15 Novembro 2019
A escalada de ataques à base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itacoaí da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do Amazonas, está colocando em xeque o trabalho de proteção da área com o maior número de etnias em isolamento voluntário do país.
A reportagem é de Rodrigo Pedroso, publicada por BBC News Brasil, 12-11-2019.
Base flutuante de fiscalização da Funai na confluência dos rios Ituí-Itacoaí, no Amazonas, foi um dos alvos dos disparos na atual escalada de ataques na região. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Desde setembro, quatro ataques foram registrados ao posto de controle, segundo funcionários do órgão, que é responsável por monitorar e fiscalizar os territórios indígenas. Em um ano, entre novembro de 2018 e este mês, foram oito ataques contra a base — o maior número desde a demarcação, em 1998.
Apenas no primeiro fim de semana deste mês, a base foi atacada duas vezes. As agressões são atribuídas a pescadores e caçadores ilegais, no momento em que saíam da terra indígena após terem entrado sem autorização, segundo funcionários da Funai que acompanham as investigações.
Servidores e colaboradores das quatro bases da Funai instaladas na segunda maior terra indígena do país afirmam que vão paralisar as operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território. Eles pedem que o governo federal envie forças de segurança, como disseram à BBC News Brasil pessoas ligadas às Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE).
Sem essas operações, o acesso à terra indígena fica aberto para qualquer pessoa — caçadores, pescadores, garimpeiros e madeireiros terão menos dificuldades para entrar no território.
Os indígenas temem ainda que ataques ainda mais violentos possam ocorrer e, por isso, se articulam para assumirem eles mesmos a defesa dos postos.
O governo federal, por sua vez, depois de colocar em dúvida a veracidade dos ataques, não respondeu até o momento à solicitação dos funcionários da Funai por segurança.
Documentos da Funai e relatos de pessoas ligadas à FPE obtidos pela BBC News Brasil mostram que o clima entre os servidores é de revolta em relação à falta de proteção, e de receio de que em algum momento uma bala atinja um funcionário. Por meio de documentos internos enviados à presidência do órgão, os servidores vêm pedindo segurança desde o final do ano passado, quando começaram os ataques à base Ituí-Itacoaí.
Essa base é visada por ser a porta de entrada mais próxima para o Vale do Javari, área procurada pelos caçadores ilegais por causa da riqueza dessa região, pouco estudada e bem preservada.
Guarita da base flutuante de fiscalização da Funai no rio Ituí-Itacoaí, que foi atacada a tiros; em um ano, entre novembro de 2018 e este mês, foram oito ataques contra a base — maior número desde a demarcação da terra indígena, em 1998. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Servidores e colaboradores relatam que não há condições para prosseguir com o trabalho de campo. Com o corte de verbas promovido neste ano na Funai, o apoio logístico vem sendo comprometido, com servidores excedendo o tempo de serviço em campo por falta de transporte. Nas circulares internas, eles pedem à direção do órgão que consiga agentes da polícia, Exército ou Força Nacional de maneira permanente.
Na noite da última quinta-feira (07/11), a juíza federal Jaíza Maria Pinto acatou ação do Ministério Público Federal contra a União e a Funai e ordenou que o governo "preste imediato apoio operacional às entradas em campo de suas próprias equipes da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari". Também determinou que o órgão deve "alocar recursos materiais e orçamentários para garantir o apoio das atividades por no mínimo seis meses".
A decisão da juíza não estipula prazos e nem penalidades caso a ordem não seja cumprida. A PF e o Ministério da Justiça, que coordena a Força Nacional, não responderam às solicitações da reportagem para comentar a decisão.
A ordem judicial não alterou a postura de servidores e colaboradores das frentes de proteção. Apesar de a decisão judicial ser bem-vinda, os funcionários têm dúvidas se ela fará com que as forças de segurança atuem permanentemente no Vale do Javari.
A situação de insegurança ainda preocupa, uma vez que não houve sinalização às bases, por parte da direção da Funai, sobre o tema. Com isso, os planos de paralisação estão mantidos.
Para além dos ataques, a sensação de confronto se intensifica na região. No mês passado, um pescador foi baleado próximo de uma das aldeias do povo Korubo. O revide veio duas semanas depois, quando dois adolescentes dessa etnia foram atacados por pescadores.
Ataques a tiros
Na madrugada de primeiro de novembro, oito homens em um canoão (canoa de 12 metros usada pelos pescadores e caçadores) dispararam na base quando um colaborador indígena apontou o holofote para a embarcação, procedimento usado para iniciar a averiguação.
Dois dias depois, outros três homens usaram o mesmo modus operandi: atirar contra a base ao menor sinal de reação. Ninguém ficou ferido.
Em outubro, o presidente substituto da Funai Alcir Teixeira esteve na região e tratou os relatos de ataques feitos pelos funcionários — que se acumulam desde o final do ano passado — como suposições. Os casos estão sendo apurados pela Polícia Federal de Tabatinga, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru.
Questionada sobre o andamento dos trabalhos, a PF não respondeu às perguntas. A presidência da Funai, que em agosto soltou memorando interno vetando os funcionários de falarem com a imprensa, também não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem ao longo da semana passada.
O Ministério Público afirma que entrou com o pedido na Justiça por se tratar de uma questão que "vem se alongando e crescendo". No pedido acatado pela Justiça, o MP diz que a segurança dos povos indígenas de recente contato e isolados do Vale do Javari está em risco e "com alto potencial de ocorrência de genocídio".
As suspeitas
As investigações apontam que os ataques partem de pescadores e caçadores ilegais de Atalaia do Norte (AM) financiados sobretudo por grupos de contrabandistas de animais de Tabatinga (AM) e Benjamin Constant (AM), as duas maiores cidades da região, a 1.100 quilômetros de Manaus. Os animais são vendidos para compradores brasileiros, peruanos e colombianos.
Atalaia do Norte, com 15 mil habitantes e terceiro menor IDH do Brasil, é o município mais próximo da confluência entre rios Ituí e Itacoaí, na entrada do Vale do Javari. A junção dos dois rios foi a primeira a receber uma base de proteção por sua localização estratégica, ainda em 1996, no processo de estabelecimento de contato com o povo Korubo.
Não é de hoje que se trata de uma região conflagrada. Em 2000, um grupo de cerca de 300 pescadores autodenominados de Movimento dos Sem Rio, de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, atacou a base do Ituí-Itacoaí e a sede da Funai em Atalaia do Norte com coquetéis molotov.
Rio Itacoaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM); funcionários de quatro bases da Funai na região afirmam que vão paralisar as operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Houve confronto e troca tiros com servidores do órgão indigenista e fiscais do Ibama, conforme noticiou na época o jornal amazonense A Crítica. A homologação da Terra Indígena em 2001 culminou em um processo que retirou, mediante indenização, a população não indígena do Vale do Javari — pessoas que chegaram à região no começo do século 20, na esteira do primeiro ciclo da borracha.
Uma parte delas se estabeleceu em Atalaia do Norte depois da homologação e, a partir daí, o confronto entre indígenas e não indígenas, antes frequentes, tornaram-se esporádicos. No fim do ano passado, as disputas voltaram a ocorrer.
Liderança tradicional do Vale do Javari e que participou do processo de demarcação, Clóvis Marubo afirma que as atividades ilegais no território aumentaram, após o início do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ele, cortes de servidores e o contingenciamento de recursos têm "empoderado os invasores", o que preocupa os indígenas da região.
Divulgada na última quarta-feira, uma carta aberta dos servidores das onze FPEs vai no mesmo sentido.
Há poucos servidores nas quatro bases do Javari (nos rios Ituí-Itacoaí, Jandiatuba, Quixito e Curuçá) e, segundo colaboradores, falta insumos para a manutenção do controle do acesso ao território onde vivem os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.
Há ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo, neste território do tamanho de Portugal. "O enfraquecimento dessas bases e a falta de respostas do governo está muito preocupante. Sempre houve invasões, mas agora estão crescendo e rapidamente por causa da falta de fiscalização. O território nunca esteve tão descoberto e isso pode levar a um conflito maior. Uma vez que os indígenas se certifiquem que o Estado não está protegendo o território, eles vão cuidar da própria segurança", diz Marubo.
Confrontos
Entre servidores e colaboradores da frente de proteção fala-se em uma "tragédia anunciada". Sinais de confrontos se acumulam, como quando, em meados de outubro, o pescador foi baleado e deu entrada no hospital de Atalaia do Norte. A versão corrente no povoado é que ele foi ferido quando pescava perto de uma das aldeias do povo Korubo. Duas semanas depois, houve o ataque aos dois adolescentes Korubos, atacados por pescadores enquanto pescavam em uma lagoa.
A primeira das quatro aldeias Korubo está a 30 minutos de barco da base do Ituí-Itacoaí. Na avaliação de Conrado Otávio, coordenador do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que trabalha no Vale do Javari desde 2004, há risco iminente para essas populações. "Você vai somando os pontos e percebe que esses povos estão desprotegidos. Nunca houve esse despudor de agressão e intimidação a servidores e indígenas, isso de atirar diretamente contra eles. Dada a vulnerabilidade dos povos indígenas, sobretudo dos isolados, os riscos são muitos grandes", diz Otávio.
Sinais de confronto vêm se acumulando entre etnias indígenas na região e pescadores e caçadores da região de Atalaia do Norte, no Amazonas, cidade que tem o terceiro pior IDH do país. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Pirarucu, tracajá, queixada e anta são os animais mais procurados pelos pescadores e caçadores. Enquanto um tracajá é vendido por pelo menos R$ 100, um pirarucu ainda jovem não é vendido por menos de R$ 1 mil na região. Pela extensão e dificuldade de navegação nos rios do Vale do Javari, cada expedição, que costuma contar com entre 6 e 8 homens, precisa toda a capacidade de carga da canoa para ser lucrativa.
Já a Associação dos Pescadores de Atalaia do Norte afirma tentar organizar os pescadores que praticam o manejo legal - algumas famílias ribeirinhas - nos lagos em volta da Terra Indígena. No entanto, esses lugares já foram muito explorados e não são suficientes para a demanda externa, sobretudo peruana e colombiana. Por isso, segundo colaboradores das FPE, parte dos ribeirinhos que saíram do território indígena na época da demarcação, ficaram sem o sustento e passaram a recorrer a atividades ilegais. A associação tenta conter a entrada de pescadores e caçadores de outras regiões, mas sem sucesso.
Investigações apontam que o assassinato do colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira, no início de setembro, tem relação com essa economia ilegal. Maxciel passeava com a família na principal avenida de Tabatinga quando foi baleado. Meses antes, ele havia organizado uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Outro fator que aumenta a pressão no Vale do Javari é o fato de que muitos dos pescadores e caçadores viviam na terra indígena antes da demarcação. "Eles sabem onde está a fartura e é justamente próximo das nossas aldeias, porque não fazemos uso comercial da selva. Mas tem sido tanta a caça e a pesca que já está afetando a nossa comida", afirma Varney Thoda Kanamari, vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Kanamari espera que o governo reforce as bases de proteção no Javari para coibir os invasores. Caso os servidores e colaboradores da Funai mantenham o plano de paralisar as atividades na semana que vem, ele afirma que Kanamari, Matsés, Matís e Mayoruna estão se organizando para criar um grupo que ocupe esses lugares.
"Espero que não chegue a esse ponto, mas, se acontecer, nós vamos lá, como voluntários mesmo e sem receber nada para fazer uma barreira de proteção. Vamos gerir nós mesmos essa situação, porque, se não, vão entrar muito mais invasores", diz.
Leia mais
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A onda de ataques que opõe indígenas a caçadores ilegais no território com mais povos isolados do país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU