25 Abril 2025
Discurso do antigo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e Vice-Presidente da Comissão Europeia
O discurso é de Josep Borrell, publicado por La Repubblica, 25-04-2025.
Em 18 de março, Benjamin Netanyahu quebrou a trégua que havia sido estabelecida em Gaza alguns dias antes da posse de Donald Trump. Em poucas horas, os bombardeios causaram mais de 400 mortes. Dessa forma, ele garantiu sua sobrevivência política: continuar a guerra foi a condição imposta por seu parceiro de extrema direita, Bezalel Smotrich, para não derrubar a coalizão governante.
Desde então, milhares de outros civis palestinos, a maioria mulheres e crianças, foram mortos e as vidas dos reféns sobreviventes estão em perigo. O bloqueio total e a fome generalizada agravaram catastroficamente uma situação já dramática, num contexto em que a maior parte dos edifícios e infraestruturas estão destruídos. A última usina de dessalinização de água não está mais funcionando. Todos concordam com esse diagnóstico terrível. As Nações Unidas alertaram que a situação em Gaza atingiu seu pior nível desde o início da guerra.
A ONG Médicos Sem Fronteiras descreveu Gaza como um cemitério para milhares de moradores da Faixa, mas "também para aqueles que tentam ajudá-los". Doze das maiores ONGs internacionais de ajuda humanitária acabaram de lançar um apelo desesperado. Parece que ninguém os ouve. O ministro da Defesa israelense, Israel Katz, reiterou mais uma vez nos últimos dias que "nenhuma ajuda humanitária entrará em Gaza". Bezalel Smotrich, ecoando-o, confirmou que a pressão máxima está sendo exercida para "evacuar a população para o sul e implementar o plano de migração voluntária do presidente Trump para os habitantes de Gaza". Um projeto que Israel Katz, quando era Ministro das Relações Exteriores, já nos havia apresentado no Conselho da UE no início de 2024. O exército israelense conquistou metade do território e colocou dois terços de Gaza sob ordem de evacuação, transformando-os em "zonas proibidas", incluindo a cidade fronteiriça de Rafah.
O objetivo é claramente criar as condições para a maior operação de limpeza étnica desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Afirmar que “nem mesmo um grão de trigo entrará em Gaza” é uma violação flagrante do direito internacional humanitário. É impossível não ver nisso a intenção de extermínio que o Tribunal Penal Internacional já havia levado em conta quando emitiu mandados de prisão contra Benjamin Netanyahu e seu ex-ministro da Defesa. Não é menos grave do que o encontrado no passado pela justiça internacional em Srebrenica e Ruanda.
Ao mesmo tempo, na Cisjordânia, o exército está travando sua maior ofensiva em décadas. Mais de 40.000 palestinos já foram deslocados à força do norte do território, aparentemente abrindo caminho para planos que legisladores de extrema direita estão promovendo para expandir assentamentos que são ilegais segundo o direito internacional. Em 23 de março, porém, o governo legitimou 13 dessas colônias. A extrema direita fundamentalista espera que Trump apoie seus planos de anexar parte ou toda a Cisjordânia, o que acabaria com qualquer possibilidade, se é que alguma vez existiu, de criar um estado palestino.
Em quase toda a Europa estamos atualmente de férias e nossa atenção está voltada principalmente para as taxas alfandegárias com as quais Trump está nos ameaçando. Quase nunca mais se falou em Gaza. Mas a foto de um menino de Gaza com os dois braços amputados, que ganhou um prêmio internacional, e a morte da fotógrafa Fatma Hassouna protagonista de um filme selecionado para o próximo Festival de Cannes, reacenderam a emoção. Sim, é por isso que não nos deixam ver as fotos de Gaza. Longe da vista, longe do coração.
Mas, caramba, não é uma, nem cem, nem mil, são milhares de crianças mortas ou mutiladas em Gaza. E em que condições. Gaza é antes de tudo uma guerra contra crianças. A foto de um deles nos faz chorar, mas a dimensão global da tragédia não parece nos comover. Em Washington e Budapeste, países que até agora eram parte integrante do Tribunal Penal Internacional, Benjamin Netanyahu foi recebido com todas as honras.
Apesar das inúmeras resoluções adotadas pelas Nações Unidas e das decisões do Tribunal Penal Internacional, como Alto Representante da União, não consegui que o Conselho e a Comissão agissem diante das violações maciças e repetidas do direito internacional e do direito humanitário pelo governo de Benjamin Netanyahu, como fizemos diante da agressão de Vladimir Putin contra a Ucrânia.
E até o final do meu mandato, tive que ver o quanto esse duplo padrão enfraqueceu a posição da UE no mundo. Não apenas no mundo muçulmano, mas também na África, América Latina ou Ásia. A Espanha e alguns outros países europeus levantaram a voz e pediram à Comissão que verifique se o comportamento de Israel está em conformidade com as obrigações decorrentes do Acordo de Associação com a Europa. Em resposta, eles obtiveram apenas silêncio.
O sentimento de culpa de alguns países europeus em relação ao Holocausto, transformado em “razão de Estado” que justifica o apoio incondicional a Israel, corre o risco de nos tornar cúmplices de crimes contra a humanidade. Um horror não pode justificar outro. E a menos que aceitemos que os valores que afirmamos defender perderão toda a credibilidade, a UE não pode continuar a testemunhar passivamente o horror de Gaza e a “gazaização” da Cisjordânia.
Ao contrário do que muitas vezes se diz, e apesar da total falta de empatia de alguns dos seus líderes, a UE tem muitas ferramentas para agir contra o governo israelita: somos o seu primeiro parceiro em termos de comércio, investimento e intercâmbio de pessoas. Nós fornecemos pelo menos um terço das armas importadas por Israel e concluímos o acordo de associação mais abrangente já feito com este país. No entanto, assim como os demais, este acordo também está sujeito ao cumprimento do direito internacional, em especial do direito humanitário.
Se quisermos, podemos agir. E já esperamos muito tempo. Muitos israelenses, cientes de que o avanço precipitado de Benjamin Netanyahu ameaça a segurança e a sobrevivência de Israel a longo prazo, ficariam gratos.
A recent report by Breaking the Silence details genocidal crimes committed by soldiers in Gaza. Based on testimonies from soldiers and officers involved, the report exposes their war crimes during the ground invasion attack in the Gaza Strip. pic.twitter.com/8F7fUx5o8j
— Quds News Network (@QudsNen) April 22, 2025