26 Julho 2018
Muitos sobreviventes de abuso sexual clerical irlandeses estão pedindo ao Papa Francisco, que em sua próxima visita ao país, reconheça o papel do Vaticano em encobrir os casos de abuso na ilha. Observando que o pontífice denunciou publicamente uma "cultura de abuso e encobrimento" na Igreja Católica do Chile numa carta escrita no mês de maio, os sobreviventes irlandeses dizem que falta uma admissão similar sobre como a Igreja procurou silenciar eles e outras vítimas.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 25-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
"Seria muito correto se ele dissesse o mesmo tipo de coisas aqui na Irlanda, porque a situação não é diferente da realidade Chilena", disse Marie Collins, uma sobrevivente irlandesa e ex-membro da comissão de abusos clericais de Francisco.
"Com o Papa vindo para a Irlanda, é uma ótima oportunidade dele ser franco e muito claro ao falar sobre isso, pois realmente ainda não aconteceu", disse Collins, em uma entrevista de julho ao NCR.
"Eu acho que as mesmas perguntas que foram feitas no Chile com relação à Igreja, precisam ser feitas aqui", disse Mark Vincent Healy, sobrevivente irlandês que participou do primeiro encontro de Francisco com vítimas de abuso no Vaticano, em 2014.
"O que exatamente aconteceu com os bispos, os ‘príncipes’ da Igreja?" "O que eles estavam fazendo? Como exatamente eles lidaram com essas questões?"
"É inconcebível que eles não soubessem nada", disse ele. “Eu não acho que as pessoas acreditariam nisso."
Francisco fará uma breve visita à Irlanda, de 25 a 26 de agosto, principalmente para participar do Encontro Mundial das Famílias, um evento trienal organizado pelo Vaticano, para dar testemunho dos ensinamentos da Igreja Católica.
O foco antes da visita foi sobre como o pontífice irá interagir com uma Irlanda que mudou de muitas maneiras desde a última visita papal ao país, feita pelo Papa João Paulo II em 1979.
Teólogos, sociólogos e outros especialistas, dizem que Francisco encontrará uma Igreja e uma população irlandesa muito diferente daquela vista por seu antecessor polonês, que foi recebido por uma multidão recorde, de 2,7 milhões de pessoas, e por uma cultura católica que permeava quase todos os cantos da sociedade.
Um exemplo das mudanças dramáticas nas últimas quatro décadas, é de que uma esmagadora maioria do país votou em maio para revogar uma emenda à Constituição irlandesa que tornava o aborto ilegal em quase todas as circunstâncias. Três anos antes, um referendo semelhante, aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em meio às questões sobre como Francisco escolherá abordar as grandes mudanças sociais na Irlanda, os sobreviventes também querem ressaltar que esta será a primeira visita de um Papa ao país desde a descoberta, nos anos 1990 e 2000, de uma série de abusos de crianças encobertos pela Igreja.
"A devastação para os católicos comuns era enorme, deixando de lado os sobreviventes e suas famílias", disse Collins, que renunciou da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores no ano passado, citando a frustração com a lentidão do Vaticano em implementar as recomendações do grupo.
"De certo modo, a Igreja espera que tudo acabe e as pessoas recuperem sua fé, além de voltarem para onde estavam. O contraste em tão pouco tempo, de como as pessoas comuns viam a Igreja e como elas a veem agora, é simplesmente extraordinário", disse Collins.
"Se o Papa vier e não falar sobre a história da Irlanda, não terá muito efeito. Mas se realmente for aberto e transparente, e admitir que esse encobrimento aconteceu, então será uma ótima visita", completou.
Ian Elliott, que serviu por seis anos como chefe do Conselho Nacional para Salvaguardar as Crianças da Irlanda, concorda que, ao chegar no país, Francisco tem a oportunidade de "fazer declarações e responsabilizar a Igreja por suas ações em várias áreas".
"Se isso não acontecer, acho que não será apenas uma oportunidade perdida, como causará muitos estragos. Colocando de forma simples, se concentrar em tentar ressuscitar a Igreja na Irlanda tentando estimular o interesse pela Igreja Católica novamente, não seria útil", disse Elliott.
"Francisco tem uma colina para escalar. Há muitas dioceses e muitas pessoas que ficariam desconfiadas sobre esta visita, em termos de que é apenas a Igreja tentando encobrir alguma coisa", completou.
Francisco escreveu ao povo chileno, em maio, em meio ao mais sério escândalo que afetou seu papado de cinco anos.
Em uma visita ao país sul-americano em janeiro, o pontífice protestou contra as vítimas de abuso quando defendeu a nomeação de um bispo em 2015, do qual vários sobreviventes dizem estar presente nos anos 80 e 90, para testemunhar o abuso de outro Padre.
Nos meses seguintes, Francisco fez uma reviravolta dramática. Entre outras ações, convocou todos os bispos chilenos em Roma para uma série de reuniões. Escreveu a carta de 31 de maio, pedindo perdão a todo o país e aceitou a renúncia de cinco bispos, incluindo o que ele havia defendido em janeiro.
Tal como nos Estados Unidos e em outros países, os escândalos de abuso sexual tiveram um impacto profundo nas opiniões do povo irlandês sobre a Igreja Católica.
Enquanto especialistas alertam que dados estatísticos sobre identidade religiosa não indicam as razões pelas quais as pessoas estão deixando a Igreja, o censo de 2016 descobriu que a porcentagem de irlandeses identificados como católicos caiu 6% desde o censo de 2011, que aconteceu após uma série de estudos governamentais e investigações sobre a Igreja.
Embora o censo de 2016 tenha informado que o número daqueles que se identificam como católicos continua sendo de 78%, várias outras pesquisas indicam que o comparecimento semanal à missa caiu de 91% no início dos anos 70, para 41% atualmente.
Fáinche Ryan, uma conhecida teóloga especializada em eclesiologia e ex-presidente da Associação Teológica Irlandesa, observou que a Igreja que Francisco visitará é "uma Igreja muito diferente daquela que João Paulo II conheceu".
"Quando João Paulo II veio, o catolicismo era tudo. Mas hoje estamos em um momento diferente”, disse Ryan, diretora do Instituto Loyola do Trinity College, em Dublin.
Gladys Ganiel, socióloga e cientista política que concentrou sua pesquisa nas formas emergentes do cristianismo na Irlanda, disse que os escândalos de abuso sexual tiveram uma "parte significativa" na dissociação das pessoas da Igreja Católica.
"O principal efeito dos escândalos é que as pessoas não perdem a fé em Deus, e sim na Igreja como instituição", disse o sociólogo.
"Há claras evidências de que os escândalos impactaram a percepção das pessoas sobre a Igreja institucional, e até mesmo sua disposição de ir à missa tantas vezes, especialmente para dar dinheiro à Igreja", disse Ganiel, pesquisadora da Senator George J. Mitchell Institute for Global Peace, Security and Justice, na Queen's University Belfast.
"Eu acho que a Igreja Católica na Irlanda está mudando em um ritmo sem precedentes. Para a próxima geração, acho que pode ser irreconhecível, a partir do que temos hoje, ou do que tivemos até os anos 80 e 90", disse Ganiel.
Informações sobre o abuso na Igreja irlandesa vieram à tona pela primeira vez através de uma série de reportagens na década de 1990. No final dos anos 90 e início dos anos 2000, o governo irlandês estabeleceu várias investigações sobre como a Igreja lidou com o abuso. Duas das mais relevantes investigações analisaram o sistema de escolas residenciais católicas do país e como a arquidiocese de Dublin lidou com as alegações.
O relatório Ryan, que tratou das escolas residenciais, lançado em maio de 2009, descobriu que os superiores religiosos católicos responsáveis pelas escolas haviam criado uma "cultura de sigilo" a fim de esconder os abusos de modo que os inspetores do governo não conseguiram intervir.
O relatório Murphy, que relatou a arquidiocese de Dublin, divulgado em novembro de 2009, descobriu que os quatro arcebispos que lideraram a Igreja local, de 1940 a 2004, negligenciado denúncias de abuso. Também identificou pelo menos 320 vítimas de abuso de uma investigação com 46 padres da arquidiocese.
O Papa Bento XVI escreveu aos católicos da Irlanda em março de 2010, dizendo que estava "verdadeiramente triste" pela dor das vítimas. Ele também anunciou uma visitação apostólica, ou investigação, da Igreja no país, enviando cinco bispos diferentes, não irlandeses, para examinar quatro dioceses e o sistema do seminário irlandês.
Embora a carta de 2010 de Bento XVI à Irlanda tenha dito que parte do motivo pelo qual o abuso foi permitido no país foi devido a uma "preocupação equivocada com a reputação da Igreja", ela não identificou uma "cultura de abuso e encobrimento", como seria a carta de Francisco ao Chile, em 2018.
"Isso não acalmou ninguém, porque suas palavras não eram boas. Certamente não tinha o mesmo tipo de conteúdo que a carta do Papa Francisco ao povo do Chile", disse Collins, sobre a carta de Bento.
Colm O'Gorman, sobrevivente irlandês e fundador da organização de apoio ao sobrevivente One in Four, disse que embora o Vaticano tenha reconhecido os fracassos dos bispos irlandeses, ainda não admitiu seu próprio papel em encobrir os abusos.
"Se Francisco vier aqui e dizer que o encobrimento do abuso infantil na Irlanda é uma mancha no registro da Igreja Católica, ele está certo, é claro", disse O'Gorman, que agora dirige a Anistia Internacional na Irlanda.
Elliott, que agora tem sua própria firma de consultoria de salvaguardas, disse que se Francisco fizer apenas uma referência passageira aos escândalos de abuso, "não será o suficiente".
"O público em geral está acostumado com o discurso duplo, com a Igreja dizendo uma coisa e fazendo outra. Sendo assim, tem que haver alguma demonstração, alguma declaração muito clara, sem ambiguidade", completou.
Caso Francisco escolha falar sobre os escândalos de abuso sexual na Irlanda, poderá ser no primeiro dia de sua visita, 25 de agosto, quando irá se encontrar com o primeiro-ministro Leo Varadkar e outros líderes políticos do país no Castelo de Dublin - um endereço público.
Outra opção, seria o Papa abordar a questão no segundo e último dia da visita, quando deverá falar publicamente aos bispos do país, depois de celebrar uma missa ao ar livre no Parque de Phoenix, em Dublin.
O pontífice provavelmente irá realizar uma reunião com sobreviventes de abuso sexual enquanto estiver na Irlanda, embora o Vaticano não anuncie essas reuniões antecipadamente.
Para alguns, a evidência mais óbvia da mudança no status da Igreja irlandesa nas últimas quatro décadas são os resultados de referendos referentes ao mês de maio, que criou uma emenda à constituição do país para dar ao governo o poder de legalizar o aborto.
Embora os bispos do país tenham se organizado contra a medida, dizendo que ela faria "injustiça manifesta" aos não-nascidos, os votos da população resultaram em 66% de aprovação, com cerca de 3,4 milhões da população irlandesa - de um total de 4,8 milhões - participando da pesquisa.
Ryan, a teóloga do Trinity College, disse que achava incorreto ler o resultado "como um voto contra a Igreja".
"Acho que foi uma votação muito complexa. Muitas pessoas que eu conheço que votaram a favor da reforma, não se viam como favoráveis ao aborto à vontade, ou contra o ensino da Igreja", afirmou Ryan.
Muitos se perguntam se Francisco irá falar sobre o aborto, quem sabe, quando ele se encontrar com o primeiro-ministro e outros líderes políticos, no dia 25 de agosto.
Joseph O'Leary, famoso teólogo irlandês e professor de literatura inglesa, concordou que as questões por trás do referendo eram complexas e disse estar preocupado que o pontífice esteja "cercado por pessoas lhe dizendo que a Irlanda caiu em apostasia".
“Se o Papa pudesse dizer ao povo irlandês: 'Seu recente referendo mostrou uma reflexão madura e entendemos que isso não é uma questão maniqueísta', seria sensacional", completou.
Entre o que Francisco pode abordar com Varadkar estão as questões sobre como a Irlanda será afetada pela decisão do Reino Unido em deixar a União Européia.
Ainda não está claro como essa saída pode mudar o status da fronteira terrestre entre a República da Irlanda, União Europeia e Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido. No momento em que a fronteira for essencialmente aberta e imperceptível, alguns temem que o processo pode levar à imposição de controles de fronteira.
Ganiel, a socióloga da Queen’s University Belfast, disse que a maior dissociação da Irlanda com a Igreja Católica decorre não apenas do efeito dos escândalos de abuso, mas também de um longo processo de modernização econômica e social no país.
A partir de meados dos anos 80, os sucessivos governos irlandeses se concentraram em mudar de uma economia agrícola para uma economia de conhecimento, com atenção especial para atrair a indústria de alta tecnologia à ilha.
"Geralmente, quando há um processo de modernização que inclui mais prosperidade econômica, os indicadores tradicionais de religiosidade em termos de frequência à Igreja tendem a declinar. Eu acho que você tem esses processos gerais de modernização no trabalho", disse Ganiel.
A socióloga também disse que o fato das mulheres começarem a fazer parte da força de trabalho em maior número também afetou a Igreja.
"Muitos historiadores e sociólogos teriam visto as ‘mães irlandesas’ como a principal responsável por passar a fé para a próxima geração. Quando as mulheres começaram a ter menos filhos e trabalhar fora de casa, esse mecanismo para perpetuar o catolicismo também foi quebrado", completou.
Em um evento no dia 19 de julho para o lançamento do Encontro Mundial das Famílias, em 25 de agosto, o arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, disse que o pontífice sabe reconhecer a mudança.
"[Francisco] percebe que há muitas dimensões na longa tradição do catolicismo irlandês e do esforço missionário irlandês. Ele reconhece que não há como as realidades do passado serem replicadas hoje. A visita do Papa Francisco não será uma reedição de 1979", ressaltou Martin.
Ryan disse que a Igreja irlandesa do século 21 precisa "pensar de forma diferente, e se fazer perguntas".
"Temos sido cristãos por um longo tempo, de muitas maneiras diferentes. Acho que temos problemas hoje e é bom que as pessoas estejam expressando isso. É importante que Francisco tenha realmente escolhido vir aqui. Ele deve estar vindo porque quer nos dar esperança e nos mostrar possibilidades, pois está aberto a todas as questões", completou.
Healy, que foi abusado em uma escola de Dublin, administrada pela Congregação do Espírito Santo, disse que espera de Francisco o reconhecimento daqueles que foram vitimados pelo clero. "Não acabou", disse ele, enquanto sua voz tremia de emoção. "Eu gostaria, que ele viesse com compaixão, para alcançar esse sofrimento e abordá-lo. Não é uma questão de protesto social. Isso é uma questão de compaixão humana", ressaltou Healy.
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Irlanda: Sobreviventes de abuso pedem que Papa reconheça encobrimento por parte do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU