15 Março 2019
Ganhadora do Prêmio Direitos Humanos 2018, Mapulu Kamayurá articula projetos para levar centros de informática às aldeias e incentivar venda pela internet de artesanato de jovens indígenas no Alto Xingu.
A reportagem é de Clarissa Beretz, publicada por De Olho nos Ruralistas, 13-03-2019.
Mapulu está em transe. Ela fuma um charuto de folha de tabaco, fecha os olhos e “desmaia” por uns minutos. Ao acordar, começa a caminhar até uma árvore, na aldeia Ipavu, da etnia Kamayurá, no Alto Xingu, em Mato Grosso. Ela então se abaixa, começa a escavar a terra com as mãos e tira dali um pequeno emaranhado de pedacinhos de pau com fios, arames e elásticos. Mapulu acaba de encontrar um feitiço.
Segundo o povo do Xingu, é assim que se materializa uma intenção de “feiticeiros” de amaldiçoar alguém. Um “trabalho feito”, na linguagem dos não-indígenas. Só um pajé – ou uma – consegue descobrir e destruir um feitiço. Quando desmaia, Mapulu sonha com a resposta para resolver o caso. Os sonhos ocupam lugar de destaque no mundo dos xinguanos. É por meio deles que os pajés conversam com seu mama’e, o espírito-guia que faz a comunicação entre o sagrado e o terreno.
Mapulu segue a cura desfazendo a amarração com as mãos, baforando fumaça nos pedaços e no rosto do “enfeitiçado”, que, doente, agoniza na rede dentro de sua oca. A xamã reza e profere palavras que nem ela mesma decodifica. O pai de Mapulu, o cacique e também pajé Takumã Kamayurá, foi quem lhe passou os conhecimentos, quando tinha 15 anos.”Não foi fácil, passei sete anos aprendendo”, conta. “Cheguei a ficar cinco dias sem comer, ver e escutar, fumando para sonhar e encontrar meu mama’e. É ele que faz a conexão entre aqui e lá”.
Até onde a memória dos mais velhos alcança, Mapulu é a primeira mulher pajé da sociedade Kamayurá. “É um fenômeno recente o protagonismo feminino dentro do seleto universo mágico-sagrado, antes exclusivo aos homens”, atesta Maria Luiza Silveira, em sua tese de doutorado “Mapulu, a mulher pajé – A experiência Kamayurá e os rumos do feminismo indígena no Brasil”, da pós-graduação em Antropologia da PUC de São Paulo. Maria Luiza foi orientada pela antropóloga Carmen Junqueira que há mais de cinco décadas acompanha os Kamayurá e seus ritos sagrados.
Mapulu é chamada nas aldeias vizinhas quando alguém adoece e os remédios tradicionais não curam. Nem sempre é feitiço. O papel dos pajés é também o de sanar doenças comuns ou complexas. Há algumas décadas, entretanto, o trabalho desta figura sagrada vem sendo preterido pela própria comunidade indígena, cada vez com mais acesso à medicina alopática, seja pelas visitas dos agentes de saúde nas aldeias ou pela frequência aos hospitais das cidades próximas ao Parque Indígena.
Ela explica sua visão de mundo e de saúde:
– Tem doença que não precisa de médico. Pajé cura. A gente precisa trabalhar junto. Parteira, enfermeira, médico… do lado do pajé. Médico vai entender trabalho do pajé e pajé vai entender o trabalho do médico.
Em novembro, a atuação de Mapulu foi reconhecida pelo Ministério dos Direitos Humanos, quando recebeu, na capital federal, um dos prêmios Direitos Humanos 2018. “Ela é o símbolo da mulher indígena forte e atuante, que precisa ser mais visto”, definiu Andreza Colatto, então Secretária Nacional de Políticas para Mulheres, que indicou Mapulu ao prêmio. “Tenho uma enorme admiração por seu trabalho, no cuidado com as crianças e no fortalecimento das mulheres”.
Mapulu e seu irmão, o cacique Kotok, integram a Associação Indígena Hiulaya, que realizará em maio um encontro dos pajés, rezadores, raizeiros e parteiras do Alto Xingu, na própria aldeia Kamayurá. A intenção é convocar agentes de saúde e mostrar a eles a importância da integração desses conhecimentos. “Queremos fortalecer o papel social, político e cultural dos pajés”, diz o documento convocatório. “O projeto é essencial para dar continuidade à saúde e ao equilíbrio das comunidades e dos povos do Xingu”.
A atuação e a representatividade de Mapulu abrem caminhos para novos tempos na atuação das mulheres no território xinguano. A opinião dela é considerada pelos caciques. É a única a fumar com os homens e a ter autorização para entrar na casa das flautas sagradas, local de frequência estritamente masculina.
De sorriso largo, risada fácil e olhos rasgados, está sempre disposta e pronta a atender a todos. Só para para conversar nos momentos em que se banha no rio, prepara o beiju, assa o peixe dentro de sua oca ou senta no chão para fazer colares de miçangas. “Antes eu sentia muita vergonha em ser pajé”, diz, rindo e ajeitando os óculos de grau, enquanto termina um colar ao lado do marido Raul, famoso raizeiro da região. “Depois que curei muita gente, agora eu falo e eles me escutam”.
A líder indígena é também é a maior parteira do Alto Xingu. Ela lamenta o número cada vez maior de meninas e mulheres que preferem dar à luz nas cidades próximas do Parque. É o caso de sua nora, grávida de 9 meses, que decidiu parir em Canarana, aos 18 anos. “É escolha dela, eu não falo nada”, diz a parteira. Ela alerta para o fato de que, na cidade, corre-se mais risco de adquirir infecções, dado o número crescente de cesarianas.
Aos 52 anos de idade, Mapulu é mãe de cinco filhos, todos nascidos de parto normal, apesar de ter tido dois deles no hospital, quando ela relembra que “sofreu muito”. Ela também é avó de sete netos. Já perdeu as contas de quantos partos realizou em sua aldeia e de outras etnias do Xingu. A indígena alerta para o fato de que, na cidade, corre-se mais risco de adquirir infecções, sobretudo pelo aumento do número de cesáreas feitas nos hospitais públicos.
Os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entretanto, não são precisos para atestar o que a parteira diz.
“Cesárea estraga mulher”, diz ela. “Volta e não consegue trabalhar, levantar peso, nunca mais fica igual. Na aldeia, mulher fica em outra posição, toma ervas, limpa, fica em jejum. Barriga fica bonita, no lugar, mulher volta forte. Ela e bebê. Não precisa hospital”.
O papel político e social exercido por Mapulu também é fundamental. Atualmente, ela articula em Brasília um projeto para levar centros de informática para as aldeias. A intenção é também viabilizar a venda de artesanato de jovens produtoras via internet.
Mapulu se posicionou contra o suposto sequestro da menina Kamayurá pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A denúncia foi publicada no dia 31 de janeiro, pela revista Época. De acordo com depoimentos mostrados na reportagem, Lulu Kamayurá, a “filha adotiva” da ministra, teria sido levada irregularmente da aldeia Ipavu, onde nasceu.
“Damares cometeu um grande erro”, avalia. “É mentira dizer que Lulu foi resgatada. Se Damares tivesse visto Lulu em um buraco no chão e retirado ela de lá, podia dizer isso”. A pajé nega as acusações de que a garota teria sido vítima de infanticídio, caso não fosse “salva” pela ministra. Em nota publicada no site do ministério, Damares Alves negou as acusações.
No caminho sagrado da grande sacerdotisa, sua filha Mapualu, de 30 anos, e duas outras mulheres Kamayurá foram iniciadas como pajés. Outras três estão sendo preparadas. A missão não é fácil: para carregar o reverenciado posto, deverão se privar de relações sexuais por pelo menos um ano e meio, ficar enclausuradas e adotar uma dieta alimentar bastante rígida.
“É difícil, mas sei da importância de curar, devolver a vida à pessoa com risco de morte”, orgulha-se a jovem Mapualu, filha de Mapulu. “Quero continuidade ao trabalho de minha mãe, valorizar e manter a cultura viva para o povo Kamayurá”.
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Primeira pajé mulher dos Kamayurá afirma protagonismo feminino no Xingu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU