Movimentação para o fim da escala 6x1 reflete, segundo a socióloga, a importância das redes sociais para mostrar a insatisfação dos trabalhadores
Nas últimas semanas, o movimento de combate à escala 6x1 evidenciou o papel fundamental das redes sociais em mostrar a insatisfação dos trabalhadores com este regime de trabalho. Essa revolta deu origem a um movimento social, Vida Além do Trabalho – VAT, liderado pelo vereador de RJ, Rick Azevedo, que começa sua trajetória ao postar um vídeo, que viraliza no TikTok, vociferando seu descontentamento com a escala 6x1.
Em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a doutora em sociologia Daniela Ribeiro de Oliveira cita a perspicácia de Rick ao transformar e organizar sua insatisfação em um movimento social. “Ele poderia ter mobilizado sua rede para realizar algumas manifestações de rua e tentar pressionar o governo, mas a estratégia de organizar um movimento permite algo com possibilidade de maior efetividade, que é a dimensão formativa presente no movimento social”, diz.
Daniela estuda e pesquisa influencers que pautam o processo de regulamentação do trabalho digital no Brasil e é preciso, inicialmente, entender que a categoria influencer não é uma massa homogênea. Há uma diferença na forma e no conteúdo dos influenciadores motoristas por aplicativo e outros trabalhadores informais, por isso é “necessário observar a atuação por segmento de atuação”. Entretanto, a socióloga coloca que, de modo geral, estas pessoas atuam de forma “reativa frente a um determinado tema trabalhista que esteja repercutindo e mobilizando as opiniões da sociedade por meio da mobilização nas redes sociais”.
Sobre as discussões acerca do regime CLT e de uma possível mudança, Daniela lembra que, embora tenha sido implementada em 1943, o Brasil sempre teve mais de 50% da sua população em trabalhadores informais. “Para esse perfil de trabalhador, a percepção em torno da CLT é ambígua: de um lado eles gostariam de estar em relações de trabalho com garantia de acesso aos direitos sociais, mas há uma recusa em permanecerem em vínculos de trabalho, cuja remuneração é baixa (entre 1 e 1/2 salário mínimo), mas com controle e vigilância rígidos”, pontua.
Daniela Ribeiro de Oliveira | Foto: Arquivo Pessoal
Daniela Ribeiro de Oliveira é doutora em sociologia, professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do PPG em Sociologia e Antropologia da mesma instituição. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Trabalho (GEPT/UFPA).
Confira a entrevista.
IHU – A discussão sobre a redução da escala 6x1 esteve no topo das discussões nas redes sociais nas últimas semanas e ganhou amplo apoio na internet. O que isso indica?
Daniela Ribeiro de Oliveira – O debate da redução da escala 6x1 tem origem na insatisfação individual de um trabalhador, Rick Azevedo, que trabalhava nesta escala e que resolve desabafar gravando um vídeo para sua rede social (TikTok) e esse vídeo viraliza. Até esse momento, as temáticas de seus vídeos não envolviam questões sociais ou políticas e o engajamento em sua rede era baixo. O fato de o vídeo se tornar viral, portanto, indica tratar-se de uma pauta extremamente legítima e que essa insatisfação encontrou eco entre os trabalhadores e as trabalhadoras. Rick foi sagaz em conduzir a insatisfação que poderia circunscrever-se apenas aos relatos e desabafos de trabalhadores na rede social e canalizar a insatisfação em ação política, criando um movimento social (Vida Além do Trabalho – VAT) e, depois, mobilizando esforços político-partidários para revisar a legislação trabalhista sobre a escala.
IHU – Qual tem sido o papel dos trabalhadores youtubers influencers na discussão sobre o processo de regulamentação do trabalho digital no Brasil? Como eles têm atuado e quais têm sido as pautas levantadas e defendidas?
Daniela Ribeiro de Oliveira – Eu diria que os influencers digitais, de um modo geral, atuam de forma mais reativa frente a um determinado tema trabalhista que esteja repercutindo e mobilizando as opiniões da sociedade por meio da mobilização nas redes sociais. Especificamente, no debate sobre a regulação do trabalho dos motoristas por aplicativo, após o lançamento do PL 12/2024 a maioria dos influencers que se envolveram na discussão foram estimulados a reagir a um tema, que os envolviam diretamente, pois eram motoristas por aplicativos e influencers.
Entretanto, antes da discussão sobre a regulação começar, seus conteúdos tratavam do cotidiano do trabalho, valores das corridas, inconvenientes com clientes, questões de segurança, propaganda e venda de produtos de interesse ao motorista etc. É importante chamar a atenção para o fato de que falo de um grupo específico (os motoristas por aplicativo). Os entregadores por aplicativo têm características e condições de trabalho distintas, o que nos faz deixá-los de lado nesse momento.
Fora do contexto do PL 12/2024, a discussão sobre a regulação passa ao largo dos influencers motoristas por aplicativo. Por exemplo, quando a repercussão sobre este projeto de lei esteve em alta, circulava, nos grupos de WhatsApp que acompanhávamos, desinformação sobre o objetivo do PL ao afirmar tratar-se de um projeto que visava obrigar os motoristas a serem CLT. Essa ideia no imaginário dos motoristas causou insatisfação e revolta. A CLT é uma espécie de persona non grata entre muitos trabalhadores e influenciadores. E por qual motivo? Veja, estamos acompanhando dez influencers que atuaram contra o PL do governo, no período de maior repercussão, entre março-abril de 2024; eles engajaram suas redes difundindo conteúdo com seus pontos de vistas e, às vezes, desinformação sobre o PL.
Esses influencers têm perfis variados, mas todos monetizam seus conteúdos e alguns possuem patrocínio e vendem produtos. Um deles faz propaganda para marcas de automóveis e declara que sua renda principal não tem origem no trabalho como motorista, mas com vendas na internet, chegando a “faturar mais de 1 milhão”. Os símbolos de prosperidade e riqueza estão presentes em sua rede. Outros influencers que analisamos, exceção à regra, tornou-se vereador por São Paulo, sendo eleito com a pauta de defesa dos interesses dos motoristas. Trata-se do vereador Marlon Luz, motorista por aplicativo, ativo nas redes sociais e sua atuação o levou à câmara dos vereadores em 2020. Suas pautas defendem os interesses dos motoristas, mas aquelas em torno da lógica empreendedora. Portanto, não se fala em favor da CLT. Sua trajetória mostra que, seja como influencer, seja como vereador influencer, ele tem forte atuação no debate sobre a regulação do trabalho, mas de uma categoria específica que é a dos motoristas por aplicativo. Ele, aliás, atuou também no debate e desenho do projeto de lei que regulou a atuação das empresas de plataforma na capital paulista.
No debate sobre a redução da escala 6x1, o idealizador do movimento VAT, Rick Azevedo, não era um influencer digital: ele se constituiu enquanto tal no processo em que a problematização em torno da 6x1 viraliza. Como os influencers motoristas, os influenciadores de outros segmentos foram induzidos a pautar o tema, seja por considerarem relevante, seja por pressão de seus seguidores. Assim, quando outros influencers se posicionam sobre esse tema, eles o fazem de maneira reativa por achar que precisam posicionar-se ou mesmo por pressão de seus seguidores.
Considerando o desenho das pesquisas que tenho realizado e orientado, não acredito ser possível falar em influencers como uma massa homogênea. É necessário observar a atuação por segmento de atuação. No caso dos influencers por aplicativo, suas ações reforçam teses contrárias à regulamentação dos trabalhadores e valorizam discursos de empreendedor, reforçam a importância de garantir a liberdade e a autonomia dos motoristas, acusam o governo de associação aos interesses das empresas, negam a importância dos sindicatos. No caso dos influenciadores que se posicionaram contra a escala 6x1, suas pautas, antes e depois dos vídeos, relacionavam-se com os seus conteúdos originários.
IHU – Que capacidade os youtubers influencers têm de pautar a agenda política sobre o processo de regulamentação do trabalho no país? O que suas pesquisas sobre o tema têm apontado?
Daniela Ribeiro de Oliveira – Reitero aqui o argumento da resposta anterior: estamos falando de um grupo específico de influenciadores, os motoristas por aplicativo influencers. Acompanhamos a atuação de influencers motoristas de aplicativo durante a repercussão contrária à PL 12/2024 para a regulamentação do trabalho dos motoristas por aplicativos. Até então, eles não estavam em nosso radar da análise, pois nosso objetivo de pesquisa era compreender a organização de instituições de representação dos motoristas por aplicativo (associações e sindicatos).
Entretanto, o Grupo de Trabalho Tripartite para a regulamentação do trabalho dos motoristas por aplicativo, criado em maio de 2023 e coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, passa a enfrentar críticas e acusações de políticos membros da Frente Parlamentar em Defesa dos Motoristas por Aplicativo – FPMA. É bem verdade que as críticas contrárias ao projeto de lei, elaborado pelo governo, partiram de diferentes atores sociais, tanto ligados à esquerda (pesquisadores, políticos, juristas, associações de classe) quanto à direita (sobretudo políticos de extrema-direita) capitaneadas por membros da FPMA.
Em março e abril de 2024, nos grupos de WhatsApp de motoristas que acompanhávamos observamos a circulação de vídeos de motoristas com alto engajamento posicionando-se contra ao PL 12/2024. Seus argumentos criticavam o projeto em três pontos principais: a remuneração mínima de R$ 32,00 que as plataformas deveriam garantir aos motoristas; a denúncia que o GT favoreceu os interesses sindicais em detrimento aos motoristas; o foco da regulamentação tinha como objetivo de fundo a obrigatoriedade de os motoristas passarem a pagar o INSS. É neste momento de forte repercussão e campanhas estimuladas por parlamentares da Frente Parlamentar que observamos a reiterada circulação de vídeos e postagens de atores destacados como influencers. Suas publicações argumentavam que o projeto de lei provocaria efeitos deletérios aos motoristas, beneficiaria o governo federal, pois o projeto teria como foco a cobrança de imposto do trabalhador e que o PL foi pensado e elaborado pelos sindicatos e estas instituições não representariam seus interesses.
Foram também difundidos argumentos contra os sindicatos subindo hastags como #sindicatonaonosrepresenta; #nãoaosindicatos. Também estabeleceram uma associação entre o projeto de lei e a elaboração de mecanismos para obrigarem as plataformas a registrar os motoristas. A CLT também passa a ser alvo de crítica no interior dos grupos de WhatsApp e entre os influencers.
Esse engajamento não ocorre apenas nas redes sociais: na verdade, ele mobiliza motoristas no interior das redes sociais, faz circular inúmeros reels, posts e movimenta o debate dentro das redes, mas seu último ato são as ruas. Os influencers injetaram recursos financeiros para garantir manifestações nas ruas em Brasília e em várias capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nesse processo, levantamos 11 influenciadores com seguidores entre 200 mil e 11 mil. Um deles nos chamou a atenção por ter sido eleito vereador em 2020 em São Paulo, justamente pela sua trajetória como motorista de aplicativo. Em uma das pesquisas que oriento, o discente Pablo Henrique Soares levantou a trajetória desse vereador, Marlon Luz, destacando sua capacidade de pautar as ações de regulação da atuação da empresa Uber no Brasil. E sua atuação contra o PL 12/2024 envolveu a produção de conteúdo e movimentou inúmeros parlamentares em Brasília para votar contra o projeto.
Neste processo, a relação entre a FPMA e os influencers motoristas foi decisiva para fazer circular posições contrárias ao projeto de lei, mas também desinformações sobre o PL 12/2024, além de colocarem em pauta um PL alternativo, o projeto 536/2024. Com a suspensão da urgência da votação do PL 12/2024 o tema da regulação do trabalho dos motoristas arrefeceu na maioria das redes sociais dos influencers, bem como nos grupos de WhatsApp. A exceção é a rede do vereador influencer Marlon Luz. A capacidade de engajamento desses influencers, quando aliados às forças políticas, sugerem uma forte relevância desses atores para pautar o processo de regulamentação, seja para se posicionarem contra o PL 12/2024, seja para fazer tramitar o PL 536/2024 ou fazer cair o PL 12/2024.
IHU – De um lado, observa-se a discussão em torno da redução da jornada de trabalho e, de outro, o incentivo ao empreendedorismo de todo tipo, inclusive nas classes populares. Nesse sentido, a discussão em torno da revisão da escala 6x1 é sinal de uma luta popular real?
Daniela Ribeiro de Oliveira – A repercussão em torno dos efeitos e da necessidade de revisar a escala 6x1 indica que o tema é um problema generalizado entre todos os trabalhadores, independentemente do espectro político com o qual se identificam. A pauta da redução da escala 6x1 atinge sobretudo aqueles trabalhadores e trabalhadoras regulados pela CLT, geralmente os do setor de serviços (supermercado, frentistas, farmácia, call centers…), mas não só. Trabalhadores da indústria, especialmente os terceirizados em diferentes segmentos produtivos, podem ter escala 6x1. Lembremos que esses mesmos trabalhadores, durante o período da pandemia, foram considerados trabalhadores essenciais por exercerem funções que não poderiam ser colocadas em teletrabalho. Os supermercados, por exemplo, não fecharam.
Eu diria que a pauta repercute com força na sociedade dado o modo como a insatisfação social circulou: por meio do vídeo do Rick Azevedo que viraliza no TikTok. Foi a articulação perfeita: a mensagem de insatisfação do Rick, homem negro, jovem e com boa habilidade de se comunicar nas redes sociais e que acaba por atingir em cheio a insatisfação geral dos trabalhadores que também experimentam esse tipo de escala de trabalho.
A discente e pesquisadora Raiane Pereira, coorientada por mim, e que estuda em seu mestrado o TikTok, acompanhou diferentes influencers digitais e suas posições a favor e contra a 6x1. A posição contrária à escala 6x1 é grande entre eles. Entretanto, quando observamos a atuação do VAT, fica evidente que a estratégia de tocar em pontos essenciais da vida cotidiana dos trabalhadores mobiliza a atenção dos trabalhadores. Rick fala de problemas concretos, toca em problemas reais dos trabalhadores.
IHU – Como avalia a repercussão em torno da proposta de redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6x1 a partir da proposta de Rick Azevedo e da deputada Erika Hilton do PSOL?
Daniela Ribeiro de Oliveira – O papel das redes sociais em um primeiro momento foi fundamental para circular a insatisfação que existia, mas não havia meios para circular. A perspicácia de Rick em transformar essa insatisfação em ação política, organizando o Movimento VAT, é o que me parece interessante e potente. Ele poderia ter mobilizado sua rede para realizar algumas manifestações de rua e tentar pressionar o governo, mas a estratégia de organizar um movimento permite algo com possibilidade de maior efetividade, que é a dimensão formativa presente no movimento social. A rua pressiona, mas a força do movimento social tem o poder de formar, de colocar as pessoas para refletirem sobre suas condições de trabalho e vida, fazendo emergir atores políticos a partir da coletividade.
A proposta de Rick Azevedo e da Erika Hilton não é única que tocou na necessidade de alterar a jornada de trabalho, mas ela tem a particularidade de mobilizar e engajar as pessoas por meio das redes sociais e desse processo desencadear a organização de um movimento social (VAT) e, na sequência, o lançamento de Rick como vereador. Tudo muito rápido, quase que na mesma velocidade com que os fenômenos nas redes sociais operam.
IHU – O vice-presidente Alckmin disse que a redução da jornada “é uma tendência na medida em que a tecnologia avança e você pode fazer mais com menos pessoas”. Como podemos interpretar essa declaração?
Daniela Ribeiro de Oliveira – As interpretações podem ser muitas. A resposta dele sugere que ele está pensando a redução da jornada para o contexto do trabalho no segmento industrial. A introdução de tecnologias no processo de produção de bens e serviços sempre foi seguida por desemprego estrutural. E esse argumento implícito em sua fala é parte do argumento economicista que tem sido usado entre os atores sociais contrários ao fim da escala 6x1. Se a escala acabar, aqueles trabalhadores podem ser substituídos por máquinas e ser demitidos.
IHU – No início deste ano, o presidente Lula disse que hoje “as pessoas querem se virar por conta própria e não querem mais ficar presas à CLT”. Concorda com esse diagnóstico? Essa postura é observada também entre os trabalhadores que atuam por meio de plataformas? Com quais nuanças?
Daniela Ribeiro de Oliveira – Há muitas camadas nessa afirmação do presidente Lula. Concordo com o diagnóstico, entretanto é preciso contextualizar a afirmação para compreendermos como chegamos até aqui. No Brasil, a constituição do mercado de trabalho não incluiu o conjunto dos trabalhadores aptos a trabalhar, ou seja, o trabalho regulado via CLT nunca atingiu a totalidade das pessoas economicamente ativas. Uma parcela importante da classe trabalhadora sempre viveu e organizou sua vida a partir de trabalhos informais e diria que essa classe tem cor e gênero: são homens e mulheres pardos e pretos que estiveram e ainda estão imersos em condições de trabalho informal.
Mas o período de 2003-2013, dos dois mandatos do presidente Lula e o primeiro mandato da presidente Dilma, foi a fase em que a série histórica da pesquisa do IBGE sobre emprego/desemprego apresentou a menor taxa de desemprego, encerrando 2013 com 4,7% de desempregados. Por outro lado, em 2008 a figura do Microempreendedor Individual – MEI surge como estratégia para formalizar os pequenos negócios, tais como manicure, vendedor de comida de rua etc. É também nesse contexto que a difusão das ideias empreendedoras por meio da formação de trabalhadores e proprietários de pequenos negócios desenvolve-se.
Nesse sentido, se hoje “as pessoas querem se virar por conta própria” explica-se, principalmente, por um longo processo de individualização do trabalho e de circulação de valores e ideias de valorização do empreendedorismo. O pesquisador e professor Jacob Carlos Lima [1] argumenta que essa lógica empreendedora revela uma nova cultura do trabalho. O processo de difusão da lógica e da prática empreendedora no Brasil acompanha processos globais da disseminação de ideias e políticas neoliberais, de realocação de plantas industriais, da emergência do segmento de serviço, do processo de terceirização, financeirização da economia etc.
A plataformização do trabalho, portanto, emerge neste contexto. Hoje, o trabalho dos motoristas e entregadores por aplicativo é, talvez, mais facilmente reconhecido entre as ocupações. Entretanto, a plataformização difundiu-se em muitas outras ocupações, veja, por exemplo, a pesquisa da Ana Carolina Andrada [2] e colaboradoras, em que revelam a plataformização do trabalho de cuidado (o doméstico e o de cuidadora) que, no contexto da pandemia, o aplicativo passou para a busca de trabalho e trabalhadoras. A prática docente também tem sido alvo da plataformização do ensino. Professores de idioma, por exemplo, tem se cadastrado nas plataformas de ensino para buscar trabalho, ou seja, as plataformas têm funcionado como intermediadoras de trabalho. No Paraná, os professores da rede pública têm sofrido com a plataformização do trabalho docente como parte de política do governo e os docentes têm resistido ao processo.
IHU – A CLT deixou de ser um sonho dos trabalhadores brasileiros?
Daniela Ribeiro de Oliveira – A CLT foi implementada em 1943, entretanto, o Brasil nunca viveu um estado de pleno emprego como países europeus que experimentaram um Estado social de bem-estar. Estou falando de mais de 50% da população economicamente ativa que sempre esteve em trabalhos informais e que constituíram suas vidas vivendo de “bico”. Para esse perfil de trabalhador, a percepção em torno da CLT é ambígua: de um lado eles gostariam de estar em relações de trabalho com garantia de acesso aos direitos sociais, mas há uma recusa em permanecerem em vínculos de trabalho, cuja remuneração é baixa (entre 1 e 1/2 salário mínimo), mas com controle e vigilância rígidos. Os estudos do sociólogo e pesquisador Felipe Rangel, da UFSCar, tratam desse argumento. [3] Ele vem estudando, desde 2012, trabalhadores ambulantes do comércio popular em São Paulo (feira da madrugada). Por meio das trajetórias de trabalho e vida de seus interlocutores, Rangel tem apontado o sentido e os significados do trabalho celetista para eles. Funcionaria como algo híbrido entre garantia dos direitos, mas sem as exigências próprias da subordinação como bater cartão, cumprir ordens de chefia etc.
Com isso, a escalada da lógica empreendedora, que significa individualização do trabalho, autorresponsabilização e a ideia de “ser o próprio patrão”, acaba por fazer sentido para uma parcela de trabalhadores que vive uma trajetória de trabalhos informais. Mas essa lógica empreendedora é incorporada, também, por trabalhadores que têm ou tiveram acesso à trabalhos celetistas, mas que em meio a processos reestruturantes são levados a trabalhar segundo outros vínculos. Digo isso pensando em meus estudos junto aos trabalhadores do segmento de Tecnologias Informacionais (desenvolvedores de softwares). [4]
Em meados da década de 2000, no contexto de processos de flexibilização do trabalho, “pejotização”, ofertar trabalhos cujos vínculos trabalhistas são por meio do cadastro CNPJ torna-se uma regra. Nesse momento, trabalhadores de TI, especialmente os mais jovens, argumentavam preferir a condição de PJ em detrimento a CLT e alguns relativizavam o tipo de vínculo defendendo uma combinação entre receberem os direitos trabalhistas como 13º salário, férias, enquanto trabalhavam como pessoa jurídica. Nesse caso, a avaliação sobre as altas taxas de imposto que incidem sobre sua remuneração era um dos aspectos indicado em desfavor ao PJ. Por isso, um híbrido entre CLT e PJ seria “o melhor dos mundos”, diziam.
Recupero esse caso de trabalhadores ambulantes e desenvolvedores de softwares, com perfis e inserção ocupacional distintos, para argumentar que não consigo responder categoricamente sim ou não a essa pergunta. Os estudos que realizo ou acompanho apontam tendências. Destacam insatisfação dos trabalhadores e trabalhadoras em torno da representação e do modo como a CLT organizam as relações de trabalho quanto às formas de subordinação, das dificuldades de exercício da autonomia com relação a como fazer o trabalho ou limites sobre a liberdade de realizar o trabalho quando e onde quiser.
Não posso deixar de adicionar um elemento importante nesse contexto, que é o papel das redes sociais difundido possibilidades de ganhos financeiros por meio do trabalho pela internet ou venda de cursos, mentorias ou protocolos com fins de “formar” o trabalhador para um novo cenário de trabalho no qual o trabalhador se autorregula e assume o controle sobre seus ganhos. Os símbolos que atestam sucesso e prosperidade dos trabalhadores que se promovem pelas redes é parte da estratégia adotada por coachs e influencers digitais de diferentes segmentos ocupacionais que vendem modos de organizar, planejar e gerir trabalho e rendimento, em que a CLT não é uma expectativa.
IHU – A CLT precisaria ser revisada tendo em vista as mudanças no mundo do trabalho?
Daniela Ribeiro de Oliveira – Na verdade, a CLT foi alterada em 2017, capitaneada pelo governo Temer. O argumento foi a necessidade de garantir segurança jurídica ao empresariado e a necessidade de modernizá-la, dado que sua implementação datava de 1943. Na prática, as consequências da reforma trabalhista sobre os trabalhadores foram muitas, como o enfraquecimento dos sindicatos com a desobrigação do pagamento da contribuição sindical. A reforma trabalhista garantiu interesses empresarial e não dos trabalhadores e, no contexto político atual, pensar em uma nova reforma ou revisão da CLT acho arriscado dada a força política do centro e da extrema-direita no Congresso Nacional.
IHU – Que outras questões precisam ser consideradas no debate sobre a redução da jornada de trabalho no Brasil?
Daniela Ribeiro de Oliveira – O debate sobre a redução da jornada de trabalho é legítimo e necessário e esse processo não está descolado do contexto global e tampouco limita-se aos trabalhadores regulados em escala 6x1.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT, o Brasil está na 8ª posição entre os países do G20 com a maior média de horas trabalhada: 39 horas. Índia e China possuem as maiores médias, 46,7 e 46,1, respectivamente. Essas são médias de horas semanais, o que significa afirmar que, na prática, os trabalhadores em diferentes ocupações laboram muito mais que 39 horas semanais. A introdução das tecnologias digitais no processo de produção de bens e serviços não impediu, porém, o processo de intensificação do trabalho apontado por Sadi Dal Rosso como o fenômeno do Mais Trabalho!
Se a forma clássica de trabalho assalariado permite organizar e medir os tempos da jornada de trabalho e garantir algum tipo de controle e demandar redução, o mesmo não pode ser dito em casos em que os tempos de trabalho e vida estão misturados. O imbricamento de tempo de trabalho e vida privada independe do tipo de vínculo trabalhista, mas seus efeitos impactam com mais força trabalhadores informais, os microempreendedores individuais, trabalhadores plataformizados, autônomos, que precisam garantir seus meios de reprodução diariamente. A necessidade de desconexão do trabalho é também uma pauta que deveria complementar as discussões em torno da jornada de trabalho no Brasil.
A importância deste debate sobre a redução da jornada de trabalho é que ele não está descolado da dimensão de gênero e raça. Problematizar a redução da jornada de trabalho sem redução de salários implicaria garantir uma melhoria nas condições de vida das trabalhadoras, sobretudo aquelas que experimentam a dupla jornada. Dados do Censo 2022 do IBGE apontam que as mulheres se dedicaram 9,6 horas semanais a mais em afazeres domésticos e cuidado de pessoas que os homens. O Censo também indica que, dentre o conjunto das mulheres, as declarantes pretas apresentaram a maior taxa de realização de afazeres domésticos: 96,7%.
1. LIMA, JACOB CARLOS. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho?. Sociologias [online]. 2010, v. 12, n. 25 [Acessado 28 Novembro 2024], pp. 158-198. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007. Epub 27 Set 2011. ISSN 1807-0337. https://doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007.
2. ANDRADA, A. C., CARDOSO, A. C. M., GUIMARÃES, N. A., MORENO, R., PEREIRA, M. J. T. (2023). Plataformas digitais de cuidado no Brasil: Acesso e controle do trabalho no entrecruzamento de múltiplas crises. Tempo Social, 35(3), 5-31. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2023.218376.
3. RANGEL, F. A empresarização dos mercados populares: trabalho e formalização excludente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021. v. 1.
4. OLIVEIRA, Daniela Ribeiro. Do fim do trabalho ao trabalho sem fim: o trabalho e a vida dos trabalhadores digitais em Home Office. 2017. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Sociologia, 2017.