20 Setembro 2016
“Como se dá o encontro entre o usuário do serviço e uma equipe? Como nesse encontro a equipe administra o seu saber e o seu não saber sobre a vida do usuário? Como o usuário administra o seu saber e o seu não saber na relação com a equipe? E como aí se situa uma prática de cuidado ou de não cuidado no campo da saúde?” Estas são perguntas que Merhy faz.
Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o doutor Emerson Merhy visita regularmente a Argentina há algumas décadas. Ele dá aulas no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Nacional de Lanús, e cada vez que vem aproveita para passar em hospitais e entrevistar os diferentes atores que costumam formar o sistema de saúde: médicos/as, enfermeiros/as, trabalhadores/as sociais, fisioterapeutas, psicólogos/as e empregados/as administrativos, entre outros.
Ele se interessa por conhecer como trabalham, de que forma experimentam um cotidiano de trabalho que implica, em maior ou menor medida, o cuidado do outro. São estas as questões que interessam a este sanitarista atípico que vem alardeando desde os anos 1970 uma medicina que se ocupe não tanto dos indivíduos, mas mais dos grupos populacionais, e que propõe que a construção da saúde não é uma questão da qual devem encarregar-se apenas os médicos, o saber especializado, mas a comunidade em seu conjunto.
A entrevista é de Verónica Engler e publicada por Página/12, 19-09-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Você fez parte de um grupo de profissionais da saúde que, na década de 1970, no Brasil, criou o movimento da saúde coletiva, no qual forjam uma proposta alternativa à biomedicina, que é a que majoritariamente se pratica em nossos países. Como foi o início deste movimento e qual era a visão?
Eu me tornei médico em 1973, em plena ditadura militar, que começa em 1964 (e termina em 1984). Então, muitos da minha geração fazemos uma opção por uma luta mais social, de esquerda, pela democracia e contra a ditadura. Tínhamos uma ideia de que a construção da democracia era também uma construção democrática nos diferentes campos da luta social. E na saúde, em particular, conseguimos reunir profissionais médicos e não médicos e misturamos muito a nossa experiência de luta em nossa prática profissional com a luta dos movimentos sociais.
Nas grandes cidades, como São Paulo, onde eu trabalhava, atuávamos em conjunto com as organizações de bairro e sindicatos, em uma luta contra a pobreza. E nesta luta, por exemplo, uma das nossas prioridades era uma vida nos bairros com água potável, porque não havia água limpa, com transporte para os trabalhadores, com saúde e educação. Esta mistura entre os diferentes setores constitui na saúde um movimento interessante, muito forte, que começa a lutar por uma reforma sanitária no Brasil.
Nós fazíamos uma crítica das políticas de saúde do governo militar, que eram muito fragmentárias. Não tínhamos um Ministério da Saúde, onde estivessem todas as políticas de saúde. A saúde dos trabalhadores pertencia ao Ministério do Trabalho ou a saúde dos estudantes ao Ministério da Educação. A nossa crítica apontava para essa fragmentação, mas também para o conhecimento na saúde pública, para o que se produzia sobre a situação da saúde da população.
O que, particularmente, criticavam?
Criticávamos o fato de que a saúde pública no Brasil era uma experiência muito distante da maneira como as pessoas viviam e com pouca capacidade de produzir conhecimento sobre a realidade efetiva, os modos de viver. Nos anos 1970, em São Paulo, tínhamos uma mortalidade de 100 crianças sobre cada mil que nasciam em um ano; é um número muito elevado. Hoje, com uma mortalidade de 20 sobre cada mil já nos assustamos.
A saúde pública não tinha a perspectiva de que o desenvolvimento da política de saúde caminhava em conjunto com a construção da democracia, tinham um olhar muito tecnocrático. Então, pudemos unificar uma rede de diálogo muito forte em diferentes Estados do Brasil, sobre a necessidade que tínhamos de formular novos conhecimentos, com novas referências, com novas perspectivas, com uma crítica mais radical da maneira como se compreendia o que era uma doença.
Nós propúnhamos a ideia de que a doença é um fenômeno social, não um fenômeno biológico, e que sua manifestação depende fundamentalmente do modo de viver das pessoas. E assim nos afastamos da ideia da saúde pública e começamos a falar de saúde coletiva, nos perguntávamos como a doença existe nos coletivos, que relações a doença tem com os grupos sociais, como a sociedade capitalista produz doentes.
Portanto, o movimento da saúde coletiva no Brasil começa como um movimento social, não como um movimento acadêmico, situado nas lutas contra as ditaduras e a luta contra o conhecimento oficial que a biomedicina constituiu.
Que novas práticas começaram a implementar nas equipes de saúde?
Nós trabalhávamos na periferia da cidade de São Paulo e passávamos a morar nos bairros, junto com os homens e as mulheres, vivíamos aí onde atendíamos como profissionais. Eu, por exemplo, começava a minha jornada no posto de saúde pela manhã, pela tarde fazia reuniões com os representantes sindicais que havia no bairro, com as mulheres que se organizavam na luta por escolas, por saúde, construímos movimentos de bairro, fazíamos uma rede de encontros.
Ou seja, no cotidiano começamos a fazer um trabalho fortíssimo de novas práticas de saúde junto com a população, mas de novas práticas organizacionais contra uma política que não reconhecia os direitos da saúde. Por exemplo, tentávamos mudar de uma maneira muito forte a formação de como as equipes de saúde eram constituídas. Trabalhávamos de forma mais horizontal, em equipes onde não se instituía uma hierarquia muito clara entre médicos e enfermeiras, onde a circulação do conhecimento era mais democrática. Outra questão importante era construir espaços de aprendizagem junto com a população, e a nossa referência era Paulo Freire.
Vocês começaram uma experiência na qual os próprios moradores integravam a coordenação dos serviços de saúde de cada bairro, certo?
Sim. Começamos a construir a experiência de controle social dos serviços. Isso é extremamente forte não somente porque implica uma relação mais democrática entre os trabalhadores, mas também uma relação diferente entre o movimento dos moradores e os serviços. Fizemos isso na região leste da cidade de São Paulo, uma região muito grande, com uma população muito grande, que hoje tem quatro milhões de habitantes, e nessa época éramos cerca de dois milhões.
Nós tínhamos muitos centros de saúde, e organizamos, junto com a população, uma divisão regional de representação entre os moradores e as equipes de saúde. Fizemos uma eleição para que os moradores escolhessem seus representantes em cada centro de saúde. Nós, como profissionais, nos reuníamos com os representantes e construíamos os planos de ação. Lembro-me em particular de uma eleição que fizemos em um domingo, para a qual se mobilizaram mais de 100 mil moradores para votar em seus representantes de 10 centros de saúde.
E em cada centro construíamos planos com a população do que íamos fazer no campo da saúde, por exemplo, campanhas para erradicar roedores que transmitem doenças ou, por exemplo, água potável, ou ações nas escolas com as crianças para construir práticas de saúde escolar. Depois, com a volta da democracia, o tema do controle social para as políticas de saúde incorpora-se em nossa Constituição de 1988.
De que maneira se envolvem com a reforma psiquiátrica nos anos 1980?
Antes do fim da ditadura, começamos a discussão sobre uma sociedade sem manicômios, com um olhar que colocava o centro da nossa prática não na doença, mas na produção da vida das pessoas como uma produção coletiva. Nós aprendíamos com a reforma psiquiátrica italiana de Franco Basaglia, que foi ao Brasil e participou de muitas discussões. Aprendemos que a doença é importante, mas que, para que se produza a vida, é preciso deixar a doença um pouco fora.
Um esquizofrênico, por exemplo, é muito mais que um esquizofrênico; é um artista, um trabalhador, um artesão, é companheiro, é casado. Então, começamos a não nomear a esquizofrenia como o núcleo principal da nossa prática de cuidado. A ideia é que a nossa prática de cuidado potencialize a produção de novos sentidos no viver, novos mundos para si mesmo, apesar da existência da doença. Esta experiência da reforma psiquiátrica também foi uma escola para a nossa experiência da reforma sanitária.
Nos anos 1990, no Brasil, dá-se um processo de expansão da saúde pública, o contrário do que acontecia na Argentina, onde houve um encolhimento do público e um crescimento da medicina privada. Que lugar tinha a visão da saúde coletiva nessa expansão?
Sempre houve uma luta muito forte. Por um momento, a biomedicina era vista mais como uma disputa, como se fosse o serviço privado versus o público; depois não tanto. Depois, a biomedicina também penetrou os serviços públicos. Hoje, predomina a visão de uma medicina privatista nas escolas médicas em geral no Brasil. É uma perspectiva muito estreita do que é a prática de cuidado, que tem que a ver com o comércio.
Hoje, temos uma dificuldade muito grande para manter a construção que fizemos na década de 1990, porque há um movimento muito forte, muito privatista, com os médicos à frente. Estamos vivendo uma situação muito crítica, que me parece que é a destruição do Sistema Único de Saúde (SUS). Entendo que hoje estamos nessa situação porque a esquerda brasileira perdeu sua capacidade de renovar-se, e aderiu a coisas que me parecem impossíveis, como imaginar que um Estado capitalista podia ser um Estado de transformação social. Então, na saúde temos hoje uma volta da biomedicina muito forte e de uma biomedicina muito privatista. Parece-me que tem a ver com a perda da nossa capacidade de disputar a formação profissional.
Nós disputamos a organização dos serviços de saúde, mas perdemos na universidade a capacidade de modificar a formação. Os biomédicos privatistas dominaram as escolas médicas. E isto é um paradoxo. Ao mesmo tempo que nós, junto com os movimentos sociais, desenvolvemos mudanças importantes na saúde, não fizemos o mesmo na educação. Até hoje a universidade pública brasileira é regulada pela lei da ditadura.
Você também defende a ideia de que o paciente deve participar da formulação de seu projeto terapêutico.
Sim, claro. Neste sentido, na década de 1990, tive a sorte de participar de algumas das experiências em grandes cidades, como Campinas, São Paulo ou Belo Horizonte. Nessa época, houve um forte crescimento da estrutura pública e começamos a ver como substituir a prática biomédica que tínhamos de uma maneira muito forte pelas práticas que experimentamos no momento da saúde coletiva, de uma horizontalização maior na equipe e uma democratização com as pessoas, na atenção, na possibilidade de que elas participem na formulação de seu próprio projeto terapêutico. A ideia era que a pessoa que vinha para ser consultada, com sua experiência, com seu conhecimento de viver, construiria conosco seu projeto terapêutico. Era uma ruptura do domínio do saber único sobre a vida do outro.
Você desenvolveu o conceito de “trabalho vivo em ato” no campo da saúde, que considera que na tarefa de cuidar os trabalhadores e as trabalhadoras tomam decisões individuais que determinam a qualidade do serviço que oferecem. Poderia desenvolver o conceito a partir das pesquisas que você faz?
Eu participei de muitos encontros com os trabalhadores, e sempre me inquietava muito a ideia de que nos mesmos serviços, em uma equipe com as mesmas regras, com os mesmos salários, com a mesma jornada de trabalho, nem todos trabalhavam de uma maneira igual. Eu tinha uma perspectiva mais marxista e não conseguia compreender essa situação com a teoria que eu tinha do trabalho: como as equipes de trabalhadores na mesma normatividade trabalham de maneira diferente na construção de um projeto terapêutico.
Eu comecei a elaborar uma problematização da teoria que interroga a relação entre o trabalho vivo e o trabalho morto. A perspectiva marxista tem uma formulação conceitual que supõe que juntamos trabalho morto com trabalho vivo. O trabalho morto é o produto de um trabalho, como a cadeira em que estou sentado, na qual antes havia trabalho vivo. Então, eu imaginei no cotidiano como a equipe de saúde fazia a gestão do seu trabalho vivo. E descobri que na prática de cuidado há um trabalho vivo em ato que é quando o trabalhador escolhe o que vai fazer. Sob a mesma normativa, no mesmo edifício, no mesmo horário, um trabalhador pode fazer uma maneira de cuidado diferente daquela que outro realiza. Então, comecei a estudar o que hoje chamo de “micropolítica do trabalho vivo em ato”, que é a maneira como o trabalhador relaciona seu trabalho vivo em ato com suas éticas, com sua ideia do que é a vida do outro, e constrói uma experiência muito singular.
Na Argentina, mas não somente aqui, detecta-se que o primeiro lugar de expulsão das pessoas do sistema de saúde situa-se na janela de admissão dos hospitais. Nesse momento se dá o encontro entre um empregado administrativo e a pessoa que quer ser atendida no hospital.
Sim, isto também é muito comum no Brasil; é um fenômeno importante. Isto é assim porque creio que há um esforço de burocratização do processo relacional para não permitir o acesso do usuário a certos níveis de atenção. Mas há uma coisa ainda mais perversa, e é a inversa: permite-se ao usuário entrar no serviço para, em seguida, não possa circular até chegar à atenção de que necessita.
Quando investigamos no cotidiano, o que encontramos é que os trabalhadores, às vezes de uma forma muito clandestina, possibilitam outros fluxos que permitem desbloquear a própria burocracia. Portanto, muitos trabalhadores impõem regras ao usuário, mas quando se envolvem com determinados usuários criam uma certa clandestinidade por seu trabalho vivo, vão fazendo interrupções nos bloqueios, e inventam novos fluxos para que essa pessoa acesse a atenção de que necessita.
Há uma tensão muito forte entre o coletivo e o individual na prática de cuidado, e os trabalhadores da saúde, com o manejo que temos do processo relacional, podemos nos implicar de uma maneira muito forte com a vida do outro, mas também podemos afastar-nos e dizer: “este é um problema seu, e não me interessa”.
Fizemos experiências que nos mostram que quando há uma gestão coletiva do processo de trabalho e as decisões individuais podem ser postas em comum em um espaço de diálogo, há uma possibilidade maior de construir na equipe de saúde uma gestão mais particular do trabalho. Isto é fundamental para que possamos compreender novas possibilidades na gestão das organizações.
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“A doença não é um fenômeno biológico, mas social”. Entrevista com Emerson Merhy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU