"O cardeal Carlo Maria Martini, falecido no dia 31 de agosto de 2012, era próximo de todos, mesmo dos ditos 'distantes', e continua sendo: é um testemunho quase unânime entre aqueles que o conheceram pessoalmente ou por meio dos seus escritos".
A opinião é de Rocco D’Ambrosio, filósofo italiano e professor de Filosofia Política da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. O artigo foi publicado por Formiche, 31-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há nove anos, falecia Carlo Maria Martini. Recordá-lo, neste tempo eclesial e civil, é uma tentativa de receber luzes de uma personalidade que ainda tem muito a ensinar sobre a pessoa humana, sobre a Igreja, sobre o mundo.
Martini era próximo de todos, mesmo dos ditos “distantes”, e continua sendo: é um testemunho quase unânime entre aqueles que o conheceram pessoalmente ou por meio dos seus escritos.
Cardeal Martini visita o centro de detenção de San Vittore (Foto: Acervo da Diocese de Milão)
“Ele era próximo de todos.” O seu falecimento precede em sete meses a eleição do Papa Francisco, muito próximo de muitos, intencionalmente de todos. Porém, permanece a amarga referência aos pastores que não o são ou a toda a comunidade católica italiana, que muitas vezes é pouco próxima de todos. Não é possível quantificar, isto é, conhecer quantos pastores e leigos católicos italianos são próximos das mulheres e dos homens deste tempo e quantos não o são. Por outro lado, é importante interrogarmo-nos em termos de aprofundamento e diálogo: a proximidade ou a distância, motivações e práxis.
Por que muitas vezes não somos próximos? Martini e todos os profetas de todos os tempos o foram: conseguiram (e conseguem) assumir “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, porque são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (Gaudium et spes, n. 1).
Digamos simplesmente: qual foi, qual é ainda hoje, o segredo dessa maravilhosa e tão apreciada proximidade?
Estou plenamente convencido de que tudo começa com a liberdade pessoal. Os autênticos cristãos e profetas são mulheres e homens profundamente livres. Pessoas distantes de todas as formas de escravidão. E, na vida pessoal, assim como na Igreja e no mundo, todas dependências e subserviências ao poder e/ou ao dinheiro são escravidão.
Francisco escreve na encíclica Fratelli tutti: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’” (n. 12).
A proximidade se encarna quando nos libertamos, cada vez mais, dessas dependências de vários tipos, verdadeiras escravidões. Afinal, nenhum profeta foi escravo do poder, do dinheiro ou de qualquer outra coisa; se tivesse sido, nunca poderia ter vivido como profeta.
Mas também é importante refletir sobre o fato de que a liberdade de que estamos falando deriva de um ato de entrega, de obediência. A Cristo e somente a Ele.
“Cristo nos libertou – adverte o Apóstolo – para que sejamos verdadeiramente livres. Portanto, sejam firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5, 1). Não é um fato fácil de explicar: sou livre na medida em que me torno escravo de Cristo. O Poeta diria que não pode entender quem não tenta. Mas não quero citar Dante para encerrar a discussão, remetendo tudo à experiência que cada um de nós tem da relação entre obediência-entrega a Cristo e liberdade que daí decorre.
Só quero dizer que a vida cotidiana nos dá mil confirmações da autenticidade dessa escolha e nos coloca em um nível em que a proximidade aos familiares, amigos, colegas de trabalho e pessoas que encontramos por acaso não é uma busca artificial, mas é fruto da liberdade interior.
Quando se é livre, não se tem um ego para promover, ou uma marca empresarial para anunciar, ou um projeto para impor, ou sentimentos para extorquir. Só se tem o desejo de permanecer livre e de libertar, a cada dia, o coração e a mente para expressar proximidade.
E a proximidade tem os rostos da ternura, da escuta, do diálogo, do tempo dedicado, da ajuda econômica. A proximidade tem os rostos dos profetas que estudamos e encontramos. E por eles – hoje por Carlo Maria Martini – sempre rendemos graças a Deus.
A procissão pelas ruas de Milão no encontro do Encontro "Homens e religiões" de 1993 (Foto: Acervo da Diocese de Milão)
Também aprendemos com eles que, quando se evangeliza, tanto na educação quanto na pregação, é preciso tomar uma posição, mas isso não autoriza os fiéis a assumirem atitudes arrogantes e ofensivas com quem professa ideias diferentes.
Responder a quem quer que peça razões da esperança cristã deve ser feito com doçura e respeito (1Pd 3,15). O mundo – como às vezes é descrito por alguns pastores e catequistas: mau, ateu, descrente, imoral, diabólico – não existe.
Em vez disso, existem pessoas, com toda a sua carga positiva e negativa, de graça e de pecado. Existimos nós, existo eu: entre e com as pessoas deste mundo.
Só uma análise superficial e enviesada poderia levar a pensar que o mundo pode ser dividido entre bom, todos de um lado, e maus, todos do outro. A fratura é muito mais complexa e variada do que uma divisão pura e simples entre bons e maus, em cercados rígidos e intransponíveis entre eles; sem esquecer que, para nós, cristãos, a divisão entre bem e mal passa, acima de tudo, em cada um de nós, como ensinam as Escrituras. E para redimir este meu-nosso mundo devemos ser próximos.
Uma última observação. “Os filhos deste mundo – diz Jesus – são mais astutos com a sua gente do que os filhos da luz” (Lc 16,8). E em outro lugar ele acrescenta: “Portanto, sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10).
É inútil se delongar sobre pessoas e contextos que nos remetem à importância de sermos astutos, prudentes. Não existe autêntica proximidade que não seja acompanhada por um profundo exercício intelectual, isto é, por estudo e pesquisa constantes. Esse exercício habilita os profetas a serem astutos e prudentes.
A proximidade torna-se astuta e prudente quando fazemos frutificar o dom do intelecto recebido. Ela é muito semelhante à “humildade cautelosa” do Pe. Cristóvão quando confronta Dom Rodrigo, para o convencer a deixar Lúcia em paz. A ceia, por parte do religioso, é muito diferente das atitudes que alguns pastores e leigos católicos têm quando encontram os atuais Dom Rodrigo (corruptos e corruptores, maçons desviados, mafiosos e assim por diante).
Cardeal Martini (Foto: Jesuítas Itália)
Infelizmente, às vezes, a humildade cautelosa é substituída por uma soberba subserviente, muitas vezes e até por dinheiro e/ou poder. Nesse contexto, é preciso lembrar que a Escritura convida à proximidade com todas as criaturas, mas também a uma completa e firme distância de todas as formas de mal. “Afasta-te do mal e faz o bem, e sempre terás uma casa” (Salmo 37).
E, por fim, de novo as palavras do profeta Carlo Maria Martini: “Do sonho de uma Igreja assim e da sua capacidade de servir a sociedade com todos os seus problemas nasce o convite a sonharmos ainda. Deixem-nos sonhar! Deixem-nos olhar para além das fadigas de cada dia! Deixem-nos nos inspirar em grandes ideais! Deixem-nos contemplar com desenvoltura as figuras que, como Ambrósio, marcaram uma passagem de época não com empreendimentos militares ou com reformas impostas de cima, mas sim valorizando a vida cotidiana do povo, ensinando que a força e o reino de Deus já estão no meio de nós e que basta abrir os olhos e o coração para ver a salvação de Deus em ação. A força de Deus está no meio de nós na capacidade de acolher a existência como dom, de experimentar a verdade das bem-aventuranças evangélicas, de ler nas próprias adversidades um desígnio de amor, de sentir que o discurso da cruz subverte as opiniões atuais, vence os medos ancestrais e permite ter acesso a uma nova compreensão da vida e da morte” (Santo Ambrósio, 1996).
Esse sonho agora está nas mãos do Papa Francisco. Mas também nas mãos de quem quer seguir a Cristo. Sem excluir ninguém.