21 Março 2020
“Manter as bolsas abertas, da forma como estão funcionando, e deixar em liberdade os movimentos especulativos de capital é como colocar um cachorro raivoso na sala de cirurgia, onde está em luta a vida e a morte, para salvar o doente. É uma gravíssima irresponsabilidade e ninguém poderá estranhar que, caso essas medidas não sejam tomadas já, chegamos à catástrofe”, escreve Juan Torres López, economista espanhol, professor na Universidade de Sevilha, em artigo publicado por Público, 20-03-2020. A tradução é do Cepat.
As bolsas de valores nasceram para desempenhar funções essenciais nas economias de mercado: canalizar a poupança para o investimento que a atividade produtiva necessita, proporcionar liquidez para aqueles que vendem títulos de qualquer espécie (empresas, Estado ou indivíduos), fixar o preço dos ativos financeiros e, como este se estabelece em função do lucro esperado dos títulos, que por sua vez depende de como as economias se movimentam, atuar como uma espécie de termômetro do que acontece em todas elas, nas empresas e inclusive na ação dos governos.
No entanto, nas últimas décadas, as bolsas se desnaturalizaram. Em vez de servir como um instrumento para que os “papéis” (títulos financeiros) financiem e proporcionem recursos que coloquem em movimento a atividade produtiva, os papéis se tornaram o próprio objeto das compras e vendas. A grande maioria das moedas em circulação, por exemplo, não são compradas para sair em viagem, para comprar produtos ou para investir em outros países, mas apenas para buscar obter lucros com o câmbio de suas cotações.
E o mesmo que acontece com as ações: a grande maioria não é comprada porque a empresa que a emitiu se sairá bem e se deseja receber seus bons dividendos, mas para obter rentabilidade enquanto subir um pouco seu preço. Ou, o que é pior, gerar a partir daí um “produto derivado”, um seguro ou algo parecido, mas muito mais complexo, que também se vende e compra, buscando ter rentabilidade puramente especulativa.
Há quarenta ou cinquenta anos, tais tipos de operações não valiam a pena ser realizadas porque eram lentas, os intercâmbios eram custosos e as quantidades que podiam ser vendidas ou compradas não muito grandes. Contudo, com a chegada das tecnologias da informação mudou tudo. Com computadores e fibras muito rápidos e algoritmos que tomam as decisões automaticamente, milhares de operações podem ser realizadas em milissegundos. Dessa forma, obtém-se um lucro muito pequeno em cada operação, mas como são feitas milhões e milhões ao longo do dia, sem parar (pois as máquinas vão engatando uma bolsa com outra pelo planeta), os lucros são muito grandes.
Os bancos (que ganham dinheiro emprestando, ou seja, gerando dívida) viram uma oportunidade de ouro nesse tipo de negócio e se dispuseram a tudo o que fosse necessário para financiá-lo. E, assim, é possível que quando alguém se dispõe a investir, por exemplo, 1.000 euros, disponha desde o início e automaticamente de 1.500, 2.000 ou até mesmo 3.000, que recebeu emprestado para que multiplique o volume de operações. Uma das causas do crescimento exponencial da dívida em nossas economias.
As consequências de tudo isso foram muito claras. Em primeiro lugar, os negócios financeiros especulativos se tornaram muito mais lucrativos do que aqueles que geram lucros produzindo bens e serviços, vendendo-os, pagando-os, contratando trabalhadores, lutando e sofrendo todos os tipos de vicissitudes ... de modo que estes têm cada vez menos rentabilidade relativa e são menos atrativos. A atividade financeira absorve, então, os recursos que a produtiva realmente necessitaria e essa “financeirização” destrói emprego e produz a desaceleração econômica não virtuosa das últimas décadas.
Em segundo lugar, muitas crises ocorrem porque os negócios especulativos são muito voláteis, já que dependem amplamente de decisões que pouco têm a ver com as condições objetivas das empresas e da economia em geral. Em terceiro lugar, provoca-se um extraordinário aumento da dívida. E, por último, tudo isso condiciona de um modo muito perverso a atividade das empresas. Se desejam financiamento, não será necessário que estejam bem e proporcionem bons dividendos, mas que as cotações de suas ações sejam as mais altas possíveis.
Isso deu origem ao fato de que, nos últimos anos, um grande número das maiores empresas do planeta não tenha dedicado seus lucros e poupança à atividade produtiva, mas, ao contrário, a comprar suas próprias ações ou de outras empresas. Nos Estados Unidos, dedicam 4,37 trilhões de dólares a essas compras que eram muito rentáveis para os acionistas na onda em alta. E agora que seu preço caiu, o governo Trump está disposto a gastar milhares de milhões na compra dessas ações para resgatar os acionistas. Outra loucura das bolsas que sairá muito cara.
As bolsas de hoje em dia não se dedicam a desempenhar as funções para as quais nasceram e que são efetivamente necessárias. Como escreveu o Prêmio Nobel de economia Maurice Allais, tornaram-se “cassinos reais onde são jogadas gigantescas partidas de pôquer”. Agora, os produtos financeiros, as operações especulativas sobre eles e a dívida anexa cresce sem parar e sem relação com o desenvolvimento da atividade produtiva. A circulação de divisas, por exemplo, que teoricamente serve como instrumento do comércio internacional, é hoje em dia cerca de 21 vezes maior que o PIB mundial e 65 mais que o volume do comércio internacional de bens e serviços. Uma contradição.
As bolsas são a expressão de loucura insustentável, até mesmo para a economia capitalista. Esta funciona graças ao fato de que os mercados determinam os preços que servem de referência para a tomada das decisões, supõe-se que eficientemente. Mas se as bolsas só seguem lógicas especulativas e seus vaivéns enlouquecem, os preços também fazem o mesmo e inevitavelmente a crise se arrasta para o sistema produtivo porque suas referências, os preços, são inadequadas. Não é por acaso, mas muito pelo contrário, que de 1970 (quando começa a desnaturalização das bolsas) até os dias atuais, tenham ocorrido 107 crises bancárias, 177 de divisas e 42 de dívida em todo o mundo, segundo um estudo do Fundo Monetário. Internacional.
A especulação e a loucura das bolsas são sempre perigosas, em qualquer momento, mas quando eclodem no meio de uma tormenta seus efeitos podem ser catastróficos. E é isso o que está acontecendo na atualidade. Quando a vida de milhões de pessoas está ameaçada por um vírus e os governos lutam para buscar colocar ordem na economia, os fundos especulativos se comportam como verdadeiros abutres catadores que transferem a instabilidade extrema das bolsas para o restante da economia (e inclusive para o conjunto da sociedade, porque suas quedas produzem medo).
Nas chamadas operações de curto prazo, por exemplo, tomam emprestado um título (nem sequer o tornam seu, de modo que não faz diferença o que acontecer com ele), seguram apostando em que sua cotação irá baixar e depois fazem tudo o que for possível para que baixe, algo que resulta bastante simples graças ao fato de que administram fundos milionários e possuem um grande poder político e midiático. Quando o fazem cair, devolvem, cobram a taxa do “seguro” e recolhem os lucros. Podem fazer isso 40.000 vezes no tempo de um piscar de olhos e assim não só podem afundar a cotação de qualquer título financeiro, como também a um Estado, arruinando-a por completo, assim como já aconteceu em várias ocasiões.
Manter em funcionamento essa loucura em tempo de bonança já é arriscado, mas fazer isso em meio a uma crise global como a que estamos começando a viver, quando uma pandemia está paralisando as economias com efeitos imprevisíveis, mas de qualquer modo muito graves, é uma barbaridade. É necessário fechar as bolsas durante um tempo e o quanto antes para evitar que sua loucura especulativa destroce o sistema financeiro, coloque na berlinda as economias nacionais e impossibilite a recuperação da atividade produtiva das empresas, justamente quando mais se necessita. E porque é uma imoralidade e um crime contra a humanidade dedicar centenas de bilhões para buscar frear inutilmente seus açoites especulativos, quando existem centenas de hospitais e unidades de saúde com quase nenhum recurso para salvar a vida dos seres humanos.
As bolsas já se fecharam em outras ocasiões e não apenas nada aconteceu, como o fechamento devolveu a calma aos mercados e a razão para as empresas, evitando pânicos e quebras generalizadas. Na situação atual, só as empresas de comportamento menos correto e os fundos especulativos mais poderosos, nem sequer todos e muito menos os pequenos poupadores, são os que mais se beneficiam com o que está acontecendo. É preciso fechá-las e tenho certeza de que serão fechadas nessa crise, mais cedo ou mais tarde (Wall Street já teve que parar três vezes nas últimas duas semanas).
Contudo, é necessário que isso aconteça o quanto antes, e como resultado de uma decisão global que deveria ser tomada por um G7 ampliado ou mesmo pelo G20. Aqueles que, além disso, deveriam assumir a necessidade de impulsionar e garantir a reforma de seu funcionamento em todo o mundo, uma vez que a tormenta passe. Que ninguém tenha dúvida: caso se permita que as bolsas continuem funcionando como até agora, será impossível evitar que, mais cedo ou mais tarde, ocorra uma catástrofe financeira.
Sendo assim, o imprescindível fechamento das bolsas enquanto durar a crise, servirá pouco diante das convulsões que nos aguardam nas próximas semanas e meses, se ao mesmo tempo não forem estabelecidos controles sobre os movimentos do capital especulativo. Não basta proibir as posições de curto prazo das quais falei, como já se fez. Sobretudo, levando em consideração que a especulação extra-bolsa é cada dia maior e também mais perigosa.
Não estou propondo uma barbaridade. Até mesmo o Fundo Monetário Internacional reconheceu que esses controles são necessários quando ocorrem fluxos de entradas ou saída “disruptivos”. Como já estão começando a ser e como serão muito mais quando grandes países, como Itália e Espanha, sem ir muito longe, tiverem que ir aos mercados para se financiar, caso não recebam o apoio (mas a corda) da União Europeia.
Manter as bolsas abertas, da forma como estão funcionando, e deixar em liberdade os movimentos especulativos de capital é como colocar um cachorro raivoso na sala de cirurgia, onde está em luta a vida e a morte, para salvar o doente. É uma gravíssima irresponsabilidade e ninguém poderá estranhar que, caso essas medidas não sejam tomadas já, chegamos à catástrofe.
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Fechar as bolsas e controlar os movimentos de capital. Nada menos. Artigo de Juan Torres López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU