13 Dezembro 2023
Pablo Stefanoni, jornalista, historiador argentino e autor do sugestivo livro A rebeldia tornou-se de direita? (Editora Unicamp), analisa o cenário inédito que se abre na Argentina após a chegada, pela primeira vez em sua história, de um outsider à Casa Rosada.
A entrevista é de Héctor Juanatey Ferreiro, publicada por El Diario, 10-12-2023. A tradução é do Cepat.
Qual foi a chave do sucesso de Milei nas últimas eleições?
O triunfo de Milei tem várias explicações. Em primeiro lugar, na Argentina havia uma maioria disposta a votar mais ou menos em qualquer coisa que fosse contra o peronismo, sobretudo em sua versão kirchnerista. Vivia-se um momento de cansaço devido à crise econômica – uma crise crônica, não pontual –, o que fez com que parte da população se dispusesse a dar uma espécie de salto no vazio.
A imagem que o ex-presidente Mauricio Macri usou para apoiar Milei explica isto bem: “Você está dirigindo um carro a 100 km por hora, vai bater no muro e sabe que morrerá, então, pula do carro. Irá sobreviver? Não sei, mas você tem uma chance, não é?”. Muitos votos para Milei significaram justamente isso: uma mistura de cansaço e esperança.
Ele soube capturar esse clima recuperando um slogan de 2001, o “que se vayan todos”, usando muito discurso contra “a casta política” e denunciando uma imagem decadente da Argentina, reivindicando o país do século XIX e o governo de Carlos Menem, muito complicado, mas com certa estabilidade.
Depois, existe o carisma pessoal de Milei, com essa linguagem chula e uma estética rockeira que atingiu primeiro o público jovem e depois seus pais e avós. No entanto, Milei também se beneficiou da divisão da direita convencional, que tinha acabado de passar por primárias muito duras entre falcões e pombas. No meio dessa crise, surge esta figura do nada e dos canais de televisão, com apenas dois anos de presença no Parlamento, que questionou tudo e capturou o espírito de rebelião eleitoral.
No entanto, Milei não é um fenômeno apenas argentino. Além de Donald Trump e Jair Bolsonaro, Geert Wilders venceu na Holanda. Na Irlanda, a extrema-direita começa a se mobilizar...
Existe uma espécie de vínculo entre o local e o global que é difícil de analisar. Milei é o produto de uma crise econômica e seu discurso está relacionado a ela, um discurso radical e anarcocapitalista. O elemento local que explica o seu sucesso é a crise, mas com muitas aspas.
Pode-se perguntar por que Milei e não outras pessoas, e é aí que entram os elementos globais. A direita radical está sabendo capturar melhor o mal-estar da sociedade do que a esquerda, e não importa qual é a causa desse mal-estar: a crise na Argentina, a imigração na Irlanda e na França, a anistia na Espanha... Além disso, assistimos também à crise da direita tradicional e ao enfraquecimento dos laços democráticos, embora as duas direitas continuem necessitando uma da outra. É o que vimos, aqui, com Macri e Bullrich votando em Milei.
A direita continua sendo a única capaz de capturar a rebeldia, uma ação historicamente mais atrelada à esquerda?
A esquerda clássica na Argentina é frágil. O kirchnerismo hegemonizou a política por mais de doze anos e isso já se esgotou. Continua sendo uma corrente importante, mas gera mais rejeição do que apoio, e a rejeição gera mais união do que fragmentação. O mesmo acontece, por exemplo, no Equador, com Rafael Correa.
O antikirchnerismo tem a capacidade de unificar o voto, ao passo que o kirchnerismo se tornou uma grande minoria. Por outro lado, é preciso diferenciar a esquerda da América Latina e a da Europa. Na América Latina, o populismo de esquerda está em crise: Argentina, Bolívia, Equador... E a esquerda menos populista, como a de Gustavo Petro e Gabriel Boric, enfrenta muitas dificuldades.
Na América Latina, vivemos um momento paradoxal: até Milei, os governos dos maiores países eram de esquerda, mas as oposições guinaram para uma direita mais radical e cresceram. Foi o que aconteceu na Argentina, acontece no Chile e veremos no Brasil. Vive-se uma transição para algo que não conhecemos muito bem.
Não se trata de um ciclo neoliberal, é algo mais confuso. Há muito mais volatilidade do voto, os presidentes ganham com poucos parlamentares... Não é uma onda que vai gerar hegemonia, mas que cresce entre a confusão, o descontentamento e a vontade de chutar o balde.
Milei venceu as eleições com a promessa de incendiar tudo. Até que ponto a sua capacidade de acabar com tudo é real?
Milei venceu sem partido, não tem equipes, não tem estrutura, tem bem pouca representação parlamentar... É um governo inédito. Jamais um outsider havia vencido as eleições, sempre foi a política tradicional, aqueles que construíram sua carreira através da política e militares, no caso da ditadura.
A principal fragilidade de Milei é a de formar um governo que lhe dê uma governabilidade real, daí a sua aliança com Macri, com a direita convencional. Milei está buscando os quadros que não possui no macrismo, no que resta da direita dos anos 1990 e em CEOs e gerentes das empresas onde trabalhou.
Será muito heterogêneo e certamente haverá muitas tensões internas. Talvez o seu discurso libertário e anarcoliberal acabe guinando para um menemismo e um macrismo 2.0. Seu governo será muito mais uma mistura do neoliberalismo mais clássico com a direita alternativa.
De fato, desde que venceu, moderou-se ao menos em seus modos, buscando, por exemplo, fazer com que Lula da Silva viaje para a Argentina, reunindo-se com Bill Clinton, nos Estados Unidos... Quer se mostrar uma figura mais respeitável, mas continua havendo um grande ponto de interrogação sobre qual será, finalmente, o seu projeto de governo.
Milei chegou à Casa Rosada com uma utopia radical de ultraliberalismo e se chocou com a realidade, pois nem a sociedade argentina quer isso, nem ele tem peso para fazer reformas radicais.
Em diversas ocasiões, comentou que a esquerda perdeu a utopia de um futuro melhor.
A crise de futuro é para todos, a direita também não oferece um futuro melhor. Se cresce, é justamente porque não parece haver um futuro, ao menos um desejável. É assim que as sensibilidades mais niilistas e revanchistas crescem. A falta de futuro é o terreno fértil para um tipo de direita mais associada a discursos antissistema. No entanto, depois, quando vencem, possuem os mesmos problemas da esquerda, que são as dificuldades em fazer mudanças.
O capitalismo parece ter se desacoplado da política, não permite que ninguém faça reformas, nem a esquerda, nem a direita. No mundo, atualmente, existem três direitas [radicais]: a de Viktor Orbán e a polonesa, um conservadorismo nacional radical que, sim, almeja impor sua hegemonia e ordena em função de seu projeto; uma direita que se torna mais pragmática quando governa, como a de Giorgia Meloni, que busca se adaptar um pouco; e, por último, a de Donald Trump e Jair Bolsonaro, que governam como se fossem oposição, são antissistema e, inclusive, falam de fraude em assuntos que eles próprios gerem.
Esta última direita é bastante disfuncional. De fato, no Brasil, a elite, um setor que apoiou Bolsonaro, acabou respaldando Lula. É uma direita que degrada a vida cívica e, mais do que impor uma nova hegemonia, basicamente, introduz um tipo de guerra cultural que não penetra totalmente. Embora degrade a vida cívica e consiga polarizar bastante, não faz grandes reformas. Agora, resta ver onde Milei se localiza.
Diante deste contexto, qual é o papel que a esquerda deve desempenhar para recuperar o seu espaço?
A esquerda está em uma grande crise. A esquerda revolucionária e radical desapareceu do cenário político no Ocidente e diz o que a social-democracia dizia, há 30 anos. É que a social-democracia também está em crise. Eu acredito que isto responde a mudanças socioprodutivas: o universo de sociabilidade, a força dos sindicatos, as associações de bairro desapareceram... Eram instituições que funcionavam e que, de alguma forma, buscavam esse mundo igualitário. Até os próprios partidos desempenhavam esse papel de transmitir tradições, ideias, conexões com o passado e suas lutas, preservando a memória histórica...
Agora, parece que entre a esquerda atual e a passada existe uma espécie de fosso. Os teóricos de esquerda que hoje seriam discutidos como figuras vivas em termos de estratégia política, como Lenin, Kautsky e Trotsky, já não são lidos ou dizem pouco às novas gerações. A esquerda perdeu a capacidade de elaborar projetos alternativos.
Como se recompõe? Não sei. Nos anos 1990 e 2000, existiam os fóruns sociais mundiais. Após a queda do Muro de Berlim, veio a luta contra a globalização... Isso não existe mais. Não há movimentos equivalentes e talvez não existirão mais. Por exemplo, a corrente do anarquismo desapareceu e talvez o socialismo também. E o socialismo democrático, que ainda tem elementos para discutir muitas coisas, não faz isto.
Na esquerda, existe o medo de entrar em determinados debates, como o da imigração?
Sem dúvida, há temas que geram ansiedade na população, e a imigração é um deles, bem como a precarização e a crise de futuro. Tudo leva à ideia de que vamos ficar piores. A direita, sim, tem esse discurso simplista e retroutópico: instam a retornar a esses países onde, por exemplo, a imigração não era tão disruptiva e era mais intraeuropeia e racialmente homogênea.
A direita também sabe gerar uma ideia de comunidade em um contexto em que tudo se perde. Em um mundo ultraindividualizado, produz certa comunidade nacional e se conecta com coisas que as pessoas lembram do passado. São temas que a esquerda não consegue abordar bem porque não tem discurso. Permanece se movendo em um discurso humanista, de abertura de fronteiras... Não parece existir uma posição de esquerda em relação a temas como a imigração.
A esquerda debate menos sobre economia do que no passado. Passou-se do economicismo ao culturalismo. Há bem pouco discurso. Para além de repetir slogans, não há discussões de fundo. Contudo, é verdade que é difícil pensar em reformas dentro deste capitalismo, isto também não é culpa da esquerda.
Em alguns setores da esquerda, a batalha contra a extrema-direita se concentra no medo do que possa vir e no chamado ao antifascismo.
O problema é que as extremas-direitas foram sendo normalizadas. Nenhuma delas representa realmente uma “volta ao fascismo”, ainda que, sim, existem algumas mais conectadas. Em parte, essa normalização se explica pelo que falamos acerca da fragilização dos laços. Não existem em nenhum país. Mesmo na Alemanha, já existe uma parte da direita que quer pactuar com a extrema-direita.
Nesse contexto, o discurso antifascista não é muito eficaz. No entanto, segue havendo uma resistência do eleitorado a esta direita. Milei obteve muitos votos no segundo turno, mas pouco no primeiro, então, nem todos os votos são dele. Embora o discurso antifascista não seja efetivo, sim, há um discurso democrático que ainda existe.
No caso de Milei, é uma direita que tem pouco a ver com o fascismo, embora tenha aliança com setores que defendem a ditadura, mas com contatos com ex-militares velhos, não com militares da ativa, e essa diferença importa. Não obstante, só porque não é fascismo não significa que não implique vários retrocessos. Mas, no caso de Milei, veremos mais uma espécie de direita neoliberal na prática. Isto sim, Buenos Aires se tornará a meca de figuras como Santiago Abascal, Orbán e Trump. Será um parque temático para a direita radical.
O peronismo deixou de existir?
O peronismo como kirchnerismo, sim. Embora continue forte, nos próximos anos, não é mais possível um kirchnerismo com a capacidade hegemônica de alcançar maiorias. O discurso mais ideológico está muito desvalorizado, não gera adesão.
O peronismo foi muitas vezes dado como morto, mas sempre encontra uma forma de se recompor sobre bases ideológicas que podem ser muito diferentes. Continua sendo o primeiro bloco na Câmara dos Deputados, tem muita presença no Senado, entre os governadores... É uma força que continuará. Cabe perguntar o que acontecerá com o espaço da direita. O sistema político está se reconfigurando.
Milei era um desconhecido na Argentina, iniciando sua jornada rumo à vitória eleitoral com aparições na televisão. Até que ponto os meios de comunicação são responsáveis por sua ascensão?
Milei começou a aparecer nos meios de comunicação e, vendo que trazia audiência, continuaram a convidá-lo. Alguns por afinidade e outros porque era uma figura muito boa para a televisão. Não cresceu apenas pela televisão, mas também pela internet e, inclusive, dando aulas públicas de economia nas praças.
A televisão, no entanto, foi fundamental para que algumas pessoas votassem nele, como o povo de Salta, perto da Bolívia, onde Milei nunca esteve. Essas pessoas se simpatizaram com o seu estilo. Pode-se dizer que, sim, há certa responsabilidade.
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“Com Milei, Buenos Aires se tornará uma meca para a direita radical”. Entrevista com Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU