A teologia é chamada a pensar, a não julgar e a refletir à luz da experiência de Jesus de Nazaré. Entrevista especial com Giuseppe Lorizio

​“O livro, junto à Eucaristia e aos sacramentos, é o que de mais precioso nos foi doado e precisamos guardá-lo e preservá-lo. Mas o livro precisa ser interpretado; não pode ser assumido em termos puramente literais”, afirma o teólogo italiano

18 Abril 2025

A ideia difusa na teologia e na Igreja católica de que a “fé é, sobretudo, um fazer, um agir, mas não é um pensar”, dá espaço para “formas angelicais, fundamentalistas e querigmáticas da anunciação” e deixa “de lado o trabalho teológico”, diz Giuseppe Lorizio na videoconferência “Fazer teologia em face aos fundamentalismos contemporâneos. Desafios, tarefas, perspectivas”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada. A escolha por este caminho, adverte, “pode levar a consequências muito tristes para a própria fé”. A palestra do teólogo integra o Ciclo de Estudos “Mudança de época e fazer teológico hoje. Desafios e perspectivas”.

Apesar de a teologia ter uma função acadêmica, pontuou, seu lugar “não é a universidade, mas a comunidade eclesial (…) Meu sonho seria ter uma teologia difusa no contexto eclesial, social, cultural e civil, para que a teologia não seja entendida apenas como algo acadêmico. Talvez isso não possa ser dito de outras disciplinas, mas da teologia, sim, porque uma fé que não é pensada, não é fé. Santo Agostinho fala isso. Precisamos pensar a nossa fé, precisamos motivar as escolhas nas quais a Igreja está fundada e atua no mundo”.

Para Lorizio, uma das funções da teologia é auxiliar na reflexão sobre Deus. “No evento em que participei em comemoração aos 80 anos da morte de Dietrich Bonhoeffer, perguntei: sobre qual Deus precisamos refletir?”

Segundo ele, mudanças significativas no conceito de Deus estão em curso na cultura do nosso tempo. A primeira delas, exemplifica, “é que as pessoas estão atravessando aquele limiar que vai de um Deus pessoal, aquele dos monoteísmos históricos, para um divino impessoal, anônimo, que está presente no mundo, na natureza, que se manifesta como energia cósmica e tem a ver com a natureza espiritual da realidade, porém, permanece não nomeado, desconhecido. É um deus desconhecido e impessoal”. A segunda metamorfose, menciona, é o abandono de um deus exterior e a busca de um deus interior. “O deus em mim saúda o deus em você. Trata-se do deus interior, que talvez tenhamos negligenciado ou deixado de lado no âmbito do monaquismo místico. Esse é o deus que está no centro e está fascinando os homens e mulheres do nosso tempo”. A terceira mudança é “a passagem de um deus masculino para um deus feminino”. Especialmente num momento de transição teológica, sublinha, a teologia “é chamada a não julgar, mas a refletir à luz da experiência de Jesus de Nazaré”.

A seguir, publicamos a conferência de Giuseppe Lorizio no formato de entrevista, juntamente com as questões formuladas pelos participantes do evento ao conferencista.

Giuseppe Lorizio (Foto: Pontifícia Universidade Lateranense)

Giuseppe Lorizio é professor emérito de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, Roma. Especializou-se em Teologia Fundamental em 1980 na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde completou os estudos teológicos, obtendo, em 1988, o doutorado com uma obra sobre a teodiceia de Antonio Rosmini, pelo qual foi agraciado com o prêmio "Emilio Chiocchetti" do Instituto Cultural Trentino. Também é formado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense. 

De 2001 a 2013, dirigiu a área de pesquisa internacional sobre problemas de Teologia Fundamental em perspectiva ecumênica na Pontifícia Universidade Lateranense. É membro do comitê científico da Rivista Rosminiana di Filosofia e di Cultura, dos Simposi Rosminiani e das revistas Studium e Lateranum.

Confira a entrevista.

IHU – Como fazer teologia num contexto de fundamentalismos?

Giuseppe Lorizio O que a teologia precisa fazer? Do que o teólogo precisa se ocupar? Há, ainda, lugar para a teologia na Igreja e na sociedade? Quem se ocupa de questões teológicas hoje não é visto com certa suspeita de querer racionalizar a fé, de querer pensar demais?

Na universidade, costumamos dizer que quem estuda filosofia perde a razão, quem estuda teologia perde a fé, e quem estuda direito perde tempo. É uma piada que circula nos nossos ambientes. Mas é verdadeiro que quem estuda teologia e se compromete com esse espírito perde a fé? Não. Hoje, estamos num contexto de fundamentalismos. Essa é a época que estamos vivenciando. Um fundamentalismo que, sob certo aspecto, tendemos atribuir à mídia, à cultura em geral. Pela mídia, há um pensamento difuso em relação ao Islã, mas também há um fundamentalismo cristão e um fundamentalismo católico para o qual a teologia pode ser uma boa vacina, já que o fundamentalismo é um vírus; é o vírus da fé.

Precisamos da vacina que deriva da razão para poder superar esse vírus e sermos curados. Se olharmos as estatísticas e projeções que nos são propostas dentro da sociologia da religião, com a qual a teologia precisa dialogar, podemos ver que existe um aumento da evangelização – uma evangelização, muitas vezes, tanto no que diz respeito ao âmbito católico quanto no que diz respeito ao âmbito reformado – em países em que há visões evangelicais e querigmáticas da fé.

O fundamentalismo é um vírus; é o vírus da fé – Giuseppe Lorizio

A insistência acerca do caráter querigmático da evangelização faz com que a fé seja pensada, sobretudo, como uma emoção, um envolvimento sentimental e emocional em relação ao qual não é preciso raciocinar, mas sentir; sentir a fé. Na visão que, muitas vezes, parece difusa na teologia católica e na Igreja católica, a fé é, sobretudo, um fazer, um agir, mas não é um pensar, ou seja, é preciso fazer uma imersão na ação social e resolver o problema da fé no sentido ético de solidariedade. Ao dar espaço para essas formas angelicais, fundamentalistas e querigmáticas da anunciação, deixamos de lado o trabalho teológico. Mas essa é uma escolha que pode levar a consequências muito tristes para a própria fé. 

Purificação do cristianismo

Nesse sentido, insisto em dizer que o cristianismo – e não só o catolicismo – europeu, que atravessou a modernidade, vivenciou momentos de conflito com o pensamento, com a ciência, a política e a ética modernas, se purificou graças ao exercício da razão, das tentações fundamentalistas que, por exemplo, são especialmente evidentes dentro do discurso da nossa relação com as Sagradas Escrituras. Muitas vezes preciso insistir no fato de que a nossa não é uma religião do livro. O livro, junto à eucaristia e aos sacramentos, é o que de mais precioso nos foi doado e precisamos guardá-lo e preservá-lo. Mas o livro precisa ser interpretado; não pode ser assumido em termos puramente literais.

A interpretação literal e fundamentalista das Sagradas Escrituras produziu muitos danos na história da Igreja. Pensemos nas grandes questões em relação à Santa Sé e à ciência, no caso Galilei Galileu, Giordano Bruno... É nesse sentido que precisamos pensar que estamos engajados numa operação hermenêutica, porque, afinal de contas, a própria fé é interpretação da realidade. Na realidade da fé entra a relação com as Sagradas Escrituras, com a comunidade, com uma grande tradição, a qual pertencemos e não queremos renunciar, e com o magistério. Se estamos engajados na interpretação das Escrituras, não entendo por que não deveríamos trabalhar na direção de interpretação das posições do magistério da Igreja e também do magistério do Santo Padre. Acredito que esse ponto seja particularmente significativo para nós. 

Caridade intelectual

As nossas instituições acadêmicas têm uma função eclesial fundamental. Meu autor preferido, Antonio Rosmini, tinha essa ideia. Ou seja, a ideia da caridade intelectual, a qual nós negligenciamos por bastante tempo. Tenho medo de que o termo caritas, por exemplo, nos nossos ambientes eclesiais na Itália – talvez isso aconteça também em outros lugares –, seja interpretado apenas como a caridade material. Aquelas instituições da Igreja, como a Caritas, que se ocupam de alimentar os pobres, de fornecer habitação e solidariedade humana às pessoas que mais necessitam. Isso tudo é muito importante e se não fizermos isso não seremos fiéis ao Evangelho.

Mas tem outro nível de caritas, que é a caridade intelectual. Portanto, as instituições acadêmicas, nas quais tentamos, no nosso pequeno mundo, fazer teologia, são caritas. Muitas vezes repito isto para meus alunos: a universidade é a caritas intelectual da Igreja. É uma instituição de caridade, mas a caridade é um engajamento rigoroso; é algo muito profundo. É nesse sentido que gostaria de dizer que o trabalho da caridade intelectual é um pouco negligenciado e deixado de lado pela comunidade eclesial.

Na realidade da fé entra a relação com as Sagradas Escrituras, com a comunidade, com uma grande tradição, a qual pertencemos e não queremos renunciar, e com o magistério – Giuseppe Lorizio

Sempre há certa suspeita em relação a quem faz teologia por parte de quem se ocupa da pastoral e do governo da Igreja. Porém, a teologia deveria ser um trabalho importante exatamente para evitar caminhos fundamentalistas que tendem a ser invasivos dentro do mundo eclesiástico católico, mas não apenas.

IHU – Qual é o lugar da teologia?

Giuseppe Lorizio A teologia não tem somente uma função acadêmica, universitária. O lugar da teologia, sempre falo isso, não é a universidade, mas a comunidade eclesial. Houve muita teologia antes dos cristãos da Idade Média, antes que fossem fundadas as universidades europeias. Não podemos dizer que Agostinho e os Padres da Igreja que nos precederam não tenham feito teologia. O lugar da teologia é a comunidade eclesial. 

Trabalhei em várias paróquias, paróquias de periferia. Não venho somente do mundo das bibliotecas. Trabalhando lá, sempre falava para os jovens que a paróquia é uma escola. Meu sonho seria ter uma teologia difusa no contexto eclesial, social, cultural e civil, para que a teologia não seja entendida apenas como algo acadêmico. Talvez isso não possa ser dito de outras disciplinas, mas da teologia, sim, porque uma fé que não é pensada, não é fé. Santo Agostinho fala isso. Precisamos pensar a nossa fé, precisamos motivar as escolhas nas quais a Igreja está fundada e atua no mundo. Se não formos capazes de motivar racionalmente nossas escolhas, devemos ser capazes de modificá-las. Isso quer dizer que, provavelmente, se não forem motivadas, não são escolhas acreditáveis em relação ao mundo e a nós mesmos. 

A fé purifica a razão, e a razão purifica a religião – Giuseppe Lorizio

Não é um teólogo marxista quem diz isso. Até o Papa Bento XVI faz essa afirmação quando diz que a fé purifica a razão, e a razão purifica a religião. Então, uma religião purificada através do exercício da razão é uma religião que nos ajuda a superar os fundamentalismos. 

IHU – Quais os desafios e as perspectivas para superar os fundamentalismos?

Giuseppe LorizioOs desafios e as perspectivas consistem no fato de que a teologia deve ajudar a entender o nosso tempo. No nosso tempo, o aspecto querigmático sempre foi inserido e acompanhado pelo aspecto kairológico. Ou seja, uma leitura do nosso tempo.

Lembrando a metáfora de Karl Barth: um bom teólogo, pregador e professor tem, numa mão, a Bíblia e, na outra, o jornal. Ler o jornal através da Bíblia interpela a Bíblia através da leitura do jornal. O nosso tempo. Essa é a questão. O que o nosso tempo fala para a teologia? Temos sempre a tentação de fazer uma teologia fora do tempo. Talvez, repetindo os dogmas, as formulações do passado, as interpretações, os grandes autores da nossa tradição prestigiosa, mas não lemos a história. Ler a história não significa ler os livros de história, mas ler o que acontece aqui e agora, ou agora e aqui porque como fala, brilhantemente, o Papa Francisco, o tempo precede o espaço. Então, o agora nunca vem antes do aqui, da situação geopolítica na qual somos chamados a viver. O nosso tempo possui uma palavra inquietante, que não sei até que ponto conseguiremos tolerá-la como católicos. Essa palavra é transição

Transição

O nosso tempo é o tempo da transição. Claro, de imediato, essa palavra contém o prefixo “trans’. Aquele “trans” que nos dá medo, aquela transição que nos coloca em crise porque os posicionamentos antigos e culturais do passado acabam desmoronando. Estar em transição quer dizer muitas coisas: transição cultural, econômica, política. Eu gostaria de focar em três pontos dessa transição a que a teologia é chamada a pensar e, enquanto a pensa, é chamada a não julgar, mas a refletir à luz da experiência de Jesus de Nazaré.

Cada vez que estamos diante de questões dramáticas do nosso tempo, a pergunta não deve ser o que a Igreja pensa a respeito disso, o que a Doutrina Social fala a respeito disso, o que vem do magistério. A pergunta fundamental deve ser o que diria ou faria Jesus de Nazaré diante dessas coisas. Então, me permitam declinar três aspectos da transição contemporânea: 1) a transição antropológica, 2) a transição teológica, e 3) a transição eclesial. 

1) Transição antropológica 

A transição antropológica é a que mais evidentemente surge nos nossos contextos. Estamos bastante atentos ao fato de que parece não existir mais evolução biológica (essa é uma tese bastante popular em ambientes acadêmicos, mas não apenas). Com o evento homem – o surgimento do humano dentro da evolução biológica –, a evolução biológica parece ter alcançado seu fim, seu ponto de não retorno, e de impossibilidade de outros desenvolvimentos. Portanto, o que estamos vivendo e o que nos espera não é outro ponto de desenvolvimento da evolução biológica, mas a evolução cultural. Este é o problema.

Cada vez que estamos diante de questões dramáticas do nosso tempo, a pergunta não deve ser o que a Igreja pensa a respeito disso, o que a Doutrina Social fala a respeito (...) A pergunta fundamental deve ser o que diria ou faria Jesus diante dessas coisas – Giuseppe Lorizio

Estamos em um tempo de evolução cultural que nos leva a refletir, por exemplo, no âmbito das questões que dizem respeito à antropologia, sobre a pessoa humana que se encontra em equilíbrio na fronteira entre natureza e cultura. Venho defendendo a tese, que não é muito compartilhada pelos meus coirmãos, de que a natureza do homem é a cultura. É isto que precisamos enfocar: a natureza cultural do ser humano. Se não chegarmos a isso, não poderemos entender nada das Sagradas Escrituras nem da nossa tradição e do nosso tempo. Este é o ponto específico do homem: constituir-se, historicamente, como um ser cultural. É dessa cultura que fazem parte as suas expressões, aquelas indicações que provêm, por exemplo, da sexualidade, da relação homem/mulher, da relação com a sociedade, com a técnica.

Não podemos estar o tempo todo “chorando” sobre as questões que dizem respeito à Inteligência Artificial (IA) e sobre os desenvolvimentos que dizem respeito ao progresso tecnológico. Sobre isso, tenho uma posição alternativa em relação aos meus colegas e amigos. Nas questões relativas à IA, nós assumimos – não somente dentro do pensamento crente, mas também do pensamento leigo europeu – uma visão ética da questão. Por isso, o primeiro problema que se põe é como regulamentar a IA, que precisaria ser regulamentada. Então, pensam-se os princípios, as linhas éticas e as indicações morais para que a IA não seja prejudicial. Mas não é assim. Talvez, depois, possamos pensar essas questões, mas o que, em primeiro lugar, eu, como crente, estou vivenciando e percebendo, é que a IA me deixa surpreso com a maravilha gerada pela possibilidade de o homem poder criar. O homem, de fato, é a imagem do Deus criador. E o Deus criador, quando cria o universo do homem, faz o quê? Ele coloca o outro. Deus não é o mundo, e o mundo não é Deus. Deus não é o homem, e o homem não é Deus. Deveríamos falar isso para alguns políticos: “Deus existe, e não é você”.

Isto é importante: o homem é capaz de criar algo que se torna outro de si, um outro diferente, que acaba tendo sua autonomia – Giuseppe Lorizio

Ou seja, isto é importante: o homem é capaz de criar algo que se torna outro de si, um outro diferente, que acaba tendo sua autonomia. Então, quando surge o discurso ético e político da regulamentação da IA, temos que propor o tema da autorregulamentação porque hoje, no contexto global, não acredito no fim da globalização, apesar de tudo. No nosso contexto global, quem é a verdadeira autoridade que pode regulamentar uma realidade tão transversal? Se a Europa propuser regulamentos, os Estados Unidos, a China e a Índia irão além desses regulamentos porque não os levam em consideração e vice-versa. Então, onde está o sujeito capaz de regulamentar uma experiência tão fascinante? – é fascinante que o homem seja tão criativo.

O que é importante na teologia da criação é o fato de que Deus coloca o outro de si mesmo no mundo. O homem é livre e se torna autônomo. Então, antes de criar normas, códigos e escrever sobre o direito do ponto de vista da utilização da IA, é importante que não percamos de vista a ligação natural do humano em todas as suas potencialidades e também em todos os seus limites. Se essa ligação permanece, não precisamos ficar preocupados com as normas, mas em manter viva essa realidade.

A teologia da criação não pode dizer respeito apenas ao primeiro livro das Sagradas Escrituras – Giuseppe Lorizio

A teologia deve ajudar a humanidade a compreender essa relação natural [do humano]. A teologia da criação não pode dizer respeito apenas ao primeiro livro das Sagradas Escrituras. Não pode dizer respeito apenas ao fato de que no princípio Deus criou o céu e a terra, mas que essa realidade criativa seja de certa forma comunicada e compartilhada com as pessoas, com homens e mulheres do nosso tempo.

Falei da técnica e da IA, mas eu gostaria de acrescentar uma observação que diz respeito à transição e à questão do gênero. A questão do gênero precisa ser reconduzida à questão da alteridade. Uma alteridade masculino-feminina, feminino-masculina porque acredito que não deveríamos subestimar a dimensão corporal e biológica do ser humano. Mas também acredito que o nosso tempo, no momento em que nos coloca diante de pessoas que realizam escolhas diferentes, escolhas de transição do masculino-feminino, do feminino-masculino, nos coloca diante de um recentramento da questão da fé. Não é mais a questão da alteridade homem/mulher, gênero masculino ou feminino, mas a alteridade entre as pessoas. A alteridade fundamental entre as pessoas nos leva ao amor possível também entre pessoas do mesmo sexo. Visto que esse amor oblativo é um dom, é difícil poder contrastá-lo. Claro, se fosse uma questão de instinto e de impulsos, poderíamos ficar perplexos, mas a alteridade entre as pessoas é o ponto central sobre o qual a transição antropológica nos faz refletir.

2) Transição teológica

No que diz respeito à transição teológica, quero chamar atenção para a ideia de Deus – qual Deus? No evento em que participei em comemoração aos 80 anos da morte de Dietrich Bonhoeffer, perguntei: sobre qual Deus precisamos refletir? No livro de Frédéric Lenoir, “As metamorfoses de Deus”, são propostas três mudanças profundas no conceito de Deus que atravessa nossa cultura e nosso tempo.

A primeira delas é que as pessoas estão atravessando aquele limiar que vai de um deus pessoal, aquele dos monoteísmos históricos, para um divino impessoal, anônimo, que está presente no mundo, na natureza, que se manifesta como energia cósmica e tem a ver com a natureza espiritual da realidade, porém, permanece não nomeado, desconhecido. É um deus desconhecido e impessoal.

No que diz respeito à transição teológica, quero chamar atenção para a ideia de Deus – qual Deus? – Giuseppe Lorizio

A segunda metamorfose é de um deus exterior a um deus interior. Ou seja, as pessoas não buscam mais Deus nas instituições, nos lugares de culto – pelo menos na Itália as estatísticas mostram cada vez mais um declínio –, mas buscam Deus em si mesmas, na própria interioridade, e tentam realizar caminhos espirituais nos quais é possível redescobrir e fazer surgir esse Deus presente em nós. O deus em mim saúda o deus em você. Trata-se do deus interior, que talvez tenhamos negligenciado ou deixado de lado no âmbito do monaquismo místico. Esse é o deus que está no centro e está fascinando os homens e mulheres do nosso tempo.

A terceira metamorfose é a passagem de um deus masculino para um deus feminino. Aqui temos a questão da perspectiva prevalentemente patriarcal que a Igreja assumiu. Por que a Igreja, especialmente a católica, assumiu uma posição patriarcal? O que aconteceu? Essa posição não coincide com a de Jesus de Nazaré ou da primeira comunidade de crentes. Estamos próximo da Páscoa e sabemos da importância da mulher na anunciação. 

Em minha opinião, aconteceu que a Igreja se adequou ao mundo e à sociedade do seu tempo e, numa sociedade patriarcal, a Igreja se tornou patriarcal. Ela cedeu. Então, não é verdade que a Igreja cede ao espírito do tempo se adotar uma visão feminina da realidade. É o caso de começar a pensar realmente todas essas questões e repensar a terceira transição em um momento de compartilhamento eclesial.

3) Transição eclesial

A transição eclesial hoje se chama ou temos a tendência de chamá-la, no âmbito católico, de sinodalidade. Mas tem um grande “porém” aqui que deriva dos acontecimentos recentes, tanto no que diz respeito ao Documento Final do Sínodo da Igreja Universal quanto à não aprovação do documento proposto pelos bispos italianos na assembleia, o que os levou a adiar o discurso do fim do sínodo. Infelizmente, não fico feliz com essas questões.

O sínodo, como lema, é muito bonito, mas precisamos refletir sobre algo muito importante: por acaso a Igreja Católica não poderia exercer a sinodalidade e, de fato, está tendo dificuldades, inclusive, nos momentos sinodais, onde se quer expressar a dimensão sinodal no exercício das decisões, mas tem sempre algo que bloqueia isso? Nesse sentido, minha proposta é outra. Precisamos preparar a sinodalidade também nas igrejas orientais, onde elas têm a sinodalidade no DNA. Os sínodos indicam os bispos, o papa os nomeia, mas é nos sínodos que são tomadas as decisões.

As igrejas reformadas – especialmente estamos dialogando com a igreja reformada mais presente na Itália, a Igreja Valdense – têm um sínodo dentro de si. Precisamos aprender com elas o exercício da sinodalidade porque tanto o êxito da sinodalidade em nível da Igreja universal quanto o êxito do resultado da Igreja italiana foi decepcionante e inadequado à ideia de sinodalidade.

Quem lidera a Igreja é o Espírito Santo. Não podemos ter dúvidas disso. Essa é a garantia da sua sobrevida – Giuseppe Lorizio

Tem um caminho que precisa ser percorrido dentro da transição eclesial a partir de todas as tentativas do Papa Francisco de inserir as mulheres na liderança e governança da Igreja. Evidentemente, aqui tem um confronto com a mentalidade segundo a qual a governança depende do ministério ordenado. Se pudermos distinguir o ministério ordenado do governo da Igreja, então podemos, eventualmente, dar passos adiante.

O problema é que, se não mudarmos o Direito Canônico fundamentalmente, o futuro pode nos reservar surpresas amargas como aquela de um passo atrás em relação à abertura ao feminino na governança eclesial. Essa é uma preocupação. Não vejo iniciativas de revisão do Direito Canônico a esse respeito. Se não fizermos uma profunda revisão do Código, estaremos expostos a qualquer vento que poderá soprar, no futuro, dentro da Igreja.

Quem lidera a Igreja é o Espírito Santo. Não podemos ter dúvidas disso. Essa é a garantia da sua sobrevida. Se os sacerdotes ou o clero liderassem a Igreja, ela já teria acabado há muito tempo. A Igreja existe porque o Espírito suscita carismas e expressões de liberdade e sopra onde quer. Espero que o Espírito Santo continue guiando a nossa Igreja.

IHU – Como explica a relação entre a Teologia da Libertação com o fundamentalismo que, como o senhor disse, é um vírus da fé?

Giuseppe LorizioA questão da Teologia da Libertação foi um grande equívoco. A teologia que, na América Latina, teve esse desenvolvimento, foi mal-entendida em Roma. Roma não entendeu o que estavam falando e reduziu tudo a um esquema europeu ocidental, como se a Teologia da Libertação fosse a assunção dos princípios marxistas dentro da fé, mas não era assim, nem originariamente. Pode ter acontecido isso em alguns expoentes dessa teologia, mas é preciso dizer que a libertação é a mensagem da Bíblia. Jesus vem para nos libertar. É a mensagem de Israel. É a mensagem da Páscoa; é uma mensagem de libertação. 

Se essa mensagem de libertação pode ser acompanhada por uma leitura sociopolítica da realidade, não precisa acontecer necessariamente com categorias derivantes do materialismo histórico-dialético, mas com categorias sociológicas que dizem respeito ao contexto no qual nos encontramos. Portanto, em muitas ocasiões, Roma não entende as realidades contextuais.

Aconteceu isso com Rosmini. Ele foi condenado e depois beatificado porque não foi entendido. Esses mal-entendidos, às vezes, se sobrepõem e permanecem no próprio tempo, mas são ocasiões para valorizar dinâmicas que podem dizer respeito à vida da Igreja. Roma não entende tudo.

Jesus vem para nos libertar. É a mensagem de Israel. É a mensagem da Páscoa; é uma mensagem de libertação – Giuseppe Lorizio

IHU – O problema que vejo na Teologia da Libertação e em muitos de seus expoentes é o desejo, ao menos implícito, de criar uma nova igreja, uma nova estrutura, como uma igreja latino-americana. O senhor chegou a tomar conhecimento desse desejo ou esse é mais um mito criado para criticar a Teologia da Libertação?

Giuseppe LorizioHá duas perspectivas aqui. Se olharmos as coisas do ponto de vista da Doutrina da Fé e da Cúria Romana, vemos a Teologia da Libertação como algo negativo do qual é preciso se livrar nomeando bispos que não lhe sejam favoráveis. Por outro lado, olhando internamente, a tentativa de reestruturar a Igreja, partindo de uma nova relação com a Palavra de Deus e com a comunhão eclesial, é um aspecto que precisa ser considerado.

Um exemplo dessa possibilidade tivemos em Aparecida, onde um dos protagonistas daquele procedimento foi o cardeal Bergoglio. É interessante que se partiu de uma visão puramente sociológica da realidade para passar, depois, à visão teológica.

Não se trata de duas vias paralelas, mas de ter uma visão de fé e, dentro dessa visão de fé, uma hospitalidade, uma visão sociologicamente atenta sobretudo às pessoas e populações que estão em dificuldade. Isso, para mim, foi importante como um ponto de mudança. Não sei se isso poderia ser desenvolvido ainda mais no contexto de vocês, mas está mudando algo, por exemplo, nas nomeações dos bispos.

Depois de uma temporada em que se tentou confiar as comunidades latino-americanas a bispos provenientes de setores tradicionalistas, como o Opus Dei, espero que agora estejam sendo nomeados bispos com maior liberdade de pensamento.

Não se trata de duas vias paralelas, mas de ter uma visão de fé e, dentro dessa visão de fé, uma hospitalidade, uma visão sociologicamente atenta, sobretudo, às pessoas e às populações que estão em dificuldade – Giuseppe Lorizio

IHU – Para entender a Teologia da Libertação, é necessário entender a constituição das teologias contextuais pós-conciliares.

Giuseppe LorizioSim, estou de acordo. Uma teologia que não é contextual não é teologia. Reivindico a contextualização europeia, ocidental, da nossa teologia, mas gostaria que, ao mesmo tempo, não esquecêssemos a possibilidade de outra teologia que é muito importante para entender o Evangelho, porque o Evangelho não se identifica com uma teologia.

O Evangelho anima as mentes para que possam usar a linguagem – que não é apenas uma ferramenta, é algo mais, é cultural e filosófico – que pertence ao próprio contexto. Lembremos que Hegel disse para um estudante italiano que só se pode pensar em grego ou alemão. Mas Tomás de Aquino não sabia essas línguas e, se pensássemos como Hegel, ele não poderia ser considerado um pensador.

Há possibilidades de pensar em diversas linguagens. Em Pentecostes, nem todos falam a mesma língua, mas, mesmo falando línguas diferentes, as pessoas se compreendem, entendem-se e ativam uma dimensão de comunhão. Às vezes, parece, pensando no nosso passado, que se não estudamos na Alemanha ou se não estudássemos em alemão, não valíamos nada. Vivemos uma espécie de germanização da teologia que, claro, foi positiva sob alguns aspectos e nos ajudou a pensar a grande tradição do povo germânico, mas também é verdadeiro que as línguas podem trazer conteúdos e não apenas ferramentas para essa reflexão.

IHU – Desde o homem de Nazaré já assistimos inúmeros fundamentalismos como formas de defesa e ideologias. Analisando friamente, crentes, leigos, a religião, os clérigos e os teólogos se desviaram muito do seguimento de Jesus, colocando seus caminhos e seus próprios fundamentalismos, que contaminam com divisões, julgamentos, intrigas e, o pior, com o distanciamento da Boa Nova. Qual é a sua opinião?

Giuseppe LorizioA minha opinião é que o fundamentalismo fala da cristandade: quando identificamos o cristianismo com a cultura dominante, então o fundamentalismo se torna também uma questão política. Ou seja, é preciso eliminar aqueles que não aderem a essas identificações. As inquisições, a caça às bruxas, a Giordano Bruno, são posições fundamentalistas. Aqueles que criticamente se colocavam numa dimensão de pensamento racional em relação à realidade eclesial se tornavam inimigos e precisavam ser suprimidos.

Então, o fundamentalismo é o infantilismo da fé no sentido negativo, um infantilismo pelo qual se considera que, se não formos crentes, logo não somos nem humanamente aceitáveis. Trata-se de uma posição segundo a qual é preciso eliminar, se não fisicamente, pelo menos intelectualmente quem não pensa da mesma forma.

O fundamentalismo fala da cristandade: quando identificamos o cristianismo com a cultura dominante, então o fundamentalismo se torna também uma questão política – Giuseppe Lorizio

IHU – É possível considerar fundamentalismo o centramento excessivo nas possibilidades humanas, deixando de lado uma sadia relação com as outras criaturas e com Deus?

Giuseppe LorizioDe certa forma, poderíamos dizer que sim, porque, quando lemos a Bíblia de forma fundamentalista ou propomos a Bíblia dessa maneira, esquecemos um aspecto importante da teologia da revelação, que é o aspecto da revelação na sua dimensão cósmico-antropológica. Afinal de contas, Deus não somente está presente nas Escrituras, nas instituições que se animam a partir das Escrituras, mas está presente também no universo. Deus é divino no universo, na natureza.

Vários contemporâneos são sensíveis à presença de Deus na natureza e à tensão em relação ao meio ambiente. Portanto, no momento em que pensamos no ambiente natural, nas florestas amazônicas, no nosso contexto animal, vegetal, como algo que tem a ver com o divino, trata-se de uma ação religiosa da busca e preservação da natureza sem se apropriar dela sem limites como estamos fazendo agora. 

IHU – Se o próximo papa for africano ou asiático, o senhor acredita que haverá avanços, retrocessos ou mudanças significativos na Igreja? Se sim, como imagina a realidade teológica?

Giuseppe LorizioNão sei. Não tenho uma esfera de cristal para poder pensar nisso. O filme Conclave (2024) é muito interessante para pensar no futuro do pontificado. Mas pensando na realidade de hoje, um papa africano ou asiático seria um retrocesso se pensarmos no que aconteceu, no âmbito católico, quando foi promulgado o documento Fiducia supplicans, da possível benção aos casais irregulares e homossexuais. Nós nos encontramos diante de um episcopado africano muito reativo, numa posição bastante tradicionalista. Seria um problema nesse sentido.

Acredito que Papa Francisco tenha uma visão de Igreja que pode ou não ser compartilhada, mas tem uma questão aí: o problema de um cisma. Isso obriga, de certa forma, a dar um passo para frente e dois para trás. O medo de fragmentação do tecido eclesial em relação às posições tradicionalistas dos bispos africanos, mas também em relação às posições progressistas da Igreja alemã, o levam a ter uma situação desconfortável e intermediária para evitar que a Igreja se fragmente ou se confronte com o maior drama que a Igreja pode viver, que é o cisma. Precisamos compreender o papa desse ponto de vista. Não sei se o medo, nesse caso, pode ser um bom conselheiro. Mas o medo, infelizmente, determinou muitas tomadas de decisão da Santa Sé.

IHU – Quais as implicações dos abusos na Igreja, tanto pelo silenciamento quanto pelo cuidado das vítimas e as medidas concretas de proteção?

Giuseppe LorizioEssa é uma grande tragédia. Nunca pensei que poderia assumir uma relevância tão consistente porque, até certo ponto, pensávamos que se tratava de fenômenos marginais. Depois, infelizmente, observamos que, numericamente, isso é algo difundido. Às vezes, personagens assumem o papel de gurus dos outros e abusam não só fisicamente, mas também da mente das pessoas, exercendo um poder que não deveriam ter na Igreja.

Na Igreja não há lugar para gurus. Há lugar para uma comunhão de intenções, junto com o respeito de cada pessoa. Agora, estão conseguindo fazer uma limpeza nesse sentido. Lembremos a expressão do Papa Bento sobre essa sujeira, mas fazer limpeza significa também colocar as pessoas em condições de não criar grupos sectários. 

A Igreja não é uma seita. São nas seitas que muitas violências ocorrem. As seitas são perigosas porque violam as pessoas e elas são violentas na alma e na mente. A vigilância nunca é demais e é necessário denunciar [esses casos]. Mas também temos que olhar, na medida do possível, o bem que tantos missionários e pessoas fazem gratuitamente para os últimos. Os abusos não devem ofuscar essa realidade positiva que está diante dos nossos olhos. Não precisamos ser injustos. O abuso é uma injustiça, mas também não podemos realizar a injustiça de ofuscar o bem que a Igreja faz para as pessoas. 

A teologia precisa ser leiga no sentido de que precisa pertencer ao povo de Deus – Giuseppe Lorizio

IHU – Percebe mudanças no fazer teológico a partir do Sínodo sobre a Sinodalidade?

Giuseppe LorizioNo momento em que refletimos de forma teológica, existe a pressão para uma grande adesão no sentido de uma Igreja sinodal. Mas no momento em que passamos da reflexão à ação, ou seja, à vivência eclesial, encontramos elementos de dificuldade que dizem respeito à persistência do clericalismo, que tem dificuldades de se colocar de lado. Isso pode ser observado nos nossos ambientes se nos confrontarmos com aquilo que acontece nas territorialidades eclesiais.

Nas paróquias e dioceses sempre existe um elemento clerical que constitui um obstáculo à sinodalidade. Vejo um caminho de ascensão e subida, mas penso também que não podemos negligenciar o caminho, o percurso. Não podemos parar. É importante repensar efetivamente a eclesiologia, a teologia da Igreja, à luz de uma dimensão sinodal. Nós, católicos, estamos atrasados em relação às igrejas orientais e reformadas.

IHU – Qual a realidade da mulher no fazer teológico hoje?

Giuseppe LorizioVou falar da situação italiana e acredito que ela tenha a ver com as realidades que vocês estão vivenciando. A questão da teologia vivenciada pelas mulheres se insere no quadro da teologia dos leigos. Então, mais do que falar de uma teologia pelos leigos e para os leigos, prefiro falar em um laicidade da teologia. A teologia precisa ser leiga no sentido de que precisa pertencer ao povo de Deus, do qual, obviamente, fazem parte homens e mulheres. Isso se torna difícil, às vezes, devido aos recursos econômicos que são disponibilizados para a Igreja no âmbito católico da teologia. Onde as faculdades de teologia se encontram dentro de universidades civis, esse problema não existe. Mas, como sabem, a teologia está presente, em geral, nas universidades confessionais e é preciso encontrar soluções para sustentar, economicamente, as mulheres que fazem teologia, que são cada vez mais e mais qualificadas.

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