matriz fantasmática que poderíamos definir grosso modo puberal-adolescente: “A morte e a doença não existem e se existissem não me diriam respeito; a onipotência da minha imagem é imune a qualquer risco; se algum outro for atingido, faz parte do jogo mas este fato não determinará o fim do jogo do qual continuo senhor”.
De que forma, então, deixar de ver a conexão entre essa matriz fantasmática que turva os defensores da retórica liberticida e aquela que incendeia, neste tão difícil verão em nosso hemisfério, as brigas pré-políticas entre os jovens, a tendência à descarga pulsional violenta que assume as formas erráticas da intolerância e do protesto agressivo contra tudo o que representa a ordem pública, a necessidade de limites, o respeito à lei?
Se o trauma do Covid nos obrigou a ser adultos, a ter uma visão de vida que não pode se restringir àquela do nosso Ego, a verificar a impotência das nossas ações individuais se não forem concertadas com aquelas do nosso próximo, essa recente e nova onda antipolítica mostra, mais uma vez, o quanto seja antropologicamente difícil enxergar para além de nossa vida individual, apreender a dimensão solidária da liberdade, respeitar a dimensão coletiva do vínculo social. Não é por acaso que a atitude negacionista pertence clinicamente ao tempo da adolescência patológica, onde a reivindicação absoluta da própria liberdade aparece desvinculada de qualquer referência ética àquela da responsabilidade, considerada apenas como uma impostura para enredar a força em si indomável de uma liberdade que não quer submeter-se a nada além de si mesma e que, acima de tudo, se recusa a assumir as consequências dos próprios atos.
Aqui novamente se destacam os paradigmas de Trump e Bolsonaro. Suas escolhas políticas imprudentes geraram consequências de morte e destruição que ceifaram seus povos. Seu vandalismo político não é, portanto, psicologicamente diferente daquele que inspira a inclinação para a briga, para destruir tudo, para a descarga agressiva como um fim em si mesma, para a rejeição da lei que sempre marcaram a dimensão, ao mesmo tempo desesperada e onipotente, da adolescência patológica.
O tempo das restrições às liberdades impostas pela solidariedade não pode ser tolerado por quem pensa na sua liberdade como um direito absoluto que vem antes de qualquer outro direito. Daqueles que esquecem que a vida adulta é aquela que se esforça por assumir, antes de tudo, as consequências dos próprios atos.
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Os negacionistas puberais. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU