02 Agosto 2024
Em 2023, 69% do desmatamento ao redor da rodovia ocorreu em florestas públicas não destinadas, áreas do poder público sem um uso oficialmente determinado pelo Estado e, por isso, vulneráveis à grilagem.
A reportagem é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazônia, 01-08-2024.
A maioria das emissões brasileiras de gases do efeito estufa, que levam ao aquecimento global, é consequência do desmatamento na Amazônia. Especificamente ao redor da BR-319, rodovia que conecta Manaus (AM) a Porto Velho (RO), não é diferente. Em uma faixa de 50 km no entorno da via, 24,8 mil hectares foram desmatados em 2023, levando à liberação de 8,7 milhões de toneladas de CO2, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa da Amazônia - Ipam. Esse desmatamento no entorno da estrada representa 25% do total de Rondônia e 14% do Amazonas, estados pelos quais a BR-319 atravessa.
A InfoAmazonia analisou os dados de desmatamento de diferentes categorias fundiárias — terras indígenas, unidades de conservação, assentamentos, terras de uso militar e florestas públicas não destinadas —, com base no Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite - Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, neste limite de 50 km ao redor da rodovia, para entender quais delas estão mais conectadas à devastação da vegetação e, consequentemente, às emissões que levam à mudança climática.
A resposta: florestas públicas não destinadas respondem por 69% do desmatamento, com uma área de 18,3 mil hectares desflorestada em 2023, no entorno da BR-319. Elas recebem esse nome justamente por não terem uma destinação oficial definida pelo Estado. Ainda não foram transformadas em unidades de conservação, destinadas para reforma agrária ou demarcadas como terras indígenas ou quilombolas, nem foram transferidas para proprietários privados, apesar de estarem sob a responsabilidade e posse do poder público. O Ipam estima que existam 49,9 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas em toda a Amazônia, sendo que a maior parte, 28,6 milhões de hectares, é de responsabilidade estadual.
Já as outras categorias fundiárias representam uma parcela bem menor do desmatamento — e das emissões, portanto — ao redor da rodovia: 20% em assentamentos (5.294 mil hectares); 2,06% em Unidades de Conservação (542 ha); 0,49% em Terras Indígenas (128 ha); 0.05% nas terras de uso militar (13 ha). Ainda existem outros desmatamentos registrados ao redor da rodovia, fora das áreas de florestas públicas. As propriedades declaradas como privadas no Cadastro Ambiental Rural - CAR, por exemplo, registram 7,6% do desmate (1.993 mil ha).
As mudanças no uso da terra, que contabilizam principalmente as emissões por desmatamento, são a maior fonte de gases do efeito estufa na Amazônia e no Brasil. Elas respondem por 48% (1,12 bilhão de toneladas de CO2e) das emissões, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa - SEEG.
“A Amazônia guarda anos e anos de emissões globais de carbono nas suas árvores, nas suas raízes, principalmente na vegetação. Esse estoque, se fosse colocado na atmosfera, claro que isso não vai acontecer, mas se fosse jogado na atmosfera de uma vez, o que teríamos seria o caos climático no planeta Terra. Isso dá um pouco a dimensão da importância da Amazônia em termos de carbono”, diz André Guimarães, diretor do Ipam.
André Guimarães, diretor do Ipam.
Para considerar o impacto da BR-319 para o estoque de carbono, Guimarães cita as experiências com a Rodovia Transamazônica, cuja extensão percorre os estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Paraíba, e a BR-163, que liga a cidade de Santarém, no Pará, a Tenente Portela, no Rio Grande do Sul: “Elas [as estradas] acabaram promovendo a entrada descontrolada de pessoas e consequentemente o desmatamento descontrolado. Então, o histórico que nós temos é o aumento das mazelas sociais e conflitos e, por conseguinte, você tem um prejuízo para a capacidade da floresta de reter e absorver carbono”.
Há 98 áreas identificadas como florestas públicas não destinadas ao redor da rodovia, sendo 94 federais e quatro estaduais. Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório BR-319, organização que pesquisa a região, afirma que há necessidade da promoção de um ordenamento territorial: “Muitos processos de ocupações irregulares estão acontecendo, principalmente nas florestas públicas não destinadas, e não existe nenhum tipo de planejamento por parte dos órgãos públicos para o desenvolvimento dessa região [da BR-319]. A gente só fala sobre pavimentação, mas a gente não fala sobre como essa região estaria preparada para ver um empreendimento desse porte”.
Meirelles afirma que há necessidade de estudos ambientais para melhorar a proteção das unidades de conservação, a atualização dos conselhos gestores dessas unidades e a importância da construção dos planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas. Ela também destaca a necessidade de uma maior presença do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária - Incra nos assentamentos.
“O último EIA/Rima [estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental da obra da BR-319] se restringiu apenas a falar sobre os impactos da obra e não fala sobre os impactos que a obra vai trazer na região, os impactos que acontecem quando você abre uma rodovia na Amazônia: a ocupação dessas áreas, a grilagem, a abertura de ramais”, diz a secretária executiva do Observatório BR-319.
Na quinta-feira, 2607, uma liminar suspendeu a Licença Prévia Aprova a localização e concepção do empreendimento, atividade ou obra que se encontra na fase preliminar do planejamento, atestando sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implantação. para as obras no Trecho do Meio, entre os quilômetros 255 e 655 da BR-319 e os rios Purus e Madeira. Segundo a decisão da juíza Maria Elisa Andrade, da 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, “a destruição da Floresta Amazônica não pode ser evitada, a menos que previamente estabelecidas e efetivadas políticas públicas de controle, fiscalização, prevenção e repressão às infrações e crimes ambientais associados ao desmatamento e grilagem de terras públicas”.
A decisão foi uma resposta à ação civil pública ajuizada pelo Observatório do Clima, rede da sociedade civil brasileira sobre agenda climática que conta com 107 integrantes. A organização afirmou que a licença, emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama no último ano da gestão de Jair Bolsonaro, desconsiderou dados técnicos, análises científicas e uma série de pareceres elaborados pelo próprio Ibama ao longo do processo de licenciamento ambiental.
Como apontam Meirelles, do Observatório BR-319, e a juíza Maria Elisa Andrade, há uma necessidade de ações específicas por parte do poder público para frear as ocupações irregulares na região da rodovia. Por serem áreas sem destinação oficial, as florestas públicas se tornam mais vulneráveis à grilagem.
No espaço de 50 km ao redor da rodovia, há 16.832 imóveis autodeclarados como de propriedade privada no Cadastro Ambiental Rural - CAR, aguardando análise do poder público, segundo a análise da InfoAmazonia. Desses, 13.838 estão sobrepostos a florestas públicas. A presença de tantas solicitações de inscrição de imóveis é um indicativo de grilagem de terras, uma vez que esses territórios deveriam estar desocupados, aguardando uma decisão do Estado sobre sua destinação.
“O que está ocorrendo é uma deterioração do bem público, que deveria servir para nos proteger das mudanças climáticas e proteger a biodiversidade. E hoje, elas estão servindo para o contrário”, diz a pesquisadora Rafaela Silvestrini, do Ipam.
Em uma nota técnica sobre o status da destinação de áreas públicas e regularização fundiária no sul do Amazonas, publicada em janeiro deste ano, o instituto conversou com lideranças de oito municípios da região, incluindo os que estão ao redor da BR-319. “Os resultados do mapeamento da demanda espontânea pela destinação de terras públicas reforçaram o consenso geral prévio de que a região está sob forte pressão socioambiental, em boa medida devido ao avanço da grilagem sobre as terras públicas potencializado pelo enfraquecimento da governança ambiental na região e na Amazônia como um todo”, afirma o documento.
Fernanda Souza, integrante da organização Ykamiabas, nasceu em uma dessas comunidades ao redor da rodovia, a Purupuru, localizada a cerca de 50 km do município de Careiro (AM), a 123 km de Manaus, diretamente impactado pelo empreendimento. Ela conta que, desde criança, observa o espaço ao redor da BR-319 crescer, mudar e se encher de ramais, novas vias abertas e conectadas à rodovia.
“Aqui acontecem muitas situações de conflito, principalmente causadas pela migração de pessoas vindo de Rondônia. Uma questão que a gente tem acompanhado com preocupação é a ocupação e compra de terrenos em comunidades e ramais. São pessoas com alto poder aquisitivo que trazem maquinários [para desmate] grandes e pesados”, diz.
A história da BR-319 é antiga: a construção começou na ditadura militar, em 1968, com inauguração em 1972, mas a obra nunca foi completamente finalizada.
Somente em 2001 foram concluídos os primeiros 58 km ao sul e 100 km no extremo norte da estrada. A partir de 2005, a Justiça Federal do Amazonas e o Ibama passaram a exigir o EIA/Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) para a obra. Os estudos apresentados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - DNIT, vinculado ao Ministério dos Transportes - MT, foram considerados irregulares em diversos momentos, como em 2008, 2009 e 2013.
O DNIT continua sendo questionado judicialmente sobre a composição dos documentos ambientais, incluindo os impactos nos territórios da região. Em março deste ano, o MT concluiu um novo relatório de viabilidade para a execução da rodovia. O documento foi o resultado do Grupo de Trabalho da BR-319, criado para avaliar a viabilidade de execução da infraestrutura da rodovia, considerando os impactos socioambientais, a segurança viária e as medidas de adaptação à mudança do clima na região. O desmatamento em florestas públicas ou os planos para a destinação delas não foram citados no documento.
Foram feitas quatro audiências públicas. O MT informou que foram convidadas 33 organizações da sociedade civil para as reuniões e que também realizou conversas com o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia - Censipam, vinculado ao Ministério da Defesa, o Ibama, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, a Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal e com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai.
Para o Observatório BR-319, a esperança de que os impactos ambientais sejam considerados dentro dos planos do ministério é muito pequena. “A gente vê que o modelo de desenvolvimento econômico que está posto no sul do Amazonas, que está posto em Rondônia, ele está entrando e avançando para a Amazônia central. Então, a gente tá vendo o aumento do gado, o aumento das plantações de soja, a gente só vê esse tipo de desenvolvimento pautado”, diz Fernanda Meirelles.
Fernanda Souza, da organização Ykamiabas, diz que teme pelas invasões territoriais na região. “De que forma vamos enfrentar as grilagens de terra? Se a BR, do jeito que está [inacabada], eles [migrantes] já vêm, trazem máquinas, acabam com tudo, imagina quando essa BR estiver toda asfaltada. Agora, o que o Estado está fazendo para impedir isso? Como o estado vai travar isso?”, pergunta.
A InfoAmazonia consultou o MT a respeito da ausência dos debates sobre as florestas públicas não destinadas no relatório publicado em março. De acordo com o órgão, apesar de não ter texto específico no relatório sobre o tema, reuniões foram realizadas para discutir a questão e o MT está “ultimando tratativas para cooperação com os órgãos responsáveis”, informou, em resposta.
Sobre a decisão que suspendeu a licença prévia para pavimentação da BR-319, o órgão informou que acompanha, junto ao DNIT, as providências legais para retomar o trâmite normal do processo de licenciamento. “A autarquia analisa todas as providências a serem tomadas para então se manifestar sobre a decisão. O ministério esclarece que o debate em curso trata exclusivamente de construir os requisitos prévios para avançar no empreendimento, cumprindo as condicionantes e respeitando as premissas ambientais”, disse.
Nesta reportagem, a InfoAmazonia analisou dados de desmatamento do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes, INPE) no Cadastro Nacional de Florestas Públicas - CNFP, do Serviço Florestal Brasileiro. Também foi analisado o desmatamento em relação a imóveis privados, com os dados declarados no Cadastro Ambiental Rural - CAR.
Todas as análises foram realizadas para uma faixa de 50 km ao redor do traçado da BR-319, mesma medida para qual a pesquisadora Rafaella Silvestrini, do Ipam, calculou a quantidade de carbono emitido por desmatamento.
Usando as estimativas do Mapa de Carbono Acima do Solo, da IV Comunicação Nacional (MCTI), a análise do IPAM calculou a quantidade de carbono presente nas áreas desmatadas ao redor da BR-319, entre 2013 e 2023. E converteu essa quantidade em CO₂, multiplicando por 3,67, conversão necessária para obter a massa molecular do CO₂ a partir da massa do carbono. Isso nos dá a potencial emissão de CO₂, um dos principais gases causadores do efeito estufa.
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Desmatamento em florestas públicas sem destinação é principal causador de emissões de carbono ao redor da BR-319 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU