05 Mai 2020
"Dizem, talvez casualmente demais, que o coronavírus não nos deixará como antes. Tenho a esperança que acenda sonhos nas mulheres e nos homens de hoje, para que possam imaginar, mesmo com todas as cautelas, gestos de ternura no momento de expirar: abraços, beijos, sussurros de palavras, ternos apertos de mãos, olhos nos olhos, quase ícone de um abraço ainda mais terno, aquele de um Deus. Um Deus que chora".
A reflexão é do teólogo e padre diocesano em Milão, Itália, Angelo Casati, em artigo publicado por Oreundici, maio de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sei chorar? Eu me pergunto - mas em silêncio - se ainda sei chorar.
Agora que as histórias são de vida e morte, mais uma vez me é reproposta uma história de vida e morte no episódio de Lázaro. Hoje, mais do que ontem, permanece uma imagem nos meus olhos, a do meu Senhor que chora! E olhando-o atentamente, vendo-o chorar, chorar no soluço de uma amiga, eu me questiono sobre os meus olhos. A pergunta me preocupa: "Meus olhos não secaram por indiferença ou má religião?" E não me diga - não me diga, por favor - que ele estava chorando à toa, pois em seguida seria arrancado com um grito da escuridão do túmulo.
Não me deixe apagar essa aporia. Pode parecer estranho para alguns que o pensamento de uma futura derrota da morte, o pensamento da ressurreição, possa ser acompanhado hoje por um choro desenfreado: isso não deveria impedir você de chorar? Bem, diz-se de Jesus que, tremendo no espírito e comovido, começou a chorar. Vocês me entendem, porque hoje sinto a ferida, hoje estou com dor.
Então, deixe-me manter nos olhos destes dias toda a história do evangelho, sem deslizar rapidamente, casualmente, para os últimos compassos, para a voz que gostaríamos de ouvir também hoje:
"Saia!". Um grito - impressiona, está escrito: "ele gritou alto" - um grito que eu gostaria de ouvir hoje neste ar suspenso. E nós estamos contando os mortos, o número de mortos, um plural anônimo, enquanto por trás há um rosto e outro e ainda outro, rostos e não números. E rezamos para que o número dos rostos se feche de uma vez, por amor.
Confesso que nestes dias, quando até o ar está suspenso, gostaria de manter as palavras das amigas de Jesus no meu coração e nos meus lábios - amigas, pensem! ... e também Lázaro, um amigo, essa também é uma história de amizade - as palavras de Marta e Maria, perguntas que perturbam a Deus, Deus que é acusado de atraso, o atraso de Deus, o atraso de Jesus: “Por que você não estava aqui? Se você estivesse aqui, meu irmão não teria morrido". Uma censura que surpreendentemente encontramos igual, as mesmas palavras, nos lábios das duas irmãs, como se dissesse que essa é uma pergunta universal, aquela do atraso de Deus: “Por que você chegou atrasado? Por que, senhor, você não estava aqui?”. Não é justamente essa a pergunta, essas as palavras, misturadas às lágrimas, que temos nestes dias nos lábios, enquanto os nossos olhos lentamente percorrem imagens de corpos nus, sem nem mesmo a piedade de uma veste que lhe reconheça dignidade, que lhes reconheça uma dívida de gratidão. Um choro silencioso. E a pergunta, a pergunta de todos, crentes e não crentes, daqueles que talvez tenham noventa anos e de quem tem oito anos, uma miséria de anos, mas já cheia de dor, a pergunta de hoje, que é, em diferentes medidas, a mesma de ontem. Perdoem a memória pessoal.
Cinquenta anos se passaram e eu ainda me lembro, como se os visse hoje, os olhos de Monica, uma garotinha, se perguntando por Deus, no dia em que, consternada em sua pequena alma pela morte de Nadia, sua mãe, questionava o céu com o seu porquê. Foi um dia para mim de passagem, uma passagem decisiva, da passagem do Deus dos "milagres fáceis" para o Deus que "soluça contigo". Vendo Mônica, a filha mais nova de Nadia, chorando, pensei nesta oração: Talvez sonho ou você também chora escondido, ó Senhor, no frágil rosto de uma menina perturbada pelo infinito silêncio do céu?
Ou talvez já em segredo está lhe sussurrando "Sua mãe ressuscitará".
Se o soluço se cala, como um dia em Betânia, do lado de fora da casa, é porque você também está chorando, Senhor. Se Deus chora, se seu coração transborda mais do que o meu, então posso confiar em palavras que vão além. Mas a história das irmãs, ao lado do irmão, doces, até à sua morte, me abrem para um pensamento compartilhado por muitos nestes dias, o morrer na solidão, quase a marca de morrer pelo coronavírus. Também a esse respeito, voltou à minha memória um pensamento que me acompanha há anos.
Podemos - eu me pergunto - esperar que exista um anjo também para a morte? Ou os anjos estão apenas no jardim da ressurreição? Eles estão presentes apenas quando a luz desperta ou também quando a escuridão da agonia se espessa e se torna pesada? Sim, ouso pensar que exista um anjo, companheiro das trevas mais escuras.
Quem me leva a pensar isso é Lucas, o evangelista, que menciona um anjo na hora em que no Getsêmani, no jardim da agonia, de escuridão se vergaram também os galhos brilhantes das oliveira, e o coração do filho de Deus tremia. Lucas observa: "Agora um anjo do céu apareceu para confortá-lo."
Não está escrito. Mas deixe-me sonhar que exista um anjo da agonia. E que seja o sinal da compaixão de Deus na hora mais sombria, na hora extrema. Uma hora que aguarda, invoca, uma ternura, a ternura da qual Moisés se sentiu tocado, de acordo com uma história rabínica, quando, com o coração inchado, viu a morte se aproximando e ainda não era a terra prometida para ele. Por um lado, a história rabínica se detém no transtorno de Moisés diante da morte; pelo outro lado, demora-se na ternura com que Deus o recebe em sua morte. E escreve: “Moisés se deita em seu leito. ‘Feche os olhos’: lhe fala Deus. E Moisés fecha os olhos. ‘Cruze os braços sobre o peito’: Deus diz a ele. E Moisés cruza os braços sobre o peito. E Deus o beija na boca, em silêncio. E a alma de Moisés se refugia no sopro de Deus, que o leva para a eternidade”.
Mas, mais uma vez, depois de imaginar a presença do anjo lá onde morrer fosse na solidão, gostaria de deixar claro e dizer, se possível com força, que a presença do anjo da agonia não pode nos afastar nem remotamente de pensar e lutar para que a morte de ninguém seja na solidão. Como de fato não foi para Lázaro. O relato todo é uma música à casa e à ternura. Dizem, talvez casualmente demais, que o coronavírus não nos deixará como antes. Tenho a esperança que acenda sonhos nas mulheres e nos homens de hoje, para que possam imaginar, mesmo com todas as cautelas, gestos de ternura no momento de expirar: abraços, beijos, sussurros de palavras, ternos apertos de mãos, olhos nos olhos, quase ícone de um abraço ainda mais terno, aquele de um Deus. Um Deus que chora.
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Um Deus que chora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU