09 Janeiro 2020
Políticas anti-indigenistas avançaram, mas povos mostram força ao enfrentá-las. Lideranças foram premiadas no exterior. Comunidades fortaleceram agroecologia. Mulheres ocuparam Brasília. E floresceu vasta produção cultural.
O artigo é de Angela Pappiani, jornalista, produtora cultural e escritora e diretora na IKORE, agência voltada à temática indígena, publicado por Outras Palavras, 07-01-2020.
Dezembro, marcado no calendário como o final do que para nós, brancos ocidentais e cristãos, é o ano de 2019, veio carregado de sentimentos contraditórios: alívio, medo, alegrias, expectativas, esperança, indignação, apreensão. Cartões de Boas Festas e com votos para o próximo ano revelam o que cada grupo de brasileiros, cada ilha ou continente, viveu nos últimos 365 dias, dependendo de seu alinhamento ou alienamento político.
Para os povos indígenas esse número tem o peso histórico de um sistema-pensamento que valoriza e crê no controle da natureza e submissão dos humanos, na transformação da paisagem, dos valores e sentimentos. Algumas das mais de 300 etnias que convivem com o Brasil hoje conhecem o poder do “povo da mercadoria” — como Davi Kopenawa Yanomami define “os brancos” – há 519 anos. Para os povos originários o ano da transformação, do fim de um mundo e começo de outro, do tempo linear, não é o do nascimento de Cristo mas o do encontro com o estrangeiro que ocupou seu território e mudou totalmente sua perspectiva de vida, justamente defendendo a cristianização, o salvamento de suas almas. Isso vem acontecendo ao longo dos séculos. Para alguns povos, estamos no ano 300, 200, ou no ano 30 da tragédia do contato. Alguns ainda tentam se manter afastados do calendário, do relógio, do PIB, do RG, do CPF, da internet. Talvez consigam manter sua independência, saúde, conexão e valores por mais tempo, se a sociedade brasileira compreender e aceitar o seu direito ao isolamento, a outro modo de vida.
Enquanto isso, a grande maioria da população indígena, em todos os estados da federação, está submetida ao novo modo de vida, ao Agro que é Pop, às leis que deveriam, mas não os protegem, às grandes obras geridas pelo capital para beneficiar alguns poucos corruptos, à devastação que afeta a todos, apesar da cegueira geral.
Essa guerra permanente entre forças, entre o povo da mercadoria e o povo verdadeiro, nunca deixou de existir ao longo dos cinco séculos de ocupação, tornando-se mais ou menos visível, independentemente do partido, do governo, da constituição em vigor. Da mesma forma que a resistência, a luta e as conquistas ao longo do tempo assumiram estratégias distintas, mais ou menos eficazes, mas sempre viscerais, um jogo de vida e morte, que defende não só os corpos mas todo um sistema de vida, visível e invisível, conectado ao cosmos e aos espíritos.
E nos primeiros dias de 2020, depois de um ano tão intenso e trágico, com assassinatos, invasões, destruição, com a declaração pública de uma nova “Guerra Justa” que justifica todo tipo de violência, o que quero fazer é relembrar e reverenciar essa luta e as conquistas, momentos que devem ser honrados e comemorados como alimentos para fortalecer nossa trajetória.
Começo celebrando Raoni Metuktire, que apesar de sua idade avançada, segue em sua luta pela floresta e pelos direitos dos povos indígenas, visitando países, conversando com estadistas e organismos internacionais, com presidentes e o Papa, levando sua voz e seu pensamento tradicional para se juntar a um movimento de jovens que entendem também a emergência de nosso tempo. Em sua andança de guerreiro, esteve acompanhado de jovens indígenas, cumprindo também sua missão de ancião que é de transmitir o conhecimento e instigar a nova geração a buscar seu próprio caminho. Esses guerreiros, guardiães de uma tradição e sabedoria, buscam sensibilizar as pessoas que compartilham este mesmo planeta para os riscos que todos nós corremos. Por esse trabalho incansável Raoni foi indicado ao prêmio Nobel da Paz, enquanto aqui no Brasil era vítima de campanha de difamação nas redes antissociais.
Davi Kopenawa Yanomami, outro grande e reconhecido líder indígena, recebeu neste ano o Right Libelihood Award, concedido na Suécia e conhecido como o “Nobel alternativo”. A escolha se deu “pela corajosa determinação em proteger as florestas e a biodiversidade da Amazônia, e as terras e a cultura de seus povos indígenas… protegendo nossa herança planetária comum”, como disse Ole von Uexkull, diretor-executivo da Right Livelihood Foundation. Raoni e Davi dedicam suas vidas à essa luta, na contramão dos interesses pseudo-nacionais, enfrentando ameaças contra suas vidas e a destruição dos lugares onde vivem por garimpeiros e desmatadores vorazes.
Outro prêmio internacional importante deu projeção aos povos originários de nosso país. A ONU concede a cada dois anos o Prêmio Equatorial de reconhecimento a soluções locais e indígenas para o desenvolvimento sustentável. Em 2019 foram 847 candidaturas de 127 países, e apenas 22 associações e comunidades foram premiadas, entre elas o Conselho Indígena de Roraima e a Associação Kisêdjê. O povo Kĩsêdjê, do Xingu, é responsável pela produção do Óleo de Pequi.
A produção de óleos (de pequi, babaçu, castanha, copaíba), pimentas, cacau, farinhas, cogumelos, tem movimentado a economia das comunidades, apresentando ao povo das cidades novos alimentos e possibilidades de uso da rica flora brasileira, ao mesmo tempo que fortalece a proteção das florestas em pé. Essa produção, que protege as tradições indígenas em sua conexão com a natureza, vem comprovando a sua viabilidade, com rentabilidade muito superior à ocupação feita pelo agronegócio ou pelo gado, até mesmo pela exploração de ouro. Esse caminho vem sendo trilhado há cerca de 30 anos por várias comunidades que se firmam em seus territórios a partir da sua riqueza natural e agora conquistam o reconhecimento por organismos internacionais, chefes de cozinha influentes, designers, empresas de cosméticos, dando mais visibilidade e apoiando essas iniciativas (para conhecer mais, visite o Mercado de Pinheiros onde há boxes com produtos indígenas e de comunidades tradicionais de diversas regiões do país).
A floresta tem ocupado a mídia nacional e internacional, principalmente neste ano de 2019 quando a invasão e destruição de áreas indígenas e de proteção ambiental foram executadas sem escrúpulos e sem nenhum tipo de controle ou punição. Pelo contrário, o governo se adiantou em aprovar medidas de proteção e oficialização da invasão.
Diante da emergência reconhecida por cientistas, indígenas e movimentos de jovens ao redor do mundo, foi realizado em novembro, na Reserva Extrativista Rio Iriri (PA) o encontro “Amazônia Centro do Mundo”, reunindo representantes de vários povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, jovens ativistas do Fridays For Future, Extinction Rebellion, Engajamundo e do movimento Pussy Riot, além de jornalistas e cientistas, pesquisadores.
Nada mais significativo do que o encontro entre as pessoas, o diálogo, o compartilhamento de informações e sentimentos. Essa região de Altamira foi pioneira em grandes encontros transformadores. Em 1989, centenas de indígenas, lideranças regionais, pesquisadores, cientistas, organizações internacionais e a mídia se encontraram ali no “1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu” e conseguiram, por quase 30 anos, conter a construção do complexo de hidrelétricas previstas pelo governo militar para a região do Xingu. Em 2009, 20 anos depois e já sob a ameaça da construção de Belo Monte, novo encontro aconteceu em Altamira, mais uma vez reunindo estudos e informações que demonstravam a inviabilidade do projeto. A despeito de todas as evidências, o governo federal deu continuidade ao projeto que agora se revela como um grande plano de evasão de verbas públicas para a corrupção e um grande desastre ambiental, sem viabilidade técnica e econômica. A vida de milhares de pessoas foi interrompida por uma barragem, a vida da floresta e de um rio está comprometida pela ganância e estupidez. Mas sempre é tempo de celebrar encontros, trocas e conscientização para que se encontrem soluções para amenizar a tragédia e se impeça novos desastres como esse.
Outros encontros têm juntado pessoas e ideias revelando a potência da resistência. O povo Guarani das aldeias do Jaraguá, em São Paulo, tem reunido indígenas e aliados em mutirões de recuperação de nascentes de água e lagos no Parque do Jaraguá, para bioconstruções e compartilhamento de alimentos tradicionais, para a troca de conhecimentos e a valorização do povo indígena. Os jovens Guarani, se fortalecendo em sua tradição e espiritualidade, se abrem para as alianças e cooperações com não indígenas revelando seu pensamento e modo de vida. Uma estratégia poderosa que reverte as tentativas das missões jesuíticas de catequizar e controlar esse povo guerreiro. São eles agora que compartilham seu conhecimento e mostram novos caminhos.
As mulheres indígenas se destacaram em 2019. Anciãs, jovens e crianças de centenas de etnias se reuniram e ocuparam Brasília, com pinturas corporais, adornos, cantos poderosos, toda a força de sua natureza feminina, toda a clareza de suas ideias, pensamentos, reivindicações. E se juntaram às mulheres do MST, às quilombolas e urbanas, fortalecendo as resistências. Enfrentaram os desafios da saída das aldeias, do cuidado com os filhos, da dificuldade com a língua portuguesa, do confronto com a polícia, apesar do caráter pacífico de suas manifestações. Mobilizaram os homens: maridos, pais, irmãos que as apoiaram, cuidando dos alimentos e das crianças. E elas se juntaram também nas aldeias do Xingu e em outros lugares que o Brasil não conhece e não respeita, em torno do respeito a seus direitos. Uma grande mobilização de mulheres em torno de uma luta que é de todos, pela manutenção de um modo de vida que protege e recria a própria vida.
No ano anterior, tivemos Sônia Guajajara se candidatando à presidência e dando visibilidade à luta e ao pensamento dos povos indígenas por todo o ano de 2019, com coragem de denunciar e enfrentar a realidade que em dois meses massacrou quatro jovens de seu povo, no Maranhão. E uma mulher – Joênia Wapichana, ativista e advogada, se elegeu em 2019 a primeira deputada federal pelo Estado de Roraima e assumiu uma cadeira no Congresso. Em sua trajetória já havia sido a primeira em outras conquistas: ao se formar em Direito, ao participar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, para denunciar violações do Estado brasileiro; ao defender um caso no Supremo Tribunal Federal em 2008; ao completar um mestrado em universidade dos Estados Unidos. Sua atuação na defesa dos povos indígenas também foi reconhecida com prêmios internacionais, como o Reebok de direitos humanos.
Outro exemplo feminino de protagonismo é Mapulu Kamayurá, primeira indígena do povo Kamayurá do Xingu a ser reconhecida como pajé. Sua atuação dentro da tradição de seu povo não a afasta das outras lutas dos povos indígenas e ela articula projetos para levar centros de informática às aldeias e incentivar venda pela internet de artesanato de jovens indígenas no Alto Xingu.
As artes também deram visibilidade aos povos originários em 2019. Jovens de várias etnias conquistaram espaço na literatura, no audiovisual, na música, em formatos híbridos de arte. Denilson Baniwa, nascido e criado na aldeia Darí, no alto Rio Negro, Amazonas, recebeu o Prêmio PIPA de Arte Contemporânea por suas criações e intervenções. Suas obras marcaram presença em dezenas de exposições em espaços como o MAM, MASP, Centro Cultural Banco do Brasil, Pinacoteca, SESC, Itaú Cultural, galerias e ruas.
Jaider Esbell, artista do povo Macuxi, de Roraima, é outro protagonista de grandes reviravoltas e provocações nas grandes cidades do Brasil e exterior, com suas performances e desenhos multicoloridos que transformam a tradição e a floresta em imagens poderosas. Em Boa Vista, Jaider mantém uma galeria e espaço cultural de criação e projeção de artistas indígenas. Em sua última intervenção no sudeste do país, Jaider veio acompanhado de Dona Bernaldina, a Vó Bernal, mulher que canta e transforma o mundo com sua voz e suas benzeções. Por onde passaram, deixaram a marca do amor, da tradição e da arte indígena que está presente em cada momento da vida.
Entre muitas outras novidades, o Movimento de Artistas Huni Kuin, o Mahku, com jovens indígenas do Acre, com Ibã Kaxinawá à frente, vem realizando exposições de pinturas em várias cidades do mundo. Essas iniciativas despertam atenção fora de suas aldeias, provocando discussões interessantes sobre a descolonização, o papel do artista e da arte, o mercado etc. Um mundo novo e repleto de possibilidades que merece ser seguido com atenção.
Outro caminho que vem se revelando como importante forma de expressão para as comunidades indígenas é o audiovisual com dezenas de jovens autores de trabalhos premiados em festivais dentro e fora do Brasil. Caimi Waiassé e Leandro Xavante acabam de ganhar o prêmio de melhor curta-metragem do Festival de Cinema de Alter do Chão com seu filme Waté’wa: os jovens Xavante que batem água, realizado na Terra Indígena Marãiwatsédé sobre o ritual de passagem para a vida adulta. Outro trabalho que ganhou repercussão internacional é Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora. Apesar de não ter sido dirigido por indígenas, foi realizado em parceria com o povo Krahô, trazendo o idioma materno e a realidade da vida nas aldeias em contraste com as cidades e as suas ilusões. O filme fez sua estreia mundial no Festival de Cannes em 2018 e recebeu o Prêmio Especial do Júri da mostra Un Certain Regard.
Na literatura vários autores indígenas vêm se destacando. O grande fenômeno do ano de 2019 foi o pequeno/grande livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak. Enorme contribuição para o pensamento sobre nosso mundo e nosso tempo, a obra causou impacto e ficou entre os livros mais vendidos da Festa Literária de Paraty em julho. Mesmo não sendo deste ano, Davi Kopenawa Yanomami, em sua parceria com o amigo e antropólogo Bruce Albert, nos deu um grande presente quando compartilhou seu pensamento no belíssimo livro A queda do céu, leitura obrigatória.
E para fechar essa pequena retrospectiva positiva dos povos indígenas em 2019, vale destacar o YBY Festival, promovido em São Paulo pela web-rádio Yandé com apresentações tanto de músicas tradicionais indígenas como de gêneros contemporâneos como rock, MPB, funk, concebidos e executados por músicos indígenas em português e nas diversas línguas-mães de cada artista.
Com certeza o ano de 2019 foi mais um ano de muitas revelações, quando os amigos e inimigos se mostraram sem máscaras, quando se tornou explícito o plano dos poderosos para o presente e o futuro. Vivemos um tempo que exige muita atenção e movimento, resistência e união. Mas não podemos nunca esquecer do valor dos encontros, da arte e da beleza, não podemos deixar de comemorar cada vitória. Cabe a nós manter a força e as alianças, pois a batalha continua em 2020.
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Resistência indígena em 2019: há o que celebrar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU