18 Mai 2020
"Na verdade, a única coisa que podemos afirmar é que, como em qualquer situação, mesmo na pandemia, Deus manifesta sua presença de forma oculta: ele é invisível, impossibilitado de intervir colocando um fim ao vírus, da mesma forma que não podia enviá-lo. Nosso Deus é onipotente apenas no amor, mas ele não pode nos causar mal. Cabe a nós, seres humanos, combater o vírus e a morte, assumindo com responsabilidade e cuidando dos outros, entre os quais especialmente os mais pobres e fragilizados".
A opinião é de Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Stampa, 17-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nesse longo período de pandemia, a crise, agora de revelação e juízo, situação em que se revela a gravidade da doença e se identifica o caminho da cura, tocou todas as realidades: das mais evidentes, como a economia e as relações sociais, às mais pessoais e íntimas. Uma realidade particularmente abalada, às vezes desestabilizada, foi a Igreja, a comunidade dos fiéis cristãos, muito presente na Itália. Os fiéis cristãos mantêm em sua memória uma imagem que, não por acaso, marcou milhões de espectadores. Em 27 de março, no final do dia, quando já estava escurecendo, sob uma chuva insistente, o Papa Francisco atravessou sozinho uma Praça São Pedro deserta.
Foto: Vatican News
Lá ele fez uma breve oração, depois que um sino triste acompanhou seus passos rápidos, embora vacilantes. Algumas palavras, entre as quais todos lembram: “Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade!”, junto com a constatação: “Percebemos que estamos todos no mesmo barco”. As palavras do papa, dirigidas ao crucifixo geralmente colocado na igreja de San Marcello al Corso (considerado milagroso por "proteger" Roma da peste no século XVI), pareceram um grito desesperado; a extrema invocação de um Papa que quer ser intercessor de todos junto a Deus, que coloca diante dele o sofrimento, a dor e a morte de homens e mulheres atingidos pela pandemia. Gostaria de refletir sobre essas palavras como pessoa de fé, com um breve pensamento que pode intrigar até mesmo aqueles que não professam uma fé religiosa. Antes de tudo, deve-se constatar que nessa situação de crise verificou-se uma certa efervescência religiosa: na tempestade, muitos voltaram a invocar a Deus, depois de anos em que o haviam deixado de lado, sem arrependimentos, atitudes e estilos típicos de pessoas de fé. Pode-se confessar com toda paz: "O homem que está em honra, e não tem entendimento", de acordo com o refrão do Salmo 49, enquanto no infortúnio ele se dirige facilmente a Deus ou aos deuses, porque o medo cria os deuses, como os antigos afirmavam inteligentemente. Até mesmo o Deus dos cristãos para muitos ainda é o Deus que "vê, examina, inspeciona" os comportamentos humanos, para sancioná-los, sempre que necessário, com o castigo. Portanto, apareceram falsos profetas que arrogaram para si um ministério de condenação, prontos para ler no vírus um anjo exterminador enviado por Deus para castigar os pecados típicos de nosso tempo, em sua opinião: aborto, homossexualidade, divórcio, eutanásia, falta de uma fé militante. Pregadores evangélicos e padres católicos desencavaram profecias que explicavam assim a pandemia.
Foto: Il Sismografo
Essa é uma perversão da imagem de Deus: o Deus vingador e castigador não é o Deus de Jesus Cristo, mas deve ser rejeitado e excluído da vida da fé cristã. Na verdade, a única coisa que podemos afirmar é que, como em qualquer situação, mesmo na pandemia, Deus manifesta sua presença de forma oculta: ele é invisível, impossibilitado de intervir colocando um fim ao vírus, da mesma forma que não podia enviá-lo. Nosso Deus é onipotente apenas no amor, mas ele não pode nos causar mal. Cabe a nós, seres humanos, combater o vírus e a morte, assumindo com responsabilidade e cuidando dos outros, entre os quais especialmente os mais pobres e fragilizados. Não imputemos nossos males a Deus, nem nos perguntemos: "Onde está Deus?", porque o Deus de Jesus não nos abandona, mas está ao nosso lado com a força do seu Espírito, para nos ajudar a atravessar a doença e a morte. Então, por que o Papa ora? Por que oramos a Deus na pandemia? Porque Deus não olha tanto para as palavras que lhe dizemos, mas para o desejo que elas querem expressar. Nossa oração não muda a vontade de Deus, não é um ato mágico, não tem poder contra o que pertence à nossa condição humana marcada pela morte, o limite extremo do qual nunca poderemos nos libertar. Os cristãos não fazem de Deus o "tapa-buracos" - de acordo com a expressão de Bonhoeffer -, mas a sentem como uma presença invisível, porém eficaz, que lhes dá força, sentido, vida, capacidade de amar. Jesus nos disse: se pedirmos a Deus seu Espírito Santo, ele sempre o dará como força que opera em nós; mas sem nós Deus não pode fazer nada enquanto habitamos esta Terra.
Precisamente por esse motivo, todo grito que brota da Terra, gerado pela dor, pelo sofrimento inerente à natureza ou criado pelos seres humanos, todo grito, mesmo inarticulado, chega a Deus, que o ouve. O grito daquele que não tem fé e o do ser humano com fé se entrelaçam, e Deus ouve os dois. Até a blasfêmia, que parece ofender a Deus, às vezes é um protesto, um apelo a Deus, uma fome por ele, portanto uma oração. Quando Ana, mãe de Samuel, foi ao santuário rezar com amargura, não se entendia o que seus lábios murmuravam diante de Deus, tanto que o sacerdote Eli considerou que estivesse bêbada. Em vez disso, Deus atendeu ela e seu murmúrio, não a fórmula de culto do sacerdote (cf. 1 Sm 1,9-18)!
Sim, estamos todos no mesmo barco, no mar tempestuoso, pessoas com fé e sem fé. Se nos salvarmos, nos salvamos juntos, não sozinhos!
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Deus está ao nosso lado, mas cabe a nós lutar contra o vírus. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU