16 Dezembro 2024
Em 2017, a jornalista Eliane Brum se mudou para Altamira, cidade no coração da Amazônia. Brum queria contar sobre a destruição das cidades ribeirinhas que habitavam o curso do Xingu, grande afluente do Amazonas, que viram suas terras serem inundadas e seu modo de vida desaparecer devido à construção da hidrelétrica de Belo Monte. Ela reuniu essa experiência em Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, livro em que descreve o desaparecimento destas comunidades, forçadas a viver como pobres em uma cidade violenta.
Brum a retrata como a última fronteira, cenário de uma guerra cruel entre aqueles que querem destruir a Amazônia e aqueles que nela vivem. Brum reflete muito sobre o futuro desta floresta, a realidade do Brasil e o papel das mulheres, no que pode ser descrito como um clássico do jornalismo de guerra. De nossa guerra moderna. A jornalista passou três meses em Barcelona a convite do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB).
A entrevista é de Ramon Aymerich, publicada por La Vanguardia, 13-12-2024. A tradução é do Cepat.
Em que fase estamos dessa guerra que você descreve?
Eu diria que temos uma floresta que está no segundo ano consecutivo de seca extrema. E temos os incêndios. A floresta, que antes era úmida, agora pega fogo com muito mais facilidade. São dois problemas muito graves que não vão diminuir. Entre janeiro e setembro, houve incêndios no Brasil em um território equivalente ao Reino Unido. No Cerrado, no Pantanal, na Amazônia. Tudo isso em um momento em que a floresta está muito próxima do ponto de não retorno.
“Onde não há rio, tudo desaparece. O silêncio do Xingu emite um barulho terrível”, escreve quando passa pela região. Esta seca é uma prévia do que pode acontecer no futuro?
Quando a floresta queima ou seca, ela fica em silêncio. A floresta é muito barulhenta, é uma grande conversa. A Amazônia não é homogênea. Há partes da Amazônia que estão tão destruídas que não funcionam mais como floresta. Agora, emitem mais carbono do que absorvem. Luto pelo que ainda é floresta. Por essa floresta onde ainda existem rios voadores, essas árvores de grande porte que liberam na atmosfera até mil litros de água por dia. Agora, o que voa é a fumaça dos incêndios. Cidades nos confins do Brasil, como Porto Alegre, acordam com a fumaça da Amazônia.
Sua Amazônia está cheia de gente. Tem os povos indígenas, os quilombolas, os povos ribeirinhos. E tem também os “grileiros”, esses ladrões de terras que transformaram o negócio da soja e da carne na base do que é hoje o poder no Brasil. Seu livro parece uma história alternativa à do Brasil oficial. E do jeito que você conta, é possível dizer que a história do Brasil gira em torno da Amazônia.
Sim, o Brasil é a periferia da Amazônia. Durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, falou-se muito sobre a exploração da Amazônia. Difundiu-se uma visão colonial da floresta como um lugar deserto de onde extrair bens. Terra sem homens para homens sem terra, diziam. Os indígenas não eram considerados humanos e os que eram mais que humanos [em referência aos animais que a povoam] nem sequer eram contados. Essa visão da Amazônia ainda hoje permanece vigente. A democracia foi recuperada em 1985, houve muitas críticas a tudo o que havia sido a ditadura, mas não à sua visão da Amazônia. Essa visão foi reproduzida em todos os governos, inclusive no de Lula da Silva, que trouxe de volta os grandes projetos hidrelétricos que foram planejados durante a ditadura.
Diz que os povos indígenas estão acostumados a viver no fim do mundo, desde o século XVI.
Sim, é uma frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, dita em uma entrevista que me concedeu. Ele explicava que os povos indígenas viveram o fim do mundo em 1500. Entre os séculos XVI e XVII, 90% da população indígena foi exterminada no Brasil, nas Américas. Disse que eles já conhecem o fim do mundo e que talvez possam nos ensinar como viver depois dele.
Você compara a Amazônia com o corpo de uma mulher. Explica que 99% das mulheres que encontrou em Altamira tinham algum tipo de relação traumática com os homens, de abuso ou estupro. É daí que você tira essa comparação?
Não. Falo da região de Altamira porque é onde trabalho há mais tempo. Mas a minha hipótese é que a violência sexual contra as mulheres é uma realidade no Brasil e em grande parte do mundo. Sou jornalista há 36 anos, então, já ouvi dizer de muita gente, de muitas mulheres, que o estupro, que eu acreditava ser uma exceção, é a regra. Que a maioria das mulheres sofreu ou foi estuprada de alguma forma. E vejo a floresta como uma mulher, um corpo objeto de invasão, de estupro, de penetração. Na minha opinião, não é possível entender a destruição da floresta sem entender o patriarcado. É essa visão da natureza em que os humanos estão no topo da hierarquia. Os humanos como seres excepcionais, mas não todos. Apenas os humanos brancos e homens.
Nos anos 1960 e 1970, a cultura brasileira soube transmitir ao exterior uma imagem de liberação sexual em um país majoritariamente branco. Até que de repente se descobre que 57% da população brasileira é negra. Foi uma maquiagem bastante eficaz.
A violência sexual e o racismo são estruturais no Brasil, um país construído sobre os corpos de negros e indígenas. As mulatas daqueles anos eram produtos de exportação, mulatas bonitas, mulatas dos espetáculos para turistas. A violência sexual e os assassinatos de homossexuais e transexuais sempre estiveram presentes. Não são uma coisa de agora.
Jair Bolsonaro é uma demonstração da reação branca ao aumento dos direitos das mulheres, dos negros e dos indígenas?
Sim, totalmente. Por isso, no livro, recordo uma frase dele, em 2019: “A floresta é uma virgem que todo tarado de fora quer”. Quem pode dizer uma coisa dessas? Bolsonaro é um homem que trabalha para o agronegócio. Pensa como eles. O principal projeto de Bolsonaro era abrir a Amazônia à exploração. E foi isso que fez durante todo o seu governo. Ele incentivou a ilegalidade, a exploração da Amazônia e reforçou a ideia de que os indígenas queriam ser cada vez mais como nós. [O Brasil ultrapassou os Estados Unidos, nos últimos anos, como o principal exportador de soja do mundo. Este negócio e o da carne são básicos na economia brasileira e a influência desses interesses é fundamental na política do país].
Entre 2003 e 2011, a esquerda governou o Brasil através de Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores. O que isso mudou para os povos da Amazônia?
O que Lula e o Partido dos Trabalhadores fizeram foi importante. Cuidaram dos mais vulneráveis, algo que os governos anteriores não tinham feito. No entanto, é dramático que tenhamos uma esquerda – não apenas no Brasil – que permanece presa no século XX. Só conseguimos imaginar a redução da desigualdade e da pobreza através da exploração da natureza. Belo Monte foi construída no governo de Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores. Agora, em seu terceiro mandato, Lula voltou a fazer a mesma coisa. Abriram uma nova frente de exploração de petróleo para a Petrobras na margem equatorial da Amazônia. E lançaram grandes projetos como a pavimentação da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, e a construção da Ferrogrão, que é uma linha férrea que atravessa a Amazônia para transportar matérias-primas, especialmente soja, para as grandes corporações. São projetos que vão multiplicar a destruição da Amazônia.
É razoável falar de otimismo ou pessimismo no mundo de onde você vem?
Nunca utilizo esses termos. Não fazem sentido neste momento. Penso que a situação que estamos vivendo é extremamente grave. E o mais preocupante para mim é o negacionismo. Não falo do negacionismo de Trump ou de Bolsonaro, que é calculado, porque sabem perfeitamente o que estão fazendo e o que está acontecendo. Falo do negacionismo da maioria da população. Não basta aceitar que existe uma crise climática e que esta foi causada pela ação humana. É necessário viver de acordo com a emergência climática.
É difícil imaginar que a população aceite uma mensagem como esta, caso antes não ocorra situações excepcionais.
A minha hipótese é que o capitalismo, ao transformar-nos em consumidores, sequestrou o nosso instinto de sobrevivência. Qualquer ser vivo que se vê ameaçado reage imediatamente. Estamos em uma guerra empreendida por uma minoria dominante contra a natureza. Começou há 500 anos. Não se escolhe lutar em uma guerra. Algum dia chegará, como aconteceu com as pessoas que morreram em outubro, em Valência, ou como a que aconteceu com as pessoas que morreram no início de 2024, no Rio Grande do Sul. Está chegando para todos, porque é uma guerra que está se acelerando. Tudo está acontecendo mais rápido do que os cientistas previram. Estamos há muitos meses com a temperatura 1,5 grau acima dos níveis pré-industriais.
O livro também é a história de sua transformação como pessoa, conforme mergulha na Amazônia. Dedica páginas ao comprometimento do jornalista com o que faz...
Penso que não vale a pena fazer jornalismo, se não for dessa forma, se não muda você por dentro. Se você não se despe e se envolve no que faz. Mas também devo dizer que ganhei muito. Hoje, estou muito mais viva do que antes. Almejar entender essa natureza e os que vivem nela me mudou.
Afirma que após escrever o livro foi difícil para você retornar à sua cidade, São Paulo.
Vivo na floresta há quase oito anos. Vivo em uma área reflorestada. A vinte minutos de Altamira, mas não temos carro. Isto mudou muito a minha maneira de ver as cidades. Antes, pensava em viver em Nova York, em Roma, em Paris. Fascinavam-me. Hoje, só vou a elas para apresentar meus livros ou dar uma palestra.
Como você se sente nelas? Como você se sente agora em Barcelona?
Sinto-me assustada, ameaçada. Minha maneira de olhar mudou. Nas cidades, não vejo mais edifícios. Vejo as árvores, as poucas que têm. Hoje, essas cidades não me parecem interessantes, parecem opressivas, com tanto cimento. Os lugares turísticos são coisas horríveis, coisas que foram arrancadas da natureza. Vejo nelas grandes espaços só para nós, onde só se ouve a nossa voz. Uma das coisas que mais me comoveu durante a pandemia foi quando os animais começaram a se aproximar das cidades e a ocupar lugares que antes não podiam ter acesso. É brutal como nos apropriamos desse mundo e expulsamos todos os outros. Uma cidade é muito pobre porque só tem vozes humanas. E essa é a diferença. Posso vê-la porque vivo em um lugar cheio de vozes. Mesmo vivendo em uma floresta muito agredida, ainda existem macacos, araras, muitas vozes.
O que você pensa sobre nós que vivemos nelas? Nesses dias, você conduziu a exposição “Amazônia, o futuro ancestral” no CCCB e deu palestras para jovens. Como você nos vê?
O que tenho dificuldade em aceitar aqui, seja em Barcelona ou Nova York, é que as pessoas vivam como se o amanhã estivesse garantido. Como se nada estivesse acontecendo. Às vezes, sinto essa necessidade quase inexistente de entrar e sacudir as pessoas. Tudo isso tem um custo. Aqui, vocês ainda têm a possibilidade da ilusão. Onde eu moro não temos essa possibilidade. Por isso, também gosto de viver lá, porque lá a guerra é explícita. As pessoas têm a ilusão de ela que está acontecendo em outro lugar, pensam que não vai acontecer com elas, apesar de estarmos chegando muito perto, com a seca, com as inundações. Seguem com as suas vidas pensando que conseguirão enfrentar o que está acontecendo sem perder nada. Isto não será possível. Aqueles que têm privilégios terão que perdê-los. Teremos que mudar radicalmente a nossa forma de vida.
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“O Brasil é um país construído sobre os corpos de negros e indígenas”. Entrevista com Eliane Brum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU