12 Mai 2020
Do Sul para o Sul e daí ao mundo, há poucos pensadores tão profundamente lúcidos e precisos como o filipino Walden Bello. Sociólogo, diretor executivo da organização Focus on the Global South, professor de Sociologia e Administração Pública da Universidade das Filipinas e pesquisador associado do Transnational Institute, Walden Bello cravou nas costas do Ocidente o espinho de um conceito que o tornaria famoso em todo o planeta e que, hoje, recobrou toda a sua enérgica legitimidade: em 2002, escreveu o livro “Desglobalização: Ideias para uma nova economia mundial” (Vozes).
O livro se tornou um dos manuais do movimento antiglobalização. O oportunismo das extremas direitas do Norte e de alguns social-democratas adeptos à soberania fez com que as ideias desta obra fossem literalmente roubadas com finalidades eleitorais. O ensaio contém muitas chaves que excedem o já indigesto catálogo de livros-diagnósticos sobre o liberalismo. Bello demonstrava a doença genética de uma globalização que pretendia curar o mundo, a forma como esta globalização sacrificava o desenvolvimento dos países do Sul e propunha uma escala de medidas agora reatualizadas pela pandemia que paralisou as sociedades, em 2020.
Suas ideias voltam a ressoar em todas as partes, muito especialmente a que promove a reorientação das economias mediante uma transferência da produção destinada à exportação para a produção concentrada nos mercados locais. Só para dar um exemplo: a falta dramática de máscaras protetoras em todo o mundo (eram produzidas na China) demonstra o acerto de seu enunciado.
Walden Bello é autor de muitos livros sobre a globalização e, em 2003, foi coroado com o Prêmio Nobel Alternativo. Bello é também professor adjunto de Sociologia na Universidade do Estado de Nova York, em Binghamton, e foi membro da Câmara de Representantes das Filipinas (parlamento, 2009-2015). Seus últimos livros publicados em inglês (2019) são: The Global Rise of the Far Right (A ascensão global da extrema direita), e Paper Dragons: China and the Next Crash (Dragões de papel: a China e o próximo Crash).
Nesta entrevista ao jornal Página/12, o sociólogo filipino explora esse “novo mundo” que quase tocamos com os dedos, sem que seja ainda real. Robusto em seus delineamentos, Bello admite as possibilidades oferecidas, sem por isso esconder os limites de uma transformação que, afirma, depende da ação das forças progressistas e da reconfiguração do Sul como ator renovado.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 10-05-2020. A tradução é do Cepat.
Você disse muitas vezes que era preciso se dirigir para um sistema pós-capitalista. As pessoas sentem que chegou o momento. Outros duvidam. Você pressente que a crise provocada pela pandemia reúne as condições para reconfigurar tudo?
Sim, mas me explico. Acredito que as possibilidades que o momento oferece, a conjuntura, são o resultado de duas coisas: a crise objetiva do sistema e a força subjetiva que pode atuar sobre esta crise. Minha sensação é que a crise financeira mundial de 2008 foi uma profunda crise do capitalismo, mas o elemento subjetivo ainda não havia alcançado uma massa crítica. Devido ao crescimento impulsionado pelos gastos do consumidor e financiado com dívida, a crise surpreendeu as pessoas, mas não acredito que tenham se distanciado tanto do sistema. Hoje, é diferente. O nível de descontentamento e alienação com o neoliberalismo é muito alto, no Norte global, devido à incapacidade das elites enraizadas em enfrentar o declínio, melhorar os níveis de vida e tratar a desigualdade vertiginosa nos anos que seguiram à crise financeira.
No Sul global, a crise de legitimidade já havia afetado o neoliberalismo, a globalização e suas instituições centrais, como a União Europeia, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, inclusive antes da crise de 2008. A pandemia da covid-19 surgiu por meio de um sistema econômico global já desestabilizado, que sofria uma profunda crise de legitimidade. As pessoas tinham a sensação de que as coisas estavam realmente fora de controle. A raiva, a frustração e a sensação de que as elites e os poderes governantes perderam o controle, e que o sistema foi para o inferno está muito espalhada hoje, em contraste com as sequelas imediatas da crise de 2008. É este turbilhão, é precisamente este elemento subjetivo que deve ser aproveitado pelas forças políticas.
O sistema global, é claro, tentará recuperar a “velha normalidade”, como demonstra a infame teleconferência do Goldman Sachs, cujos participantes concordaram em que não houve uma crise sistêmica induzida pela covid-19 e que o importante é garantir um retorno prolixo à ordem antes da covid-19. Mas não se deve obrigar o gênio a voltar para a garrafa. Simplesmente, há muita raiva, muito ressentimento, muita insegurança que se desprenderam, e só a esquerda e a extrema direita estão em condições de aproveitar esta tormenta subjetiva. Então, sim, o impulso é para um sistema pós-capitalista ou, de qualquer modo, pós-neoliberal, e a pergunta chave é: quem será capaz de aproveitar toda essa raiva desatada e a dirigir?
Aí se tece o horizonte futuro. O fracasso da democracia liberal em melhorar a vida das pessoas e a igualdade levou ao surgimento de movimentos populistas, em todo o mundo. De certo modo, a extrema direita sequestrou a desglobalização. Esta crise expôs como nunca antes a grande fratura do mundo. O cenário posterior ao vírus pode ser uma oportunidade muito melhor para que a extrema direita chegue ao poder?
Infelizmente, é a extrema direita que está melhor posicionada para aproveitar o descontentamento global, porque, inclusive antes da Covid-19, os partidos de extrema direita já eram elementos chaves das posições e programas antineoliberais promovidas pela esquerda independente. Por exemplo, a crítica à globalização, a expansão do “estado de bem-estar” e uma maior intervenção estatal na economia. O que a extrema direita fez foi apresentá-los como um paradigma próprio. Na Europa, os partidos de direita radical abandonaram parte dos velhos programas neoliberais que defendiam, por uma maior liberalização e menos impostos, e se puseram a dizer que eram a favor do Estado de bem-estar e de uma maior proteção da economia nacional, diante os compromissos internacionais. Mas, claro, apenas em benefício das pessoas com a “cor de pele correta”, a “cultura correta”, a população étnica “correta”, a “religião correta”.
Essencialmente, é a velha fórmula “nacional-socialista” inclusiva de classe, mas racial e culturalmente excludente. A extrema direita oportunista está, infelizmente, à frente da esquerda neste momento. O amplo movimento progressivo terá que se movimentar mais rápido e se assegurar de que os social-democratas desacreditados na Europa e os democratas de Obama e Biden, nos Estados Unidos, não voltem a canalizar a política para um novo compromisso com um neoliberalismo moribundo. Se isto acontece, então essa cena apavorante que aparece no filme Cabaret, em que pessoas comuns que apoia os nazistas cantam “O futuro nos pertence”, quase com segurança se tornará realidade.
A esquerda tem muitas ideias, mas não está unida. Além disso, se a crise demonstrou a importância das ideias da esquerda, não há líderes legítimos para as praticar. Em resumo: como criar a base que a tornará uma força material?
Este é o desafio. Nós, na esquerda, temos uma grande quantidade de ideias, mas uma pobreza de estratégias políticas e líderes unificadores eficazes. E onde há personalidades carismáticas, estas parecem estar principalmente à direita. No entanto, estou certo de que estas estratégias e pessoas surgirão no seio da esquerda. A dinâmica da mudança histórica inevitavelmente produzirá isto, e algumas vezes nas circunstâncias mais improváveis. As únicas perguntas são quem, como, onde e quando, e se isto surgirá nesta geração.
Os progressistas têm uma série de boas ideias e estratégias desenvolvidas, nas últimas décadas, sobre como avançar para um sistema pós-capitalista. A esquerda apresenta paradigmas como decrescimento, desglobalização, ecofeminismo, soberania alimentar e Bem Viver. O problema é que estas estratégias ainda não encontraram uma base massiva, e uma grande parte do problema está no fato de que as pessoas associam a esquerda com a esquerda centralizada, ou seja, os social-democratas na Europa e, nos Estados Unidos, o Partido Democrata. Ambos estavam envolvidos com o velho sistema neoliberal que apresentavam com um “rosto humano”.
No Sul global, os governos democráticos liberais que suplantaram as ditaduras, nos anos 1980, muitos deles dirigidos por coalizões que incorporam progressistas, também foram desacreditados devido a sua adoção de medidas neoliberais, ao passo que a “Onda Rosa” na América Latina se depara com suas próprias contradições, e os estados comunistas no leste da Ásia se tornaram sistemas capitalistas de estado. Contudo, acredito que não podemos reduzir a esquerda. A história tem um movimento dialético complexo e, às vezes, há desenvolvimentos inesperados que conduzem a resultados progressivos ou regressivos. Permita-me dizer isto, ainda que a situação não pareça tão boa para os progressistas neste momento, estou certo de que nossa equipe vencerá no final. A Segunda Guerra Mundial não acabou em Dunquerque, ainda que, naquele momento, parecia que tudo apontava para uma vitória alemã.
Tampouco pode ser excluída uma nova aliança entre as classes médias e formas mais autoritárias de liberalismo, conforme aconteceu no Chile, nos anos 1970, com o único propósito de não perder privilégios.
Sim, é claro, esta é uma possibilidade. Ao mesmo tempo, o modelo chileno de uma aliança de classe média-elite, baseada em um programa neoliberal clássico, já não poderia ser uma opção. Uma nova aliança autoritária provavelmente teria que incluir grandes setores das classes baixas, para ter um grau significativo de legitimidade, e esta incorporação das classes baixas poderia ser conquistada fazendo algumas concessões econômicas paternalistas e dirigindo as energias da aliança contra as minorias e os migrantes. Da Índia, onde o BJP (partido no poder) está criando um estado antimuçulmano, passando pelas Filipinas, onde os consumidores de drogas são bodes expiatórios dos males da sociedade, até a Europa e os Estados Unidos, onde os migrantes são o foco do ódio da maioria branca “inclusiva só para sua classe”, é isto o que está acontecendo.
Você cunhou a palavra desglobalização em seu livro, “Desglobalização: Ideias para uma nova economia mundial”. Neste momento, sente que as condições são melhores para tornar realidade essa desglobalização teorizada no livro?
Sim, por exemplo, a loucura das cadeias de fornecimento mundiais demonstrou que era completamente inoperante, durante a crise do coronavírus. Devido aos cálculos neoliberais, baseados na redução do custo unitário de produção, as elites corporativas, com o consentimento de seus governos, transferiram grande parte de suas instalações industriais para a China, de modo que quando a produção chinesa parou, durante a crise da covid-19, muitos países careciam de componentes industriais fundamentais e descobriram que até mesmo produzir máscaras e outros equipamentos de proteção era algo que já não eram capazes.
Ao mesmo tempo, a interrupção induzida pela covid-19 da cadeia de fornecimento agrícola mundial ameaça uma carestia generalizada. Em vários países do Norte global e do Sul global, permitiu-se que seus setores agrícolas locais esmoreçam. Entre 30 e 50% dos alimentos que são consumidos na China, no sudeste asiático e na América Latina, agora, não são produzidos localmente, mas são fornecidos por cadeias de suprimento agroalimentares mundiais e regionais. Acredito que haverá um movimento para uma maior autossuficiência na produção industrial e agrícola. A pergunta é se tais estratégias serão desenvolvidas por regimes de direita ou governos progressistas.
Dos quinze pilares incluídos em seu conceito de desglobalização, quais considera que são mais urgentes de agora em diante?
Penso que o mais urgente é a reorientação da produção para o mercado interno e desvincular a produção local das cadeias de fornecimento mundiais, através de uma política comercial progressiva, uma política industrial agressiva e uma política agrícola que promova a autossuficiência alimentar e a soberania alimentar. Novamente, é importante que tais políticas sejam empreendidas por progressistas e não por nacionalistas de direita que as utilizarão principalmente para servir aos interesses do grupo étnico e cultural dominante contra as minorias e os migrantes.
O que poderia substituir a globalização como novo protótipo, depois da pandeia de Covid-19? Em uma entrevista recente ao Página/12, o sociólogo francês Michel Wieviorka disse: "o pior será pior e o melhor será melhor".
Trata-se agora de uma corrida entre uma desglobalização progressista e uma regressiva, nacionalista. No caso da primeira, “o melhor será melhor”. Caso vença a segunda, concordo com Wieviorka em que “o pior será pior”.
Em sua ideia de desglobalização, não propôs que os países se afastem da comunidade internacional, mas, sim, a construção de um modelo alternativo. Esta crise muda sua própria perspectiva desse modelo?
Inclusive após a pandemia e em um processo de desglobalização, será importante uma interação criativa com a comunidade internacional. Como sempre disse, a desglobalização não se tratava de se desvincular da economia internacional, mas de conseguir uma relação equilibrada entre a economia local e a economia internacional, em que a integração da economia nacional não se sacrificasse no altar da integração liderada pelas empresas de diferentes partes do mundo.
Não se pode sacrificar a economia nacional por uma economia globalizada. Um alto grau de autossuficiência na produção agrícola e industrial é uma característica central da economia nacional. Mas este é apenas um aspecto do paradigma da desglobalização. Também seria importante a promoção radical da igualdade, que é crítica tanto por razões de justiça social, como pela expansão da demanda interna. Urge a democratização da tomada de decisões econômicas, da cúpula do Estado à fábrica, e a elaboração de uma relação benigna entre a economia e o meio ambiente, que às vezes se chama de o “novo acordo verde”.
A Argentina foi o último país do mundo a sofrer o brutal assalto do hiperliberalismo e a globalização, entre os anos 2015 e 2020. Depois, o governo mudou. Para países como a Argentina e, em geral, para os países do Sul, esta crise representa uma nova oportunidade para recuperar sua soberania, sua posição no mundo e sua identidade?
Sim, é claro, mas como disse anteriormente, estas oportunidades surgirão da dialética e a sinergia entre a crise objetiva e a resposta à crise, proveniente de grupos e indivíduos progressistas. O problema é que, até mesmo com as melhores intenções, não se pode forçar o surgimento do novo dentro do velho. As coisas acontecem. Às vezes, é preciso apenas ser paciente. Mas quando as estrelas começam a se alinhar, então, o tempo é tudo. É a covid-19 o equivalente à Primeira Guerra Mundial, ou seja, aquele momento histórico onde tudo se desmoronou e os governantes já não podiam governar da mesma maneira antiga, para usar a frase de um famoso revolucionário? Talvez. E devemos recordar que dessa crise anterior surgiram tanto o socialismo como a barbárie, para citar Rosa Luxemburgo.
Há décadas que se sonha com um ‘New Deal’ interno para o Sul. Ficou nisso, um sonho.
Talvez ocorra, talvez não. Uma coisa que não devemos esquecer é que a crise do neoliberalismo e a globalização, junto com a deterioração do conflito entre China e os Estados Unidos, pode criar esse espaço de manobra para os países do Sul, que já existia antes de 1989 em razão do conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética. Esse conflito foi uma das condições para as vitórias dos movimentos de libertação no Vietnã, Cuba, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau. Daí também nasceu o Movimentos dos Países Não Alinhados, após a Conferência de Bandung, e surgiu a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), sob a inspiração do grande economista argentino Raúl Prebisch. A solidariedade do Sul global, que sempre se sentiu em todos os países e diferentes regimes, nasceu durante esse período.
Depois da crise financeira de 2008-2009, a pandemia de covid-19 é a segunda grande crise da globalização neste século. Mas mesmo antes desta crise, na Argentina, Equador, Chile, França, com os coletes amarelos, Argélia, Líbano, Irã e Hong Kong, havíamos visto o renascimento de um sujeito social globalizado. Esses movimentos de protesto global podem ser uma das forças de transformação no mundo?
Sim, definitivamente. Estas são algumas das forças que me dão esperança sobre o eventual triunfo da esquerda. A sede das pessoas por justiça e igualdade sempre aparecerá na superfície. O importante é garantir que a esquerda lidere estas lutas e que a direita não sequestre e perverta estas energias que brotam de baixo para sua agenda autoritária oportunista, como fez na Europa, Índia, Estados Unidos e Filipinas.
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“É a extrema direita que está melhor posicionada para aproveitar o descontentamento global”. Entrevista com Walden Bello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU