"Quem fala tirando de si o que diz, sem se preocupar em resultar conforme com a estrutura social a que pertence, seja ela qual for (partido, movimento, empresa, igreja, grupo de amigos ...), testemunha a vivência que vem do contato direto com a vida e assim o seu pensamento adquire uma 'fonte' própria: é a voz da sua emoção vital", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por Domani, 21-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Imaginem olhar para o nosso planeta do alto e contemplar tudo o que aí se passa. Preparem-se para realizar o experimento mental denominado "voo filosófico", um exercício muito praticado pelos antigos como Lucrécio e Cícero, retomado na Idade Média por Dante, na Renascença por Giordano Bruno, e cuja representação mais popular é Volare, a canção italiana provavelmente mais famosa do mundo.
Vamos começar com Lucrécio. No início do terceiro livro de seu poema sobre a natureza, na parte que contém o louvor incondicional de Epicuro, ele se dirige para o antigo filósofo grego e escreve que graças ao seu pensamento ele agora passa a ver a autêntica natureza das coisas, a rerum natura, uma visão verdadeira graças à qual "dissipam-se os terrores do ânimo, abrem-se as muralhas do mundo, vejo as coisas desdobrarem-se através de todo o vazio", assim que, logo depois, apoiando-se na força do pensamento, a sua mente toma voo: “A terra não me impede de discernir tudo o que se passa sob meus pés, lá embaixo, através do vazio”; e seu coração começa a palpitar com um sentimento novo: "Por causa dessas coisas sou tomado por um prazer divino e um frêmito" (Tito Lucrécio Caro, De rerum natura, livro III, versos 16-17 e 26-29).
Agora vamos para Cícero. No final de sua obra sobre o estado, o De re publica (Sobre a coisa pública), há a passagem conhecida como Somnium Scipionis (O sonho de Cipião) em que ele imagina que Cipião, o Emiliano, é levado ao céu durante seu sono e colocado em um ponto do espaço infinito onde primeiro ele encontra seu ancestral, Cipião, o Africano (o vencedor do invasor Hannibal, com cujo capacete, no Renascimento, a Itália "cingiu a cabeça"), e depois ele vislumbra nosso planeta, provando com doloroso assombro a sua pequenez e a dimensão ainda mais minúscula, quase deprimente, dos domínios de Roma.
Eis as palavras que Cícero faz Cipião pronunciar: "Daqui contemplei o universo, e também os outros corpos celestes me apareceram com uma luminosidade maravilhosa. Havia estrelas que nós da Terra nunca vimos e a dimensão de todas elas era tal que nem sequer podíamos imaginar (...) a Terra parecia-me tão pequena que senti pena do nosso império, com o qual chegamos a tocar, pode-se dizer, um ponto dela" (Cícero, De re publica, VI, 16).
Dante segue a mesma linha. Chegado à constelação de Gêmeos, ele contempla o sistema planetário composto pelos sete planetas então conhecidos e as sete esferas correspondentes formadas por suas órbitas ao redor da Terra e, ao ver a pequenez do globo terrestre e seu "semblante vil", sorri amargamente, considerando que a melhor filosofia é aquela que atribui a menor importância ao nosso planeta, e que é verdadeiramente sábio quem dirige a sua atenção não para a Terra, mas para o céu. Eis as suas palavras:
“Então, volvendo os olhos anelante / Às sete esferas, nosso globo vejo / Tal, que sorri-me do seu vil semblante. / Quem lhe dá pouco apreço em todo ensejo / Aplaudo, e grande sábio, em meu conceito, / É quem põe noutra parte o seu desejo”. No mesmo canto, Dante apresenta à curta distância a famosa descrição da Terra como um pequeno canteiro cheio de ferocidade: “Como o curso dos Gêmeos eu seguia / De montes, mares via todo envolto / O canto estreito, em que homem se gloria”. (Dante, Paraíso, canto XXII, versos 133-138 e versos 151-153).
Giordano Bruno, por outro lado, manifesta um sentimento diferente da natureza, muito mais positivo, alegre, às vezes entusiasta, e talvez por isso, depois de ter viajado em primeira pessoa entre os espaços infinitos, também pretende fazer os leitores viajarem com ele. Ele havia abraçado a teoria copernicana que derrubara o ingênuo geocentrismo bíblico e ptolomaico, mas depois a radicalizou ainda mais, superando até o heliocentrismo e anunciando "o infinito universo e mundos inumeráveis" (Opere italiane, Il, p. 10), para chegar, em uma de suas últimas obras, a convidar o leitor a subir ao céu e obter uma "verdadeira contemplação do mundo".
Eis as suas palavras dirigidas a cada um de nós: “Venha, pois, suba, vou levá-lo à Lua: despregue seus sentidos como eu desprego as asas da razão; vamos, prossiga tranquilo, siga um guia seguro (...) a imagem do verdadeiro e a famosa ordem da natureza são para você, incerto, guia e lhe conduzirão de volta com segurança" (Giordano Bruno, De immenso, 1591).
O texto de Volare dá continuidade a essa linha otimista ao expressar o mesmo sentimento positivo, pois também aqui o voo sonhador ao espaço infinito, longe de despertar temor ou espanto, é fonte de felicidade, aliás de uma doçura especial:
“Creio que um sonho como este nunca mais vai voltar / Pintava as minhas mãos e rosto de azul / Depois, de repente, eu era arrebatado pelo vento / E começava a voar no céu infinito / Voar oh, oh / Cantar oh, oh / No azul pintado de azul / Feliz por estar lá em cima / E eu voava, voava feliz mais alto que o sol / E ainda mais alto / Enquanto o mundo lentamente desaparecia ao longe lá embaixo / Uma doce música tocava somente para mim / Voar oh, oh / Cantar oh, oh / No azul pintado de azul / Feliz por estar lá em cima”.
Imaginem se agora são vocês que estão lá em cima, mais ou menos onde Lucrécio chegou, ou se preferem, onde Cícero colocou Cipião, ou onde Giordano Bruno gostaria de vos levar, ou para onde Modugno voou e ainda faz muitos de nós voarem. Mas vocês não chegaram lá, como acontecia com a fantasia dos antigos e como realmente acontece em nossos dias com os astronautas; não, vocês sempre estiveram lá em cima, lá em cima é a vossa casa. Vocês não são terrestres, vocês são celestiais, estelares, hiperuranos.
E imaginando-vos nessa condição agora se perguntem se, podendo escolher, participariam ou não da longa viagem chamada vida ou também existência, que agora vocês estão fazendo aqui na Terra. Imaginem também poder escolher o período: a idade da pedra, a idade do ferro, primeiro século, vigésimo primeiro século, antes de Cristo, depois de Cristo, antes da Hégira, depois da Hégira, antes da fundação de Roma, ab Urbe condita, enfim, na época que vocês preferirem, calculada da maneira que vocês preferirem, uma vale como outra quanto às possibilidades de experimentar o sabor da vida.
Escolham também o lugar, se o mesmo que agora vos hospeda ou outro diferente, mas por favor se perguntem se, podendo escolher, decidiriam participar ou não da condição humana. De lá de cima vocês podem ver o espetáculo da vida e dos viventes que se desenrola aqui na Terra. Vocês estão na presença desta paixão infinita, da qual ninguém pode afirmar com segurança qual seja o sentido e se existe algum, se é sensata ou insensata, verdadeira ou enganadora. Certamente sabemos que é belíssima, mas também extremamente dolorosa, isto é, que o desdobramento de uma positividade que surge instante após instante de um processo assustador e incontrolável definido por Hegel na Fenomenologia do espírito "imenso trabalho do negativo".
E agora vocês têm a possibilidade de experimentar em vocês mesmos essa paixão ou ficar tranquilos lá em cima. E vocês, que fazem? Desde a antiguidade, sabemos que o nosso planeta e a estrela chamada Sol que torna a vida possível nele fazem parte de um sistema de estrelas muito maior que, devido à sua brancura no céu noturno, foi denominado pelos antigos com uma comparação ao leite, já que galáxia, como se sabe, vem de gala, em grego "leite", de onde "Via Láctea" (e devo dizer que considero belíssima essa origem tão terrestre dos nomes dos sistemas celestiais).
Há alguns séculos, sabemos que é o nosso planeta que gira em torno do Sol e não vice-versa, como afirma a Bíblia e o sistema ptolomaico; Copérnico o estabeleceu com o De revolutionibus orbium coelestium (literalmente Sobre as revoluções dos mundos celestiais, geralmente traduzido como As revoluções das esferas celestes), obra que o autor prudentemente publicou em 1543 em Nuremberg, à beira da morte e em terras protestantes para evitar problemas com a Inquisição Católica, e que se tornou de conhecimento comum apenas dois séculos mais tarde e não sem algumas vítimas, incluindo a fogueira de Giordano Bruno (Roma, Campo de Fiori, 17 de fevereiro de 1600) e a abjuração de Galileu (Roma, Santa Maria sopra Minerva, 22 de junho de 1633), eventos trágicos que deram início à decadência cultural e civil da Itália, em que ela, ainda, se debate.
Há poucas décadas sabemos que a nossa galáxia é apenas uma entre muitas outras, cujo número total é estimado não em centenas, não em milhares e nem mesmo em milhões, mas em bilhões de unidades: os astrofísicos dizem que existem aproximadamente cem bilhões de galáxias, cada uma das quais hospeda vários bilhões de estrelas dentro dela. Trata-se de dimensões que para a nossa mente resultam completamente impensáveis, diante das quais a desorientação de Cipião contada por Cícero só pode evaporar, a fé de Dante em um cosmos racional movido pelo amor sofre fortes golpes, e talvez até comece a vacilar a alegria despreocupada cantada por Modugno.
Mas vamos voltar ao ponto: vocês são cidadãos lá de cima, de um lugar tranquilo naquela vastidão de galáxias, e alguém propõe a vocês descerem aqui, neste minúsculo planeta comparado a um pequeno pedaço de terra que nos torna maus e violentos ("O canto estreito, em que homem se gloria", no original “l'aiuola che ci fa tanto feroci”): o que vocês fazem, aceitam? Vocês se inscrevem para a viagem que uma hipotética agência de turismo intergaláctica denominaria de "Planeta Terra & Condição Humana"? Uma viagem que dura a vida toda? E na qual comida e hospedagem, exceto para uns poucos privilegiados, não estão incluídos, mas vocês mesmos devem consegui-los em campo? Ou prefeririam ficar lá em cima, tranquilos, a salvo do sangue da história, sem preocupações com comida e hospedagem, com seleção natural e com seleção econômica, com várias doenças e uma morte certa?
Além disso, se vocês realmente quiserem viajar, existem destinos mais seguros e relaxantes do que na Terra. Por exemplo, poder-se-ia escolher pousar diretamente no Paraíso católico, cujo estado de vida é caracterizado por uma condição chamada visio Dei beatifica ("visão beatífica de Deus") e assim passar todo o tempo na contemplação do Eterno, louvando-o e cantando suas glórias, ao longo dos séculos, e encontrar-se beato ao lado de outros beatos, na esplêndida companhia de ótimas pessoas, embora todas fixas em seus lugares e a uma distância segura umas das outras em um cenografia que promete ser ameaçadoramente semelhante a uma infinita missa cantada.
Alguns outros, por outro lado, poderiam preferir o paraíso islâmico, onde a perspectiva promete ser mais agradavelmente animada, pelo menos para os seres humanos do sexo masculino, cada um dos quais terá à disposição lindas garotas sempre prontas para satisfazer seus desejos (naturalmente uma leitora neste momento poderia se perguntar o que ela faria no paraíso islâmico, e certamente os doutores muçulmanos estão prontos a oferecer as melhores e mais reconfortantes explicações).
Outras religiões falam de cenários paradisíacos ainda diferentes, mas eu acredito que o mais sábio tenha sido o Buda, que entendeu que à mente humana não é dado conceber a chamada vida após a morte e, portanto, não falava dela exceto pela negação mediante o conceito de nirvana, literalmente "apagado" (e, portanto, "extinção do sopro vital"). Ele colocava em ato o que Wittgenstein teria afirmado de forma icástica séculos depois: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, 7, 1921).
Mas estou divagando e volto à pergunta questionando a vocês pela última vez se, podendo olhar a Terra de cima e vendo tudo o que acontece, vocês decidiriam encarnar assumindo a condição humana ou não. "O pensamento, quando é autêntico, é pensamento de vida", aprendi com um grande teólogo do século XX, o suíço Karl Barth, que acrescentava que só neste caso, isto é, somente na medida em que provém da vida, o pensamento pode ser proposto como "pensamento de Deus" como teologia (Karl Barth, a Carta aos Romanos). Pensar na vida e pensar em Deus são, portanto, a mesma coisa, e se eu há muito tempo tomei distâncias do cristianismo oficial foi porque o considerei incapaz de apreender com autenticidade a realidade da vida.
Mas o que quer dizer pensar sobre a vida? Significa sofrer a pressão da existência e se deixar imprimir. E em um segundo momento significa expressar por meio das palavras (ou por meio da música, pintura, câmera ou outro) o resultado de sua pressão sobre nós e dentro de nós. Porém, se diante da existência não há uma disposição inocente, desprovida de pré-entendimentos ideológicos e pressupostos dogmáticos; se não nos abandonarmos quase ao limite da ingenuidade à revelação da vida sem nada a defender; se não nos deixamos imprimir totalmente pela vida da mesma forma que uma folha em branco quando é impressa, ou poder-se-ia dizer prensada, visto que a prensa foi a ferramenta original das gráficas; se não houver antes esse momento incontaminado de paixão no sentido primeiro de recepção passiva, então é inevitável que todas as expressões subsequentes resultem necessariamente dadas como óbvias, para não dizer artificiosas e, em última análise, falsas.
Não serão relatos de experiências, mas declarações ideológicas; não testemunhos, mas confissões doutrinárias; não vozes de quem profere as próprias palavras, mas expressão de quem fala em nome de outros tornando-se porta-voz, portadores da voz do mestre (para retomar o título do inesquecível álbum de Franco Battiato).
Se, por outro lado, nos expusermos integralmente à pressão da existência, as expressões subsequentes do pensamento virão de experiências em primeira pessoa e, portanto, serão autênticas. Também poderão ser imperfeitas, até mesmo objetivamente erradas, mas serão sempre verdadeiras, genuínas, inspiradas, portanto, a serviço da vida e geradoras de saúde psíquica. Quem fala tirando de si o que diz, sem se preocupar em resultar conforme com a estrutura social a que pertence, seja ela qual for (partido, movimento, empresa, igreja, grupo de amigos ...), testemunha a vivência que vem do contato direto com a vida e assim o seu pensamento adquire uma "fonte" própria: é a voz da sua emoção vital.
E a minha emoção vital me leva a dizer que se eu estivesse lá em cima e alguém me perguntasse se algum dia eu gostaria de descer aqui para assumir a condição humana, eu, sem muita hesitação, responderia que sim.
Este texto de Vito Mancuso será lido em Letterature Festival Internacional de Roma, quinta-feira, dia 22 de julho, às 21h.