27 Abril 2011
Enquanto a Irlanda se prepara para mais um condenatório relatório do governo sobre o tratamento dado pela Igreja Católica à crise dos abusos sexuais, focado na diocese de Cloyne, no sul rural do país, a raiva nesse país uma vez quase homogeneamente católico continua alimentando os apelos a uma reforma bastante ampla.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 22-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma conferência sobre a crise dos abusos sexuais promovida instituto jesuíta Milltown, em Dublin, no início de abril, por exemplo, ouviu propostas para a revisão da teologia católica da sexualidade e do sacerdócio, para a democratização das estruturas de autoridade da Igreja e para uma maior cooperação junto às autoridades civis.
Um palestrante alertou que, sem essa reforma, a Igreja Católica corre o risco de "falência moral".
A indignação pública podia ser vislumbrada logo do lado de fora dos portões do local da conferência, onde um pequeno grupo de sobreviventes dos abusos estendeu uma faixa denunciando a Igreja Católica por apresentar um "exército de pedofilia mundial".
Em um exemplo clássico de verdade em um rótulo, o grupo chama a si mesmo de "Ativistas anti-Igreja Católica da Irlanda".
Diante desse contexto já agitado, os observadores dizem que o relatório Cloyne, ainda pendente, representa uma espécie de carta curinga.
Por um lado, o relatório quase certamente irá aprofundar a desconfiança popular perante a Igreja, pois revela falhas que ocorreram mesmo depois que os bispos irlandeses supostamente aprovaram novas normas rígidas contra os abusos sexuais. No entanto, ele também poderia ser visto como o momento "mais escuro antes do amanhecer", provando que os mecanismos de segurança postos em prática pela Igreja estão trabalhando.
Três comissões governamentais da Irlanda já divulgaram relatórios analisando aspectos da crise dos abusos sexuais: o relatório Ferns, de 2005, que tratava da diocese de Ferns, no sudeste; o relatório Ryan, de 2009, com foco nas escolas dirigidas por ordens religiosas até os anos 1970; e o relatório Murphy de 2010, que analisava a arquidiocese de Dublin.
Enquanto esses estudos se concentravam amplamente em casos mais antigos, o relatório sobre Cloyne examina as queixas feitas entre os dias 1º de janeiro de 1996 e 1º de fevereiro de 2009. Isso é significativo porque os bispos irlandeses adotaram um conjunto inovador de políticas em 1996, dentre outras coisas comprometendo-se a denunciar o suposto abuso à polícia e aos procuradores. O novo relatório mostra que, aparentemente, esses compromissos não foram honrados em Cloyne tão recentemente quanto em 2008.
De acordo com relatos da imprensa irlandesa, o relatório examina acusações contra 19 padres de Cloyne, em que pelo menos alguns dos quais continuaram no ministério, apesar das acusações de abuso. A Suprema Corte da Irlanda decidiu, no início de abril, que o relatório poderia ser publicado, com a exceção de um capítulo que trata do caso de um sacerdote aposentado de Cloyne que enfrenta atualmente um processo penal.
Observadores irlandeses dizem que o relatório Cloyne poderia ter o mesmo efeito de um recente relatório do grande júri na arquidiocese de Filadélfia, nos Estados Unidos, lançando dúvidas sobre afirmações oficiais de "tolerância zero".
O centro das atenções
Também é provável que o relatório Cloyne atraia grande interesse pelo prelado que está em seu centro: o bispo John Magee (na foto, ao lado de Bento XVI), 74 anos, que cedeu o controle da diocese de Cloyne a um administrador apostólico em 2009, em meio à polêmica provocada por uma revisão da Igreja do tratamento dado por ele aos casos de abuso sexual, e que depois renunciou em 2010.
Magee é uma figura lendária nos círculos da Igreja, tendo atuado como secretário particular de três papas – Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II. Especialmente com a beatificação do Papa João Paulo II no dia 1º de maio, os holofotes críticos sobre um veterano infiltrado do Vaticano representam mais um constrangimento tanto para a Igreja irlandesa quanto para Roma.
No entanto, os observadores irlandeses também sugerem uma forma diferente de ler o relatório Cloyne, como prova de que os procedimentos de monitoria internos aprovados pelos bispos irlandeses estão funcionando como anunciado.
Isso porque o primeiro relatório público sobre os colapsos em Cloyne veio de um órgão da Igreja, o Conselho Nacional para a Proteção de Crianças na Igreja Católica, fundado pelos bispos em 2006. Esse conselho, liderado por um especialista em proteção às crianças presbiteriano, lançou uma revisão da diocese de Cloyne depois que cinco pessoas apresentaram queixas contra dois sacerdotes.
As conclusões do conselho, publicadas em 2008, foram altamente críticas ao modo como Magee respondeu aos casos. Ian Elliott, chefe do conselho nacional, disse na época que as práticas em Cloyne eram "significativamente deficientes em inúmeros aspectos".
Essa acusação desencadeou a investigação do governo. Nesse sentido, dizem os observadores, o novo relatório Cloyne, por mais doloroso ou constrangedor que seja, é realmente um produto do próprio compromisso da Igreja com a vigilância – neste caso, expondo as supostas falhas até mesmo de um alto prelado com antigas conexões com o Vaticano.
Contra o pano de fundo dessas revelações, alguns analistas irlandeses dizem que a sua Igreja precisa de uma revisão.
Sexualidade e sacerdócio
Marie Keenan (foto), por exemplo, é uma assistente social e psicoterapeuta da University College Dublin, especializada em abuso sexual infantil. Na conferência de Milltown, ela disse que o trabalho clínico com padres-abusadores tem mostrado que muitos vivem "aterrorizantes vidas obcecadas por sexo", o que é um produto da cultura organizacional da qual eles surgiram.
Na verdade, Keenan apontou que a Igreja tem sorte de a crise não ser pior. Dada uma teologia da sexualidade que pode alimentar o "ódio a si mesmo e a vergonha", argumentou ela, juntamente com uma teologia do sacerdócio que "os diferencia de uma forma não saudável", a questão não é por que tantos sacerdotes abusaram, mas sim por que não foram mais os que o fizeram.
Keenan ofereceu uma série de propostas:
Bernadette Fahy, sobrevivente de um abuso em uma escola industrial irlandesa que cofundou um centro de educação e de apoio às vítimas, alcançou notas semelhantes. Ela apontou um padrão de "autoritarismo, clericalismo e a ideia de um Deus punitivo sempre pronto para atacar" como algo subjacente à crise.
Fahy se refere a uma carta de 1997 aos bispos irlandeses do núncio do Vaticano. A carta, dentre outras coisas, manifestou reservas acerca das políticas que exigiriam que bispos denunciassem as alegações de abuso à polícia e a outras autoridades civis. Ela disse que os bispos deveriam ter agarrado esse momento para "tomar uma posição contra Roma".
"Todos eles deveriam ter renunciado em massa", disse Fahy. Quando os bispos não retrocederam, disse ela, "muitos sobreviventes concluíram que tudo o que eles sofreram não importava para a hierarquia".
O padre redentorista Cornelius Casey, presidente interino do Instituto Milltown, argumentou que as revelações do "tratamento de má qualidade e decadente" da crise aponta para uma necessidade de "uma reinterpretação da fé e do estilo de vida cristão".
Casey sugeriu que a pressão para tal reinterpretação está em marcha há algum tempo, pois leigos e clérigos têm procurado uma "Igreja mais participativa". Nos últimos anos, o estímulo nessa direção estagnou, disse ele, mas hoje "as vozes proféticas sobre a crise nos pedem para continuar essa viagem".
Resta saber quão realistas essas visões podem ser, mas elas não deixam de ser uma indicação do fermento que está em ação na Irlanda.
A exceção
Naquilo que é, de resto, uma paisagem bastante desoladora em termos de percepção pública sobre a Igreja Católica, muitos observadores irlandeses apontam para um ponto brilhante: o arcebispo Diarmuid Martin (foto), de Dublin, que adquiriu uma reputação internacional como um reformador com relação à crise dos abusos sexuais. Nestes dias, uma característica eloquente do discurso público irlandês é que, quando as pessoas queixam-se "dos bispos", eles muitas vezes fazem uma exceção para Martin.
Durante um programa nacional de televisão do início de abril, a reconhecida sobrevivente de abusos Marie Collins chamando Martin de "o único bispo que tem o apoio do povo".
Embora Martin tenha ganhado notícias positivas a nível internacional e entre o público irlandês pela sua relação com os sobreviventes, pela sua cooperação com as investigações civis e pela sua insistência na superação de um legado de arrogância clerical, os observadores irlandeses dizem que ele é às vezes uma figura mais ambivalente entre seus próprios sacerdotes e colegas bispos. De acordo com os relatórios irlandeses, alguns membros eclesiásticos acreditam que Martin se distanciou das consequências da crise ao impugnar outros clérigos.
Martin, um veterano do corpo diplomático do Vaticano, tem agendada uma conferência sobre "Fé e Serviço: O Vínculo Inquebrantável" no Woodstock Theological Center, em Washington, EUA, para o dia 18 de maio.
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Irlanda em ebulição antes dação de novo relatório sobre abusos sexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU