“A Páscoa é um bom momento para lembrar que assim Jesus viveu e que talvez, nos momentos mais graves, este caminho constitua a melhor e mais eficaz teodiceia a que podemos nos agarrar”, afirma o teólogo
As tragédias e o sofrimento humano são incompreensíveis em sua totalidade à espécie humana. A crise pandêmica que atinge o mundo há mais de um ano – que só no Brasil já deixou mais de 348 mil mortos e está destruindo famílias e gerando consequências psicológicas, sociais e econômicas – é um desses grandes acontecimentos para os quais buscamos explicações e saídas.
Apesar de o momento histórico possuir todos os elementos que podem nos levar diretamente ao niilismo e à falta de sentido, a ressurreição de Cristo, proclamada pelos cristãos na celebração da Páscoa, nos convida a viver a partir de outra resposta. “Jesus anunciou um Deus que é Abbá, pai/mãe, que nos cria por amor e apenas pensa em orientar e ajudar. Como Jesus, todos somos filhos e filhas nascidos de Deus e chamados a confiar que nossa existência, aconteça o que acontecer, tem sentido e podemos viver na confiança absoluta e esperança definitiva. Ao nos revelar como filhos e filhas, revela-nos como irmãos que formam realmente uma família, de tal tipo que a vida humana só se realiza de verdade no amor, na ajuda e no serviço mútuo. Somente assim podemos mostrar nossa fé em que somos filhos e filhas, e desse modo realizamos nossa humanidade mais autêntica”, diz o teólogo Andrés Torres Queiruga na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Meditando sobre o significado da crucificação e das palavras finais de Jesus, o teólogo afirma ser possível compreender a crucificação não apenas como um Deus que se rebaixa, mas também como um Deus que se eleva à máxima potência. “Compreende-se que desta maneira não apenas se ‘rebaixa’ o significado da cruz, mas que se eleva a sua máxima potência real: no realismo fraternal de sua vida, Jesus, sendo como nós, feito de nossa carne e habitado pelo mesmo Espírito e pelo amor do mesmo Abbá, conseguiu manter sua confiança quando tudo parecia desmenti-lo. Agora, graças a ele, como expressa São Paulo, nós sabemos de maneira já irreversível que nada nem ninguém – nem sequer a ‘vergonhosíssima’ morte da cruz – pode nos apartar do amor fiel de Deus; e que, portanto, amparados pelo mesmo Pai, nós humanos podemos afrontar com sentido a morte e que, como ele, todos, inclusive as inúmeras vítimas irredentas na história, encontrar-nos-emos ressuscitados nas mãos que acolheram a sua vida confiada à cruz”, pontua. Ele também critica as interpretações teológicas que, no "afã de interpretar o verdadeiro sentido" da Paixão de Cristo, buscam "um modo supra-humano e, portanto, inumano para interpretar seu sentido salvador", "a partir de pressupostos demasiado humanos".
Neste momento em que o sentido do cristianismo é novamente questionado, Queiruga menciona que “se conseguirmos recuperar plenamente a humanidade de Jesus e apresentá-la em si mesma, consubstancial à nossa, feita da mesma carne e habitada pelo mesmo Deus-Abbá que nos faz irmãs e irmãos, o Evangelho continuará a ser sal e luz”. E acrescenta: “O amor de Deus e seu impulso salvador é transportado para dentro de nós, desde as nossas raízes mais profundas, e está esperando dos cristãos a palavra maiêutica, lúcida e coerente que o ajude a nascer".
A seguir, Queiruga também reflete sobre a presença do mal no mundo, apesar da existência de Deus, tema abordado na sua conferência online no mês passado no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, intitulada O mistério pascal e a resposta cristã à questão do mal e do sofrimento. “Induz à impressão de que o mal é um problema exclusivamente religioso, sem considerar que é um problema universalmente humano”, resume.
Andrés Torres Queiruga (Foto: Divulgação)
Andrés Torres Queiruga é professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. É licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha, doutor em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Entre suas obras publicadas em português, citamos Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano (São Paulo: Paulinas, 1993); O cristianismo no mundo de hoje (São Paulo: Paulus, 1994); A revelação de Deus na realização humana (São Paulo: Paulus, 1995); e Repensar a ressurreição (São Paulo: Edições Paulinas, 2004). No livro A teologia na universidade contemporânea, publicado pela Editora Unisinos, 2005, Queiruga é autor do artigo “A teologia a partir da modernidade”.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta o mistério pascal? Que sentido ele pode dar a nossa existência, especialmente em períodos como o que vivemos, imersos na tragédia e no sofrimento gerados pela crise pandêmica?
Andrés Torres Queiruga – O mistério pascal está no centro da experiência cristã. Culmina a vida de Jesus e de algum modo totaliza o sentido de seu Evangelho. Jesus morre, primordialmente, porque era humano: é o destino biológico de todo homem ou mulher. Morre com uma morte muito dura, que é consequência de sua mensagem: desafiava o modo corrente de interpretar sua tradição religiosa e dali tirava e praticava as consequências igualitárias para a vida humana.
Anunciou um Deus que é Abbá, pai/mãe, que nos cria por amor e apenas pensa em orientar e ajudar. Como Jesus, todos somos filhos e filhas nascidos de Deus e chamados a confiar que nossa existência, aconteça o que acontecer, tem sentido e podemos viver na confiança absoluta e esperança definitiva. Ao nos revelar como filhos e filhas, revela-nos como irmãos que formam realmente uma família, de tal tipo que a vida humana só se realiza de verdade no amor, na ajuda e no serviço mútuo. Somente assim podemos mostrar nossa fé em que somos filhos e filhas, e desse modo realizamos nossa humanidade mais autêntica.
IHU On-Line – Na conferência que ministrou de forma online no Instituto Humanitas Unisinos - IHU recentemente, o senhor questionou, em certo sentido, a interpretação teológica de Moltmann sobre a Paixão de Cristo, para quem a morte de Jesus é o grande sacrifício de salvação. Na sua interpretação, a crucificação é a última lição que Jesus (em sua dimensão humana) compreendeu: a de que Deus é a salvação para nós. Pode explicar melhor a sutileza que distingue a sua interpretação da de Moltmann e como ambas nos apresentam duas visões acerca do sentido e do significado da cruz e da ressurreição?
Andrés Torres Queiruga – Falei de Jürgen Moltmann como um caso, de certo modo, paradigmático de uma interpretação teológica muito frequente quando se explica o significado supremo da morte e ressurreição de Jesus. Porém, cada vez mais estou convencido de que, por esse caminho, em nosso afã de interpretar seu verdadeiro sentido, buscamos um modo supra-humano e, portanto, inumano para interpretar seu sentido salvador.
Hoje já não se fala, como faziam os textos que estudava minha geração, de que Jesus sofria em seu corpo, mas que na “ponta de sua alma” estava gozando da visão beatífica, e que já tinha perfeitamente claro o quadro do que iria acontecer... Isto é, buscava-se compreender a grandeza e o significado salvador de sua morte como se tanto ela quanto o modo de afrontá-la fossem regidos pelas leis especiais de uma humanidade distinta da comum e de um modo diverso de Deus se comportar conosco.
Contudo, se Jesus é verdadeiramente humano, sua grandeza consiste na maneira de enfrentar o mesmo que acontece a todos, mas descobrindo que podemos fazê-lo porque Deus está nos apoiando. Jesus nos revelou que isso é possível desde a fé em seu amor e a confiança em sua fidelidade, seja qual for a aparência externa. Em vez disso, se tentou interpretar que seu modo de viver a morte obedecia às leis distintas das que presidem a morte e ressurreição dos demais mortais: não apenas seriam distintas as leis humanas de seu ser, mas que os eventos obedeceriam a um programa divino preestabelecido. Por isso se fala de sua morte como “resgate” necessário; ou dessa teoria teologicamente horrível do “abandono” real de Jesus por Deus; ou, pior, do “castigo” para fazer possível o perdão e a salvação divina.
Confesso que cada vez mais me horroriza este modo de interpretar o evento. No fundo, responde a uma construção a partir de nossa lógica; de maneira que, em vez de nos esforçarmos para “aprender” o que ocorreu, determinamos, a partir de pressupostos demasiado humanos, como tudo tinha que acontecer para que responda à imagem que nós fazemos de como deveria ser Jesus para poder confessá-lo como Salvador.
Sou consciente de que aqui há problemas muito difíceis e profundos implicados, tanto de exegese quanto de hermenêutica. Não é possível aqui entrar neles. Porém, para que se entenda o que tento dizer, no livro que estou escrevendo, falo da “tentação petrina”, referindo-me à cena em que São Pedro, no momento de confessar a messianidade de Jesus, “deduz” que então Jesus não pode ser derrotado e sofrer em Jerusalém. Por isso, chamando-o de lado, repreende-o (literalmente), dizendo-lhe que isso não deve ser assim. E já vemos a enérgica e duríssima reação de Jesus, que chega a chamá-lo de Satanás, precisamente porque seus pensamentos “não são os de Deus, mas sim os dos homens”. Pessoalmente, creio que este aviso está desafiando a nossa fé e lança um aviso urgente em nossa teologia.
IHU On-Line – O senhor "questiona" as palavras que os evangelhos de Mateus e Marcos "põem na boca de Jesus", quando narram a morte de Cristo na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", e ressalta o aspecto da confiança de Jesus em Deus, a partir do Evangelho de Lucas, que diz: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Por que o senhor prefere a leitura de Lucas? Pode explicar por que a diferença que marca esses evangelhos é tão importante para compreendermos tanto o sacrifício quanto a redenção do mal, a salvação, mas também o amor de Deus?
Andrés Torres Queiruga – Não questiono essas palavras, mas sim trato de interpretá-las em seu contexto. São palavras “teológicas”. Os evangelistas, como bem dizes, colocam-nas na boca de Jesus, tratando de compreender o sucesso terrível que narram. Marcos e Mateus recorrem a palavras de um salmo, tratando de refletir algo verdadeiro e evidente: a angústia terrível, o desconcerto e a dúvida que suporia para Jesus sofrimento injusto e incompreensível (mais incompreensível ainda na mentalidade religioso-cultural da época, que tendia a atribuir tudo o que acontecia como ordem direta de Deus).
Lucas busca outro aspecto: em coerência com o fato de que Jesus se mantém fiel até a morte e com o que sabe de sua vida e doutrina, interpreta que viveu sua morte e sua angústia, apoiando-se na confiança absoluta no amor e na ajuda do Pai (recorde-se: “se vossos pais que são maus... quanto mais vosso Pai celestial!”). Creio que Lucas completa os outros – de certo modo é possível que tenha querido corrigir a impressão deixada por suas expressões – interpretando com acerto profundo o que pode passar no espírito de Jesus: desconcertado pelo que acontecia, muito difícil de compreender pela mentalidade “teológica” de seu tempo, encontrou, apesar disso, a decisão autêntica: manter sua confiança na fidelidade inquebrantável do Pai. Note-se que Lucas põe “Pai” em sua boca, enquanto Marcos e Mateus colocam “Deus”: não se trata de contradição, mas de perspectivas teológicas distintas.
Lucas expressa melhor em que consistiu a culminação reveladora de Jesus: apesar da mentalidade religioso-cultural de seu tempo, mantém a confiança em Deus e abre assim para todos a porta para a compreensão teológica. Conseguiu levar a sua culminação – insuperável e já definitiva para a história humana – o desígnio salvador de Deus. Em algum momento me atrevi a dizer que essa foi a última lição que Jesus aprendeu para si e revelou para nós (recorde-se que a título de lição, de “aprender pelo sofrimento”, já falava a Epístola aos Hebreus).
Meditado a fundo, compreende-se que desta maneira não apenas se “rebaixa” o significado da cruz, mas que se eleva a sua máxima potência real: no realismo fraternal de sua vida, Jesus, sendo como nós, feito de nossa carne e habitado pelo Espírito e pelo amor do próprio Abbá, conseguiu manter sua confiança quando tudo parecia desmenti-lo. Agora, graças a ele, como expressa São Paulo, nós sabemos de maneira já irreversível que nada nem ninguém – nem sequer a “vergonhosíssima” morte da cruz – pode nos apartar do amor fiel de Deus; e que, portanto, amparados pelo mesmo Pai, nós humanos podemos afrontar com sentido a morte e que, como ele, todos, inclusive as inúmeras vítimas irredentas na história, encontrar-nos-emos ressuscitados nas mãos que acolheram a sua vida confiada à cruz.
Por isso, porque conseguiu culminar de forma definitiva (final, ep’esiatu, diz Hebreu) a compreensão e o viver de maneira autêntica o que Deus esteve trabalhando para revelar a todos ao longo da história das religiões e de sua concretude insuperável na Bíblia, Jesus ocupa o centro único e irrepetível na revelação do “mistério” que falou São Paulo. Aqui têm seu fundamento as explicações cristológicas de segundo ou terceiro grau, como diria Edward Schillebeeckx; mas ancorando-as na realidade, lendo-as nela, não deduzindo a partir delas como deveria ser a realidade. De outro modo, a humanidade de Jesus seria distinta da nossa e sua revelação e seu exemplo de nada poderiam servir a nós. O Evangelho seria compreensível e realizável para ele, porém não para nós. Hegel expressou com ênfase: seu anúncio seria como o de Santo Antônio, pregando aos peixes. E o Concílio proclamou positivamente o mesmo com um de seus maiores princípios: no mistério de Jesus Cristo revela-se o nosso mistério.
IHU On-Line – Na palestra, o senhor também disse que deveríamos ser ateus se aceitássemos o seguinte dilema de Epicuro: ou Deus quer evitar o mal e não pode, então não é onipotente, ou Deus pode evitar o mal e não quer fazê-lo, então não é bom. Por que esse é um falso problema e por que essas questões ainda são refeitas pelos cristãos?
Andrés Torres Queiruga – Se quisermos ser intelectualmente honestos e admitir que esse dilema está correto, não vejo, de fato, como alguém poderia acreditar em Deus mantendo a coerência. Se me disserem que no Hospital Geral da Galizia, perto da minha casa em Santiago, há um médico que tem o poder de curar todos os enfermos e que não o faz, diria que é um canalha e pessoalmente não gostaria de conhecer coisa alguma dele. Como é possível seguir pensando e dizendo que Deus, onipotente, poderia não querer apenas curar todos os doentes desse hospital, ou acabar com as pestes, as guerras, os massacres, os tsunamis, os crimes e as angústias de todo mundo? Só de imaginar, é monstruoso.
Felizmente, isso nunca é explicitamente e conscientemente pensado ou aceito; mas, infelizmente, está sendo “praticado” toda vez que pedimos e imploramos a Deus para acabar com a Covid-19 ou remediar a fome no mundo. Porque, se você perguntar e tentar convencê-lo (examine o seu vocabulário, às vezes com palavras que objetivamente, embora sem intenção, são ofensivas: tenha misericórdia, seja compassivo, não se esqueça...), você está assumindo que Ele poderia fazer, e se não o faz é porque não quer. De fato, mesmo grandes teólogos que admiro podem falar em responsabilizar Deus pelo sofrimento das crianças ou dizer que por isso ele não seria absolvido em um tribunal humano...
Compreendo cordialmente esses fenômenos, porque carregamos os pressupostos impressos pela educação e pela inércia tradicional. Não obstante, cada vez menos entendo que continuemos assim, uma vez que isso nos tenha ficado claro e consciente. No imaginário cultural, mesmo que não o percebamos, isso significa uma autêntica semeadura do ateísmo, que está minando a possibilidade da fé.
IHU On-Line – Ao refletir sobre a existência do mal no mundo e, em particular, sobre a atual crise sanitária, o senhor disse que qualquer mal que existe no mundo tem uma causa dentro do mundo, ou seja, o mal é produto inevitável da finitude. A partir disso, o senhor sugere que o dilema de Epicuro seja refeito: “O mundo produz o mal, então, por que Deus cria o mundo apesar da existência do mal? E a resposta cristã é: apesar do mal, o mundo vale a pena”. Como essa sua proposta nos ajuda e nos encoraja a enfrentar momentos como este que estamos vivendo, em diferentes âmbitos, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo?
Andrés Torres Queiruga – Justamente, aí está o caminho para uma resposta atual. A mesma cultura que agravou o problema até converter o mal “na pedra do ateísmo”, mostra também por onde a solução surge. Porque, curiosamente, tanto os que atacam a Deus porque não elimina o mal do mundo, como os que o defendem sem uma lógica capaz de responder ao dilema de Epicuro, partem de uma visão cultural anacrônica e obsoleta. Seguem raciocinando com uma mentalidade religiosamente mítica e freudianamente regida pelo delírio infantil de uma onipotência arbitrária: ambas posturas dão por certo que um mundo-perfeito-sem-males é possível.
Não é o momento de entrarmos agora em um raciocínio prolongado. Entretanto, destaco, não é difícil perceber que, acabada (ao menos fundamentalmente) a visão mítica do mundo, na cultura atual é impossível pensar em um mundo perfeito, pela mesma razão que não podemos pensar em um “círculo-quadrado”. O mundo – qualquer mundo – é finito em rigor metafísico, e a finitude não é ruim, mas não admite a perfeição total. Rege-se por leis que definem seu funcionamento e nelas não se podem evitar choques, disfunções e conflitos. Percebemos isso espontaneamente: não se fazem tortas sem quebrar os ovos, não se pode sorver e assoprar ao mesmo tempo; e, por outro lado, a liberdade humana não pode evitar fracassos e conflitos. A finitude é carente pela necessidade intrínseca: “toda determinação é negação”, dizia Spinoza. E a realização é conflitiva e inevitavelmente “contraditória” no sentido de Hegel.
É por isso que, sem saber então, o dilema de Epicuro era complicado e radicalmente falso. Na verdade, era tido como certo que poderia existir um mundo perfeito, sem o mal. Dessa forma, parecia fazer sentido perguntar por que Deus não o criou sem que os males pudessem aparecer. Mas hoje entendemos que isso equivaleria a perguntar por que Deus, sendo capaz, não quer criar círculos-quadrados; ou, de boa vontade, ele não pode fazer ferros de madeira. Na cultura pré-moderna, essa impossibilidade não era culturalmente visível; mas hoje a consistência do mundo e as leis que governam seu funcionamento tornaram-se evidentes.
O próprio Concílio proclamou essa autonomia e a necessidade de a reconhecer e respeitar tanto no seu funcionamento físico como no seu dinamismo social. Isso significa que tudo o que acontece no mundo nesses níveis, na natureza ou na história, tem uma causa dentro do mundo. Estamos verificando: no século XIV a Peste Negra encheu a Europa de orações, procissões e flagelantes; a pandemia de Covid-19 colocou os laboratórios para trabalhar. Pode-se duvidar se o vírus veio de um animal, escapou de um laboratório ou se pode ser fruto deliberado de uma máfia sinistra; mas ninguém hoje pensa que é um castigo de Deus ou um ataque do demônio.
IHU On-Line – Então, como se aborda o problema do mal hoje?
Andrés Torres Queiruga – O problema do mal não desaparece: é o preço de nossa finitude e é preciso contar com sua apreensão individual e com toda a dor do mundo. Porém, a pergunta muda de forma radical. Não tem sentido perguntar por que Deus não cria um mundo-sem-mal, porque é uma pergunta vazia. A única maneira de abordá-la com sentido é: se um mundo, por ser necessariamente finito, implica a aparição de males, disfunções e sobretudo sofrimento, por que Deus, sabendo disso, o cria?
A pergunta é correta e constitui um grande e doloroso desafio. Não obstante, é importante ter cuidado com ela, porque podemos cair novamente no mito, pois desse modo se introduz uma nova armadilha, distinta, mas grave. Começar diretamente por essa pergunta, induz à impressão de que o mal é um problema exclusivamente religioso, sem considerar que é um problema universalmente humano. Costumo dizer que os filhos dos ateus nascem chorando igual aos dos que creem, e todos os humanos estão expostos ao sofrimento, à injustiça e à morte.
Isso exige distinguir dois passos fundamentais que costumam ser confundidos e turvar o problema:
1) por que existe o mal no mundo?; e
2) como afrontá-lo para dar sentido à existência no mundo e fazê-la menos pior e melhorá-la no possível?
Do primeiro passo falamos até aqui. Porém, convém situar de maneira expressa seu lugar, indicando a necessidade de começar por um tratado de caráter filosófico: a ponerologia (do grego ponerós, mau), um estudo do mal por si mesmo. Em uma cultura secular não se pode começar perguntando “quem envia” o mal, se são os deuses, Deus ou o demônio, mas sim “como se produz” o mal no mundo. Então compreendemos que é um problema que nos afeta como humanos, e todos, ateus, agnósticos ou religiosos, temos de enfrentá-lo e lutar contra ele. Este é o primeiro passo: descobrir suas causas e afrontar seu desafio.
Então aparece o sentido preciso do segundo passo: como responder ao mal e que resposta podemos considerar a que (mais) nos convence. De fato, é o que acontece na prática vivida: toda visão do mundo implica uma resposta ao mal, e todos nos encontramos na necessidade de escolher entre as distintas ofertas, buscando as razões em que se apoiam. Resposta é, por exemplo, o niilismo, afirmando que nada tem sentido e não vale a pena lutar. Resposta é o marxismo, dizendo que vale a pena, ainda que tudo acabe na morte. Resposta é a religião, em concreto a cristã, anunciando que o mundo tem sentido apesar do mal, porque Deus nos criou por amor, nos acompanha e garante nosso destino nesta vida e inclusive mais além da morte na vida eterna.
A teodiceia tradicional apresenta a elaboração sistemática desta resposta. É preciso reconhecer que, apesar do bom começo de Leibniz (em geral, mal interpretado), não conseguiu enfrentar o dilema de Epicuro, e que Kant teve razão ao proclamar “O fracasso de todas as tentativas filosóficas (e teológicas) na teodiceia”. No livro Repensar o mal, ocupei-me largamente deste problema. Inquietava-me a pergunta de como é possível que, apesar de carecer de verdadeira solução, a teologia se mantivesse sem atender de verdade ao desafio do famoso dilema, deixando-o sem solução. Essa inquietude levou-me a fazer uma distinção importante entre um “caminho curto” e um “caminho longo” da teodiceia.
O caminho curto da teodiceia não foi tematizado teoricamente, mas esteve implícito na base experiencial, sustentando a coerência da fé. É um caminho válido, porque se apoia na lógica da confiança. Em um ambiente cultural onde a fé em Deus gozava de vigência intelectual e de plausibilidade social, a confiança no amor de Deus e o exemplo de Jesus faziam (pres)sentir que, se havia tanto mal no mundo, tinha que existir alguma razão que o fazia inevitável, porque de outro modo Deus o eliminaria. Contemplar uma mãe à cabeceira da cama de um filho adoecido, permite-nos concluir, com certeza, que, se fosse possível, ela o curaria. E note-se que a razão não reside no maior ou menor poder, mas sim no amor. Basta recordar Isaías, já no Primeiro Testamento, para compreender a validade incontestável deste caminho curto. “Por acaso uma mulher se esquece do filho do seu seio? Pois ainda que ela esqueça, eu não me esquecerei”. Tão válido que me atrevo a afirmar que se tivesse que apostar minha vida escolhendo entre a certeza do Teorema de Pitágoras ou a do amor de minha mãe, não hesitaria em escolher a segunda. E com certeza o amor infinito de Deus é a máxima garantia do valor lógico deste raciocínio humano.
A Páscoa é um bom momento para lembrar que assim Jesus a viveu e penso que nos momentos mais graves, este caminho constitui a melhor e mais eficaz teodiceia a que podemos nos agarrar. E é certo que ela foi o grande e fundamental refúgio da fé ao longo da história. Insisto nisso porque, ao mesmo tempo, é preciso insistir também na necessidade atual do longo caminho da teodiceia. Mesmo é necessária para garantir o valor do caminho curto, porque se hoje não se destrói a falsa lógica abstrata em que repousa o dilema de Epicuro, para muitos se fecha o caminho da confiança e se abre o abismo da conclusão ateísta.
Nesse sentido, a vida de Jesus sintetiza e exemplifica a resposta cristã: ele enfrentou o mal a partir da confiança na presença amorosa e ativa de Deus vivido como Pai. E embora, então, em sua mentalidade cultural ele não tivesse expressamente a ideia de autonomia, ele a envolveu em seu comportamento. Porque a confiança não o induziu a proclamar o céu como um recurso alienante: ao longo da sua vida lutou contra os sofrimentos reais e as injustiças reais, ajudando os outros como irmãs e irmãos, proclamando que esta é a forma autêntica de ser humano; no final, ele foi capaz de enfrentar até mesmo o aparente fracasso da cruz, colocando sua vida nas mãos daquele "que ressuscita os mortos".
IHU On-Line – Durante a pandemia, aumentaram os relatos de casos de depressão, angústia, falta de esperança, medo e problemas psíquicos em geral. Como o senhor interpreta esse fenômeno do ponto de vista teológico? A sociedade está desaprendendo a lidar com o sofrimento? Ou não encontra mais em Deus uma fonte para vivenciar e superar o sofrimento?
Andrés Torres Queiruga – Não se deve reduzir tudo à resposta religiosa, pois há muitos valores positivos nas distintas respostas humanas. Porém, sim, creio que os valores que aparecem na tradição bíblica, sobretudo tal como culminam na vida e doutrina de Jesus de Nazaré, supõem uma ajuda que, quando se descobre e pratica de verdade, representa um bem enorme para a humanidade. Por sorte, está muito mais presente no seio da nossa cultura do que aparece na superfície. É uma pena que as deformações históricas e as sempre insuficientes atualizações de seu anúncio de nossa parte, como Igreja e como crentes individuais, não ajude mais a que se perceba seu verdadeiro sentido. Por sorte, o Papa Francisco está sendo um farol luminoso e comprometido, um vento de esperança.
IHU On-Line – Há muita literatura sobre a crise da Igreja e do cristianismo, e o próprio Papa Francisco já declarou que “hoje já não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos”. Qual é o sentido do cristianismo hoje? Ele continua a ser sal da terra e luz do mundo? Por quê?
Andrés Torres Queiruga – Isso é justamente o que tentei dizer na resposta anterior. Insistiria também em recuperar plenamente a humanidade de Jesus, porque se conseguirmos reconhecê-la e apresentá-la em si mesma, consubstancial à nossa, feita da mesma carne e habitada pelo mesmo Deus-Abbá que nos faz irmãs e irmãos, o Evangelho continuará a ser sal e luz. Porque o amor de Deus e seu impulso salvador é transportado para dentro de nós, desde as nossas raízes mais profundas, e está esperando dos cristãos a palavra maiêutica, lúcida e coerente que o ajude a nascer.
IHU On-Line – Por que o senhor está revisando suas reflexões sobre a Trindade? O que o motivou a iniciar essa tarefa?
Andrés Torres Queiruga – Responde a esta mesma preocupação: falar de uma Trindade, não como um problema abstrato no céu, mas como uma realidade viva na terra, encarnada no mundo como o espaço vital onde, unidos a Jesus Cristo como Filho Primogênito, habitamos como filhos e filhas do Pai, que está nos criando por amor e vivificando com o sopro de seu Espírito. A história do dogma trinitário é tão complexa e está tão sobredeterminada por pressupostos culturais, que não é fácil acertar. É muito difícil encontrar palavras e esclarecer a perspectiva adequada que, ao menos, permitam expressar e fazer perceptível o verdadeiro sentido do que tento compartilhar.