A singularidade do Papa Leão XIV começa a aparecer. Artigo de Michael Sean Winters

Foto: Vatican Media

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03 Dezembro 2025

Depois da morte de Francisco, mas antes do início do conclave, observei que a situação enfrentada pelos cardeais era semelhante àquela de 1963, após a morte do papa João XXIII

O artigo é de Michael Sean Winters, publicado por NCR, 03-12-2025. 

Michael Sean Winters é o autor de Left At the Altar: How Democrats Lost The Catholics And How Catholics Can Save The Democrats (Basic Books, 2008).

Eis o artigo.

A primeira viagem internacional do Papa Leão XIV evidenciou profundos ecos de seu predecessor, o Papa Francisco. Ainda assim, também começamos a ver pontos de diferença. Como disse o cardeal de Chicago Blase Cupich na coletiva de imprensa realizada pelos cardeais-eleitores dos Estados Unidos no dia seguinte à eleição de Leão: é importante lembrar que, quando temos a nomeação de um bispo na Igreja, não falamos de um substituto, mas de um sucessor. É isso que nós, cardeais-eleitores, também procurávamos. Leão não é Francisco 2.0. Leão é Leão.

Assim como Francisco, Leão foi a um país, a Turquia, com pouquíssimos católicos. Francisco, lembremos, foi à Mongólia, que tem apenas alguns milhares de católicos. Na Turquia não há muito mais do que isso e é maravilhoso ver o bispo de Roma confirmar na fé comunidades tão pequenas. Leão encontrou-se tanto com idosos quanto com jovens, como faziam seus predecessores nesses deslocamentos. E encontrou-se com autoridades civis.

Como Francisco, Leão defendeu a causa da unidade cristã, olhando para o grande jubileu de 2033, quando todos os cristãos celebrarão os 2.000 anos da paixão, morte e ressurreição do Senhor. Como todos os seus recentes predecessores, Leão enfatizou a proximidade especial da Igreja de Roma com as Igrejas orientais. A cena no local do Concílio de Niceia, onde o papa se reuniu com quase todos os patriarcas das Igrejas orientais, foi mais um passo em direção à restauração da plena comunhão. Seu evidente e natural entrosamento com o patriarca Bartolomeu evocou memórias do encontro do Papa Paulo VI com o patriarca Atenágoras em Jerusalém, em 1964.

Diferentemente de Francisco, Leão recusou-se a rezar durante a visita à famosa Mesquita Azul, em Istambul. Tive receio de que tradicionalistas críticos de Francisco explorassem esse gesto, como fizeram com o uso da mozeta escarlate por Leão ao aparecer na loggia de São Pedro após sua eleição, tomando aquilo como sinal de simpatias tradicionalistas ocultas. Mas depois lembraram que o Papa Bento XVI também rezou quando visitou a mesquita, e essa polêmica não prosperou.

Uma coisa dita por Leão, porém, soou diferente daquilo que Francisco provavelmente diria. No encontro de oração com bispos, clérigos, religiosos e agentes pastorais locais, Leão afirmou:

Niceia afirma a divindade de Jesus e sua igualdade com o Pai. Em Jesus encontramos o verdadeiro rosto de Deus e sua palavra definitiva sobre a humanidade e a história. Mas existe também outro desafio, que poderíamos chamar de novo arianismo, presente na cultura atual e às vezes até entre os crentes. Isso ocorre quando Jesus é admirado apenas em nível humano, talvez até com respeito religioso, mas não é verdadeiramente reconhecido como o Deus vivo e verdadeiro entre nós. Sua divindade, seu senhorio sobre a história, ficam obscurecidos, e ele é reduzido a uma grande figura histórica, um mestre sábio ou um profeta que lutou pela justiça – mas nada além disso. Niceia nos lembra que Jesus Cristo não é uma figura do passado; ele é o Filho de Deus presente entre nós, guiando a história rumo ao futuro prometido por Deus.

É fácil imaginar Francisco dizendo algo semelhante, mas o alerta sobre um novo arianismo, uma nova heresia, não soa como Francisco, embora certamente ele concordasse com o problema identificado por Leão. Francisco parecia mais preocupado em pôr as pessoas em movimento. Leão também se preocupa com isso, mas chama nossa atenção para a necessidade de limites e salvaguardas.

Vimos algo semelhante no discurso de Leão aos canonistas que foram a Roma no mês passado para um curso intitulado Dez anos após a reforma do processo canônico matrimonial. Dimensões eclesiológicas, jurídicas e pastorais.

Leão elogiou as reformas no processo de nulidade matrimonial introduzidas por Francisco. Mas também advertiu que o julgamento humano sobre a nulidade do matrimônio não pode ser manipulado por uma falsa misericórdia. Não sei se Francisco alguma vez alertou sobre falsa misericórdia. E, enquanto Francisco era sempre rápido em advertir contra um excesso de legalismo, Leão, canonista, citou o título do curso para sublinhar que o aspecto jurídico do processo de nulidade é indissociável de suas dimensões pastoral e eclesiológica. Essa relação entre o eclesiológico, o jurídico e o pastoral é frequentemente esquecida, uma vez que tende a se conceber teologia, direito e cuidado pastoral como compartimentos separados, disse Leão. É bastante comum que sejam implicitamente colocados em oposição, como se uma abordagem mais teológica ou pastoral fosse menos jurídica, e, inversamente, como se uma abordagem mais jurídica fosse em detrimento das outras duas. Assim se obscurece a harmonia que emerge quando essas três dimensões são consideradas partes de uma mesma realidade. Mais uma vez, a delimitação segura das fronteiras é sublinhada.

Para ser claro: Leão continua o caminho traçado por Francisco e também pelo Concílio Vaticano II, de 1962-65. Havia mais harmonia entre Francisco e os outros papas pós-conciliares do que seus críticos admitiam ou seus admiradores reconheciam. Mas Leão é uma pessoa diferente. Ele nunca teve a experiência de exílio que Francisco teve. Leão, ao contrário de Francisco, foi formado como canonista. E, talvez mais importante, Leão é agostiniano, não jesuíta. Depois de 11 anos de insights inacianos – que foram uma grande bênção –, Leão agora traz insights agostinianos para quase todos os seus discursos. A fé católica enriquece-se ao ser lembrada do que esses dois grandes santos têm a ensinar.

Depois da morte de Francisco, mas antes do início do conclave, observei que a situação enfrentada pelos cardeais era semelhante àquela de 1963, após a morte do Papa João XXIII. Naquele momento, a questão central era saber se o concílio deveria continuar, da mesma forma que, em 2025, a questão central era se o caminho sinodal deveria ser levado adiante. Em 1963, eles escolheram o cardeal Giovanni Battista Montini como Papa Paulo VI, alguém com capacidades administrativas mais evidentes, que pousou o avião conciliar que João XXIII havia colocado no ar. O que vemos agora é que Leão é para Francisco o que Paulo foi para João: comprometido com o mesmo programa, mas mais cauteloso, melhor gestor e de personalidade mais branda. Um sucessor, não um substituto.

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