30 Novembro 2021
"As contradições demolem as certezas graníticas e estimulam o pensamento, e o pensamento livre e consciente é a base vital da mais autêntica espiritualidade", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por Corriere della Sera, 29-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que o cristianismo não é mais fascinante para a maioria dos jovens? Dois idosos jesuítas se perguntaram isso por um longo tempo, conversando entre si em Jerusalém até tarde da noite e examinando o problema em suas muitas questões. Por exemplo, o mais idoso disse a certa altura: “A Igreja nas últimas décadas perdeu muitos jovens, pergunto-me como podemos reconquistá-los”. O resultado está depositado no livro intitulado justamente Conversas Noturnas em Jerusalém, [Conversazioni notturne a Gerusalemme] que, quando foi publicado em 2008, causou muito interesse na Itália e no mundo, talvez justamente porque “à noite as ideias nascem mais facilmente do que na racionalidade do dia".
Conversazioni notturne a Gerusalemme.
Sul rischio della fede
A principal causa desse interesse foi a identidade do autor principal, daquele que respondia às perguntas que o outro lhe fazia em nome de muitos jovens austríacos e alemães. Além de ser um dos mais respeitados estudiosos de crítica textual do Novo Testamento, ele era um cardeal, havia sido arcebispo de Milão por 22 anos, por muito tempo considerado papável, e representava um ponto de referência da espiritualidade contemporânea para os fiéis de todas as religiões e também para muitos não crentes.
Questionando-se sobre a crescente crise do catolicismo, Carlo Maria Martini e Georg Sporschill olharam a situação de frente sem hesitar e por isso escolheram dar ao livro o seguinte subtítulo: Sobre o risco da fé. Normalmente tal expressão é entendida no sentido do risco que a fé provoca em quem a abraça, como aconteceu, por exemplo, com Abraão chamado a deixar a sua terra; nessas páginas, porém, emerge sobretudo outro sentido desse genitivo, ou seja, o risco que a própria fé está correndo devido ao declínio progressivo que hoje no Ocidente pós-moderno parece torná-la irrelevante. O risco da fé no Deus cristão é de enfraquecer-se cada vez mais, até desaparecer.
Martini estava muito ciente disso, tanto que, quando questionado sobre o que teria perguntado a Jesus se tivesse a possibilidade, respondeu que primeiro, como bispo, teria lhe perguntado o porquê da distância entre a Igreja e os jovens devido à indiferença destes últimos, e depois sobre a crise quantitativa e qualitativa do clero; mas agora que havia deixado a direção da diocese devido aos limites de idade, especificava: “Prefiro pedir e rezar para que me acolha e não me deixe sozinho”.
Não sem descuidar dos motivos de esperança, o livro enumera e discute os motivos da crise, pelo que resulta quase uma pequena summa das inquietações e das perspectivas da espiritualidade católica. (...) O principal ponto crítico é, sem dúvida, a Igreja e seu aparato que, segundo Martini, tende cada vez mais a se comportar como costuma acontecer com aqueles doentes que reduzem o mundo inteiro à própria saúde e acabam não vendo nada além de si próprios: da mesma forma, a Igreja tende a dar demasiada importância a si mesma e corre o risco de se colocar como absoluta, esquecendo de que, pelo contrário, é apenas um trâmite. Martini não esconde sua criticidade: “Antigamente eu tinha sonhos sobre a Igreja... Hoje não tenho mais esses sonhos”, afirmação reiterada em sua última entrevista concedida em 8 de agosto de 2012 ao padre Georg Sporschill junto com Federica Radice Fossati Confalonieri, e publicada pelo “Corriere” em 1 de setembro após a sua morte: “A Igreja está 200 anos atrasada. Por que não se sacode? Estamos com medo? Medo em vez de coragem?”.
Para compreender a fundo o método que Martini aplicava à leitura da realidade e das pessoas, convém recordar o que ele disse certo dia sobre o seu lema episcopal numa conferência realizada no Pontifício Instituto Bíblico de Roma em 23 de maio de 2002: “O meu o lema é: Pro veritate adversa diligere, ou seja, alegrar-se com as contradições”. Martini traduzia assim o sentido da frase que escolhera vinte e dois anos antes, no momento da sua repentina nomeação como bispo de Milão feita por João Paulo II, e que Martini fizera tudo para evitar. A frase é extraída de uma obra de Gregório Magno intitulada A Regra Pastoral e normalmente é traduzida como "amar as adversidades para defender a verdade", no sentido de que a defesa da verdade chega a exigir a assunção de atribuições desagradáveis para o sujeito, como havia sido o caso de Gregório, que não queria ser Papa, e como foi o caso de Martini, que não queria ser bispo e abandonar os seus amados estudos.
Martini, porém, aos poucos foi atribuindo outro sentido à frase, como afirmou naquele dia em Roma: aquele de ser feliz com as contradições. Mas em que sentido se pode ficar feliz com as contradições? Pode ser porque as contradições demolem as certezas graníticas e estimulam o pensamento, e o pensamento livre e consciente é a base vital da mais autêntica espiritualidade.
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Liberdade, alimento do espírito. O pensamento de Carlo Maria Martini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU