29 Junho 2023
O destino do terceiro mandato de Lula vai depender de sua capacidade de vencer as batalhas travadas em quatro frentes.
O artigo é de Luiz Augusto Estrella Faria, professor titular de economia e relações internacionais da UFRGS, publicado por A Terra é Redonda, 27-06-2023.
A derrota de outubro passado foi recebida com enorme surpresa pelos líderes do bolsonarismo. Foi como se o impossível tivesse acontecido, pois, mesmo enfrentando sua poderosa máquina de propaganda, rios de dinheiro e uma avalanche de corrupção no processo eleitoral, Lula venceu. Atônitos, enviavam mensagens obscuras aos apoiadores mobilizados contra o resultado eleitoral, onde recomendavam que esperassem pois algo iria acontecer. Alguns imaginaram antecipar o golpe planejado para ocorrer em algum momento do que seria o segundo mandato de Jair Bolsonaro e instigavam seus apoiadores a se manterem engajados, enquanto outros, mais cautelosamente, tratavam de formular novos planos.
Implantar um regime autoritário sempre foi o objetivo das lideranças militares e civis desse movimento neofascista. Esse objetivo está explicitado no documento que pode ser considerado a expressão mais acabada de sua estratégia: “Projeto Nação: o Brasil em 2035”. O trabalho foi coordenado pelo general Rocha Paiva e elaborado por diversos autores a partir de entrevistas e questionários em que foram ouvidas lideranças militares e civis da direita. Sabe-se, inclusive, que estruturas do Exército foram usadas para tal.
O texto final foi divulgado pelo Instituto Sagres, pelo Instituto Federalista e pelo Instituto Villas Bôas, criado pelo general homônimo. Dessas instituições participa, além dos dois já mencionados e de diversos outros militantes do reacionarismo nacional, também Sérgio Etchegoyen, primeiro general a assumir um cargo ministerial desde a redemocratização e que ampliou o escopo do GSI ainda no governo de Michel Temer para funções propriamente políticas e de centralização e coordenação de todas as atividades de informações e inteligência do Estado. Até então, esse organismo era um sucedâneo da antiga Casa Militar, uma espécie de ajudância da presidência.
O documento fala de uma reorganização autoritária do Estado nacional a ocorrer em algum momento da década de 2020 através da criação de um novo organismo, o Centro de Governo – CdG, que se sobreporia aos três poderes e trataria de garantir a continuidade do projeto cuja execução começara no governo de Jair Bolsonaro. Os objetivos do tal projeto são pouco claros, mas de alguma forma apontam para, em primeiro lugar, uma continuidade do ataque aos direitos de trabalhadores, pretos e pobres que permita a recuperação das margens de lucro das empresas; em segundo lugar, a ampliação do patrimonialismo neoliberal na forma de privatizações e concessões em todas as áreas, como educação ou saúde, a mercantilização de toda a vida social, transformada em todas as suas dimensões em novos espaços de valorização do capital e, em terceiro lugar, um reposicionamento internacional do Brasil como um ator subalterno do declinante império americano.
Villas Bôas é o líder dos militares que se organizaram desde os tempos da Lava-jato em torno do projeto de poder que visou implantar esse regime autoritário e que conta, além do mencionado Sérgio Etchegoyen, com outros generais como Augusto Heleno, Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, além de expressivo apoio entre as fileiras das três forças armadas e das polícias militarizadas. Foi algo como um bolsonarismo antes do próprio Jair Bolsonaro.
O capitão enxotado do Exército por indisciplina e mentiras, por sua popularidade e convergência ideológica, apareceu como o instrumento para essa organização chegar ao poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de criminalização da esquerda e do PT com o tema da corrupção e a ação da operação Lava Jato de perseguição a Lula vão proporcionar o ingresso na arena política da classe média conservadora na sequência das mobilizações de 2013, dessa vez com uma pauta moralista e reacionária. As mobilizações que se seguiram acabaram derrubando a presidenta Dilma Rousseff no golpe de 2016.
A crise econômica que se instalara no final de 2014 e que foi respondida equivocadamente com uma guinada ortodoxa no começo de 2015, cortando gastos e subindo a taxa de juros, acabou por erodir o apoio popular de Dilma Rousseff até sua derrubada em 2016. Na sequência, o aprofundamento da pauta neoliberal sob Michel Temer só fez agravar o quadro recessivo, destruindo o crescimento do PIB, aumentando o desemprego e arrastando uma parcela grande da população para abaixo da linha de pobreza. Depois de ter saído do Mapa da Fome da ONU em 2014, o Brasil retornou a esse triste lugar em 2019.
Após sua vitória em uma eleição que foi maculada pela prisão de Lula – decisão do juiz declarado parcial Sérgio Moro –, o movimento que teve Jair Bolsonaro como aríete tratou de implantar sua linha política. A administração bolsonarista que se segue pôs-se a destroçar o máximo possível das políticas e organizações do Estado brasileiro voltadas à proteção social, às garantias de subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico. Da mesma forma, orgulhava-se de ter feito do país um pária internacional. Seu método de gestão foi a crise permanente, ambiente no qual seus estrategistas imaginavam ser mais viável fazer avançar tal projeto.
Tratava-se de um governo-movimento e a crise permanente era a tática que permitiria isolar e combater a parte indesejada da população: mulheres independentes, pobres, negros, esquerdistas, indígenas, quilombolas, e comunidades LGBTQIA+. Ou seja, a maioria esmagadora dos brasileiros. Toda a semelhança com os métodos do nazismo não é coincidência, o reacionarismo de extrema-direita não é muito imaginativo.
Ao mesmo tempo, controlando um superministério da economia, Guedes tratava de produzir o melhor ambiente de negócios possível para seus colegas no sistema financeiro. Novas oportunidades com privatizações, mudanças de regulação “a favor do mercado” (market friendly), benefícios fiscais, maior espaço para arbitragem de câmbio e juros com grandes oscilações nestas taxas e mais internacionalização. Ao mesmo tempo, seguiu impulsionando a lucratividade com arrocho salarial, novas “reformas” redutoras de direitos dos trabalhadores e a desorganização das atividades de fiscalização.
A aniquilação da função reguladora do Estado foi uma decisão implementada desde o primeiro dia e em todas as áreas de atuação. O que se viu como consequência foi o aumento de todo o tipo de crime: invasões de terras indígenas, desmatamento ilegal, garimpo ilegal, trabalho análogo à escravidão, proliferação de armas e da violência armada, perseguição a comunidades e grupos sociais vulneráveis, assédio generalizado e estimulado em todo o serviço público, especialmente na áreas da educação e da segurança, machismo, racismo, sexismo, misoginia e todo o tipo de preconceito se manifestando de forma violenta e agressiva, estimulados pelo próprio presidente da república.
Os casos das políticas de saúde e educação, ciência e tecnologia são paradigmáticos dos objetivos do desgoverno de extrema-direita, bem como o estímulo aos abusos e à letalidade policiais. A pandemia da Covid-19 e a política de “contaminem-se todos que assim a peste vai passar logo” deixou um legado de mais de 700 mil mortes das quais cerca de 400 mil foram provocadas intencionalmente pelo governo ao contrariar e deixar de adotar as recomendações da comunidade científica e da ONU. Na esteira dessa tragédia viram-se todos os indicadores de saúde, da cobertura vacinal à distribuição de medicamentos ou a abrangência da atenção básica piorarem.
A redução drástica do financiamento das políticas em prol do ensino e pesquisa se traduziu num arrocho orçamentário das universidades e escolas federais, corte de bolsas e verbas para a ciência com a consequente paralisação de inúmeros programas. A redução calamitosa da participação de estudantes nas provas do ENEM é um espelho desse desastre, assim como o crescimento dos indicadores de abandono escolar e de déficit de aprendizado.
Passados os quatro anos de mandato do genocida todas as forças sociais que apoiaram esse descalabro se mobilizaram para a continuidade do projeto neofascista e neoliberal. Se a derrota eleitoral foi um revés significativo, a ideia de antecipar o golpe que instalaria um Estado autoritário “em algum momento da década de 2020” foi antecipado com o plano de criar um episódio de caos e desordem política para justificar uma convocação das Forças Armadas em uma intervenção de suporte à mudança de regime.
É assim que se pode compreender o ataque à sede da Polícia Federal e as depredações e incêndios de 12 de dezembro, o episódio da bomba no aeroporto de Brasília no dia 24 e, superando todos em destruição e vandalismo, a invasão das sedes dos três poderes em 8 de janeiro.
Felizmente a estratégia de enfrentamento daquela movimentação insurrecional não utilizou efetivos das forças armadas, apenas as polícias federal e do Distrito Federal. Dessa forma o governo há pouco empossado conseguiu controlar completamente a situação até o final da noite, em que pese a ação deletéria e subversiva dos poucos contingentes do Exército envolvidos nos acontecimentos.
O fracasso da intentona de 8 de janeiro pode ser explicado também pela hesitação da ala militar do bolsonarismo, que acabou recuando da tentativa de tomada do poder sustentada por tropas militares. Assim, o fim melancólico da opção golpista, com seus milhares de aprisionados respondendo à justiça, levou a uma mudança tática. A palavra de ordem de agora é “Lula não pode governar”. Bolsonaristas e seus aliados passaram a usar os espaços de poder de que dispõem para tentar paralisar o governo eleito enquanto preparam seu retorno. Para tanto, abriram quatro frentes de batalha contra o governo Lula.
A primeira dentro da própria administração, onde servidores bolsonaristas tratam de sabotar o funcionamento de órgãos essenciais para a realização do projeto do PT e aliados de desenvolvimento econômico e democracia social, redução da pobreza, da desigualdade e da discriminação. A sabotagem é facilitada pelo desmonte de inúmeros departamentos e organismos deixados à míngua de pessoal e recursos desde o governo de Michel Temer. A nova administração está tendo que realizar inúmeros concursos para preencher milhares de postos de trabalho deixados vagos, além de fazer enormes esforços de remobilização de servidores para dar conta de reorganizar serviços abandonados pelo governo anterior, especialmente nas funções de fiscalização e controle nas áreas sociais e de proteção e cuidado de populações vulneráveis, como o caso chocante dos yanomamis.
Além disso, segue em frente o processo de desaparelhamento do Estado com a remoção de bolsonaristas de postos de decisão na administração dos ministérios, autarquias e empresas estatais. Esse processo está também, desde que começaram a ser revelados os subterrâneos do 8 de janeiro, avançando, ainda que de forma tímida, no interior das Forças Armadas, em especial do Exército.
A segunda frente da contraofensiva da extrema direita são as políticas fiscal e monetária. Em se tratando da política fiscal, o absurdo Teto de Gastos foi substituído pelo chamado Arcabouço, mecanismo que autoriza um pequeno crescimento das despesas. Mesmo assim, ainda representa um freio para o financiamento das políticas sociais e para o investimento. Vai ser necessária muita criatividade da Fazenda para viabilizar recursos às áreas de infraestrutura, saúde e educação. E o BNDES precisará suprir com seus financiamentos os investimentos que o Tesouro não poderá fazer. Mas, desafortunadamente, um elefante restou no meio da sala, o compromisso de fazer decrescer a relação dívida PIB que causará, inevitavelmente, restrição às despesas.
A outra perna da política econômica, a política monetária, poderia impulsionar o crescimento ao reduzir a despesa estéril do pagamento de serviços da dívida baixando os juros. Entretanto, o monetarismo tosco do Banco Central mantém a taxa em inacreditáveis 13,75%. Ora, a inflação brasileira caiu, está abaixo de 4%, menor que sua média histórica neste século e, de forma inédita, também menor do que aquelas de Europa e EUA. Juros num índice que fosse a metade do atual, entre 6 ou 7%, ainda atrairiam capital estrangeiro e alcançariam remunerar positivamente os investidores. Entretanto, o presidente do BC alega que a taxa precisa permanecer elevada porque a dívida pública é grande. O curioso é não haver qualquer medida objetiva do que seria “grande”, os 264% do Japão, os 129% dos EUA? De qualquer forma, e para comparar, valor para o Brasil está em 73%, um pouco acima dos 66% do segundo mandato de Dilma.
Os juros altos não apenas fizeram a dívida crescer como foram a causa da crise de crédito que não apenas quebrou as Lojas Americanas como está produzindo recessão e desemprego. A medida de renegociação de dívidas de pessoas físicas que foram induzidas a um endividamento arriscado pelo desgoverno anterior vai no sentido correto, mas há uma necessidade de equacionar o endividamento empresarial, particularmente grave no comércio. E isso vai requerer alguma forma de desconto com taxas muito menores do que as atuais.
A terceira frente de combate é o Congresso, onde a maioria de direita pode se aliar aos bolsonaristas para obstruir o governo com pautas negativas. Como princípios não são o que motiva essa gente, fica a possibilidade de, com sabedoria e arte, o governo fazer alguns agrados e isolar o neofascismo em troca de autorização para efetivar suas políticas. É o que tem sido levado nas negociações sempre difíceis com o bloco parlamentar do dito “Centrão”, em especial com seu líder, o amoral presidente da Câmara Arthur Lira. Enquanto for possível restringir o “preço” desses parlamentares a verbas dentro de programas prioritários, o governo sairá bem. Entretanto, o desgaste será permanente e a obstrução recorrente.
Por fim, na quarta frente, temos a grande mídia. Seu alinhamento com os interesses das classes dominantes, em especial do sistema financeiro, a coloca em uma mal disfarçada oposição a Lula, defendendo juros altos e “austeridade” fiscal, sempre apresentados como recomendações da ciência. É assim que se explica o desfile interminável de “economistas chefes” de empresas do mercado financeiro, com sua arrogância mal disfarçando os interesses de seus patrões e que arrotam sua pretensa ciência por telejornais, entrevistas e colunas de opinião. Seu jogral monocórdio diz sempre “austeridade, austeridade, menos Estado e mais mercado”. É indigesto.
O destino do terceiro mandato de Lula vai depender de sua capacidade de vencer as batalhas travadas nessas quatro frentes. Será preciso prevalecer sobre empresários do agro, banqueiros e outros endinheirados e também as classes médias que os seguem. Herdeiros dos senhores de escravos no ódio ao povo e na falta de compaixão, farão de tudo para impedi-lo de dar aos sofridos, desamparados e explorados uma vida melhor. E para isso precisam que o governo fracasse.
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Lula não pode governar! Artigo de Luiz Augusto Estrella Faria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU