03 Fevereiro 2025
"Os Estados Unidos pagam a conta, e nos fazem pagá-la, pelas escolhas erradas que fizeram após a queda do Muro de Berlim e o ataque às duas torres em Nova York. Perseguindo, como sempre fez, o mito da 'America first', acreditaram que sua segurança e destino estavam no domínio do mundo, em ter um exército como nunca antes visto na Terra e até mesmo em se dispor à guerra preventiva, porque 'a melhor defesa é um bom ataque'", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Prima Loro, 23-01-2025.
Caros amigos, o Ocidente que não foi a Washington para a posse de Trump passou a segunda-feira, 20 de janeiro, um dia de consternação e pesadelo. O discurso de posse de Trump foi além de todas as piores expectativas. O que se perfilou diante dos olhos foi o fantasma de um criptofascismo planetário com o qual teremos que acertar as contas nos próximos anos. A democracia, como valor sagrado do Ocidente, está em crise e até mesmo, como mostraram os primeiros desconsolados comentários após a festa no Capitólio, teria acabado. Não por destino, entretanto, mas pela responsabilidade e escolha das próprias pessoas que hoje a lamentam. O que acabou foi, na realidade, a democracia reduzida a puro exercício eleitoral, não por acaso abandonado pela maioria, sem tudo o que tínhamos colocado em nossa Constituição, o que deveria servir de modelo para a Itália, bem longe de Salvini.
Os Estados Unidos pagam a conta, e nos fazem pagá-la, pelas escolhas erradas que fizeram após a queda do Muro de Berlim e o ataque às duas torres em Nova York. Perseguindo, como sempre fez, o mito da “America first”, acreditaram que sua segurança e destino estavam no domínio do mundo, em ter um exército como nunca antes visto na Terra e até mesmo em se dispor à guerra preventiva, porque “a melhor defesa é um bom ataque”. Esse era o diáfano Biden, não surpreendentemente o alvo da rejeição eleitoral. Ele dava como acabada a Rússia e por isso jogou contra ela a pobre Ucrânia, e proclamava urbi et orbi (nos documentos sobre a estratégia nacional estadunidense) a competição estratégica e o desafio final com a China, o único adversário que tinha “tanto a intenção de remodelar a ordem internacional quanto o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo”.
Assim, a Casa Branca e o Pentágono investem 800 bilhões de dólares por ano em despesas militares, enquanto a Rússia investe 80 bilhões, retirando centenas de bilhões de dólares por ano do bem-estar do povo estadunidense. Devemos a isso, como disse Bernie Sanders, o eterno candidato presidencial da esquerda estadunidense, o fato de “não ter nenhuma razão racional para termos uma enorme e crescente desigualdade de renda e riqueza, nenhuma razão racional para sermos o único grande país que não garante serviços de saúde para todos, nenhuma razão racional por 800.000 estadunidenses estarem sem casa e milhões de outros gastarem mais da metade de sua renda para ter um teto sobre a cabeça, nenhuma razão racional para que 25% dos idosos nos Estados Unidos tentarem sobreviver com 15.000 dólares por ano ou menos, por termos a maior taxa de pobreza infantil de quase todas as nações ricas, por termos jovens saindo da universidade profundamente endividados ou por termos assistência à infância inacessível para milhões de famílias”.
Isso explica os eventos de hoje, como passamos do Ocidente “alargado” até o Indo-Pacífico, ao Japão e à Austrália de Biden para o criptofascismo global de Trump, acompanhado por autarquia (tarifas), sanções, ordens executivas aos cântaros, confusão de poderes, justiça de regime, pena de morte, imunidade fiscal dos super-ricos e a pretensão de decidir quando começar ou terminar essas guerras “ridículas”, mas sempre trágicas.
Entretanto, o pior que se materializou nos Estados Unidos nessa segunda-feira negra de 20 de janeiro, poderia não vir a contagiar o mundo inteiro. Poderá causar grandes danos, servir de escola especialmente para as maiorias silenciosas, mas poderia ficar confinado ao que foi visto entre o Capitólio e a Capital One Arena, um banho de multidão embevecida e subjugada, fechado, porém, numa bolha que são os Estados Unidos e não o mundo. Não existe um único globo terrestre, o mundo não está pronto para o fascismo planetário, tem outros pensamentos, outra vocação. É claro que depende de nós, mas agora a alternativa é clara: ou nos rendemos a essa queda da história, ou resistimos e construímos uma verdadeira comunidade internacional de direito com uma humanidade indivisa.
Afinal, nem tudo o que Trump anunciou e ameaçou com seu olhar turvo se concretizará de fato; parece mais um blefe de Miles gloriosus do que um verdadeiro anúncio. Não haverá nenhum pouso e colonização em Marte até o final deste mandato presidencial. A ciência foi taxativa: neste ponto da evolução da espécie, a humanidade não está apta física e antropologicamente para empreender uma viagem àquele planeta distante. No mínimo pela duração da viagem, dois anos entre ida e volta, expostos às radiações cósmicas, sujeitos ao enfraquecimento muscular e esquelético que o corpo humano sofreria durante uma longa permanência no espaço, com os desequilíbrios associados do tônus muscular cardíaco. Teriam de ser construídas enormes naves espaciais giratórias, capazes de gerar uma força interna semelhante à gravidade terrestre, algo que só poderia ser feito diretamente no Espaço, aproveitando hipotéticas matérias-primas recolhidas lá em cima (de asteroides ou da Lua); sem falar na vida em Marte, até 126 graus abaixo de zero.
Isso significa que o mito da dupla Trump-Musk já caiu, e se o objetivo político mais simbólico de todas as promessas presidenciais se mostra impossível e falso, significa que o resto também não é tão garantido, a começar pela deportação, ou expulsão, de milhões de migrantes, tidos como criminosos internacionais e invasores: isso teria que ser feito com o exército posicionado na fronteira sul com o México, deixando “nossos guerreiros livres para derrotar nossos inimigos”, como diz Trump; mas com isso acaba o mito da fortaleza estadunidense, a ideia de que ninguém jamais poderá atravessar a fronteira dos EUA de forma ofensiva; eis que, segundo Trump, isso já teria acontecido por parte dos migrantes, tendo falhado a defesa das fronteiras, como se os Estados Unidos fossem Lampedusa, como na imaginação obsessiva de Salvini.
E quanto ao retorno incondicional ao petróleo, ao carvão, de modo a irradiá-lo ao som de dólares em todo o mundo, em que consiste o “America first”? Consiste no fato de que os Estados Unidos serão os primeiros a sofrer, juntamente com as ilhas que serão submersas pelo mar, e terá ciclones e tornados cada vez mais devastadores, e cidades em chamas, como o incêndio de Chicago ontem e o incêndio de Los Angeles hoje, onde até mesmo os ricos “perderam suas casas”.
E o que dizer dessa apresentação de Trump como o Messias que o próprio Deus teria protegido com seu escudo para cumprir sua missão nos EUA e no mundo? Para os Estados Unidos, isso não é novidade, havia o jovem Bush que, a caminho de destruir o Iraque, dizia que estava “chorando apoiado ao ombro de Deus”. E agora Trump usa a religião como um banquinho a seus pés e coloca Deus acima de si, como garantidor de seu poder. Exceto pelo fato que o Deus da tradição judaico-cristã, ao qual se refere o messianismo que chegou nos EUA por meio da Genebra de Calvino, não é um Deus que pode ser chamado para servir como escudeiro dos poderosos, mas é o Deus que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, o Deus que é todo misericórdia e nada vingança do Papa Francisco. E portanto, se religião deve ser e se chega a jurar sobre duas Bíblias no Capitólio, como se uma não fosse suficiente, a de Lincoln de 1861 e a que foi doada a Trump por sua mãe em 1955, é preciso começar a se perguntar novamente quem é esse Deus a quem se apela tão descaradamente.
Talvez, diante desses desafios, se precisaria repensar a má qualidade da secularização como a fizemos acriticamente no Ocidente: também por isso seria importante que a identidade espiritual e profética do judaísmo voltasse a resplendecer, não arrastada para os extermínios, não restrita a uma única etnia, não traída pelas políticas do Estado de Israel.
Cordiais saudações,
O Escriba para “Prima loro”