14 Março 2020
“A esperança não está nesse sistema tecnológico distorcido e estéril de comer aquilo que saiu de um laboratório, mas em voltar à Cidadania da Terra e ser parte dos ciclos da vida natural. A esperança está, sim, em recuperar a terra, nosso alimento e nossos corpos", escreve Vandana Shiva, física, ecofeminista e ativista ambiental, em artigo publicado por El Salto, 13-03-2020. A tradução é do Cepat.
Recentemente, li uma coluna de George Monbiot, no jornal The Guardian, e sua visão distópica do futuro me deixou impressionada. Nela, ninguém trabalhava nos campos e as pessoas se alimentavam com alimentos “falsos” produzidos por grandes fábricas, a partir de micróbios.
Monbiot terminava seu artigo dizendo que esse alimento sintético nos permitirá devolver os espaços ocupados por cultivos, tanto terrestres como marinhos, a seu estado natural, favorecendo a vida silvestre e reduzindo as emissões de carbono. Segundo suas palavras, “essa forma de alimentação nos devolve a esperança. Em breve, seremos capazes de alimentar o mundo sem devorá-lo”.
Ao lê-lo, não pude evitar que me viesse à cabeça a famosa frase de Einstein: “Não podemos resolver os problemas utilizando a mesma maneira de pensar que os originou”.
A ideia de que criar alimentos em laboratórios de última geração pode salvar o planeta faz parte do mesmo modelo de pensamento que nos levou para onde estamos agora, ou seja, a ideia de que somos seres diferentes da natureza e de que funcionamos fora dela.
Esse paradigma se tornou forte na era industrial dos combustíveis fósseis e é a base da agricultura industrial que destruiu o planeta, o meio de vida dos agricultores e nossa saúde.
Infelizmente, essa mentalidade permanece predominante no futuro traçado por Monbiot, com a total industrialização de nossos alimentos e de nossas vidas, o que significa, em última análise, a industrialização do ser humano (já que “somos o que comemos”) e o último passo para dar forma a nosso terracentrismo e nosso ser ecológico.
Converter a “água em alimento” é uma pretensão que vem dos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando se afirmava que os fertilizantes químicos produziriam “pão do ar”. Em vez disso, agora temos partes do oceano mortas, gases do efeito estufa (como o óxido de nitrogênio, que é 300 vezes mais prejudicial ao meio ambiente do que o CO2) e desertificação.
Somos parte da natureza, não algo separado e fora dela. O alimento é o que nos conecta à terra, à sua diversidade, às florestas que nos cercam, graças aos bilhões de micro-organismos presentes em nosso microbioma intestinal, que são os que mantêm nossos corpos saudáveis por dentro e por fora.
Comer é um ato ecológico, não um ato mecânico ou industrial. A rede da vida é uma rede alimentar. Não podemos separar a comida da nossa vida, da mesma maneira que não podemos nos separar da terra.
O problema não está em cultivar a terra, mas em cultivá-la de maneira industrial. Esse sistema de produção massiva de alimentos, que utiliza de forma intensiva produtos químicos e combustíveis, dá origem a 50% das emissões de gases do efeito estufa que estão aquecendo o planeta e colocando em risco a agricultura.
Destruiu 75% do solo, 75% dos recursos hídricos e poluiu nossos lagos, rios e oceanos. A agricultura industrial reduziu a variedade de 93% das sementes até quase a extinção.
E 75% das doenças crônicas que sofremos hoje em dia têm origem em alimentos industriais.
Assumir que essa maneira distorcida e violenta de cultivar a terra (imposta ao mundo há menos de um século) é a única maneira que as pessoas têm e podem cultivar, denota uma grande cegueira em relação à diversidade cultural e às diferentes práticas agrícolas, ao mesmo tempo em que representa uma ameaça ao patrimônio cultural de todos os países do mundo.
Essa defesa apaixonada do “alimento falso” coloca em risco nossa conexão com a terra e a satisfação que produz ingerir alimentos cultivados com cuidado e inteligência por outros seres humanos.
Ao suprimir os agricultores, nosso bem-estar, nossa saúde e a saúde do planeta são ameaçadas, pois são eles que velam e regeneram a terra. Se fizermos dos alimentos de laboratório a base de nossa dieta, estaremos cada vez mais próximos de uma existência robotizada, não participativa, estéril e dependente da tecnologia, que nega a criatividade da vida inteligente.
A palavra “agricultura” provém da combinação das palavras latinas “agrum” (que significa terra, campo, estado) e “cultura” (que significa “cuidar”, “crescer”, “cultivar”). Portanto, o significado etimológico de agricultura é “cuidar da terra”.
A agricultura real é cultivar de maneira natural, ao modo da natureza, segundo as leis da ecologia. O alimento real é um subproduto dessa economia do cuidado da terra. Protege a vida de todos os seres terrestres, ao mesmo tempo em que nutre nossa saúde e nosso bem-estar.
“As políticas agrícolas sensatas” não apenas existem, mas já estão sendo aplicadas em todo o planeta. A agroecologia, que compreende princípios ecológicos comuns como a agricultura ecológica, a permacultura, a biodinâmica, a agricultura regenerativa de cultivos naturais, entre outros, tem sido reconhecida como o método mais sustentável e equitativo de cultivar a terra, capaz também de alimentar o planeta em tempos de crise climática.
Os interesses da indústria agrícola e seus monopólios, assim como a apatia dos governos, impedem que a agroecologia se converta no principal sistema para produzir alimentos.
Em Navdanya, obtemos alimentos saudáveis a partir de um sistema que conserva a biodiversidade com o uso abundante de polinizadores e potencializa a matéria orgânica do solo, transformando-o em uma grande reserva de carbono e nitrogênio. Esse ato de cuidar da terra nos permite reparar os ciclos danificados de carbono e nitrogênio causadores da mudança climática.
Já estamos beirando o precipício de uma emergência planetária, uma emergência de saúde e uma crise que coloca em risco a sobrevivência dos agricultores.
O ‘alimento falso’, que promove um modelo industrial de alimentação e vida e que ativa a ilusão de que podemos viver fora dos processos da natureza, não fará outra coisa a não ser acelerar essa queda rumo ao colapso. Mais ainda, conseguirá destruir a democracia alimentar e aumentar o controle corporativo sobre o alimento e a saúde.
Por outro lado, o alimento real, produto de uma agricultura saudável e cuidadosa com a Terra e as pessoas, nos oferece a oportunidade de rejuvenescer a terra, nossa saúde, nossas economias alimentares, a liberdade de se alimentar e manter nossas diversas culturas em torno da comida.
Com o alimento real, podemos descolonizar nossas culturas alimentares e nossa consciência. Recordar que o alimento está vivo e que nos dá a vida. O alimento é a moeda da vida.
A esperança não está nesse sistema tecnológico distorcido e estéril de comer aquilo que saiu de um laboratório, mas em voltar à Cidadania da Terra e ser parte dos ciclos da vida natural. A esperança está, sim, em recuperar a terra, nosso alimento e nossos corpos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Recuperar a terra, nosso alimento e nossa agricultura. Artigo de Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU