Uma outra política fiscal e monetária é imprescindível para sair da crise socioeconômica do País. Entrevista especial com José Carlos de Assis

“Nós estamos sendo estrangulados. (...) Temos que mudar a política econômica numa direção correta que atenda às pessoas”, defende o economista

Foto: Antonio Cruz | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 16 Março 2023

Se, por um lado, a frente ampla partidária composta para assegurar a eleição do presidente Lula nas últimas eleições sinaliza uma esperança no enfrentamento dos dilemas sociais brasileiros, como a redução da fome, da miséria e das desigualdades sociais, por outro lado, na prática, as alianças partidárias, que não necessariamente são políticas, começam a dar sinais de fragilidade. As principais disputas concentram-se na política econômica, no cabo de guerra entre os poucos beneficiados pela política fiscal e monetária e a esmagadora maioria da sociedade.

É assim que observa a atual cena política o economista José Carlos de Assis, que há 40 anos acompanha os efeitos da política econômica na realidade concreta da população brasileira. Enquanto a equipe econômica do governo se prepara para apresentar à sociedade o “arcabouço fiscal” do governo nos próximos dias, “o risco é que a aliança partidária feita em nome da governabilidade não aguente uma situação social que venha a prejudicar a sociedade, sobretudo os mais pobres, caso haja uma frustração em relação às promessas de campanha de Lula”. Na avaliação do entrevistado, “esse é o risco principal porque se, houver uma decepção muito grande a curto prazo, ela vai provocar uma instabilidade social, e a instabilidade social provoca instabilidade política, e a instabilidade política provoca instabilidade institucional”. Para assegurar a estabilidade política do país, adverte, “o governo tem que eleger como prioridade absoluta a questão agrícola, para acabar com a fome e a insegurança alimentar”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, José Carlos de Assis defende a economia de Finanças Funcionais como alternativa à economia rentista, que estrangula a economia real. Ele explica que as questões de política econômica e suas consequências começam e terminam na elaboração da política fiscal e monetária. “Na área tributária é onde aparece a questão da concentração de renda em favor de poucos, por efeito, justamente, da política fiscal, que privilegia certos setores da economia em detrimento de gastos públicos em favor dos pobres. Esta é uma questão simples; não tem complexidade nenhuma. Através da política fiscal e monetária, o Estado aumenta a taxa de juros para a sociedade inteira e subsidia os setores privilegiados. Sem subsídio eles não funcionam e, com isso, a distribuição e a concentração de renda são afetadas. É algo, portanto, como eu disse, que começa e termina na questão fiscal monetária. Como se enfrentar? Voltamos ao começo: poderíamos ter uma boa contribuição para a justiça social se o presidente do Banco Central estivesse alinhado com políticas progressistas. Mas não temos isso”, sublinha. E lamenta: “A questão monetária fiscal não vai ser resolvida se depender dele, e o fato de ela não ser resolvida compromete o governo a médio e longo prazo”.

José Carlos de Assis (Foto: Arquivo pessoal)

José Carlos de Assis acaba de lançar o livro intitulado A economia brasileira como ela é (2022). O livro está disponível para acesso na Estante Virtual da AmazonAssis também é autor de A razão de Deus (2012), A chave do tesouro (1985) e Os mandarins da República (1984), entre outros. É doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e ex-professor de Economia Política e Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

Confira a entrevista.

IHU – Recentemente, o senhor disse que o agronegócio está boicotando o governo Lula e pode comprometer a política social de combate à fome, gerando uma crise alimentar e social a longo prazo. Pode explicar melhor sua compreensão sobre as relações entre o governo e o agronegócio neste aspecto e os riscos que vislumbra?

José Carlos de Assis – A agricultura brasileira é movimentada pelos financiamentos do Plano Safra, basicamente. O Plano Safra financia, de julho de um ano até junho do outro ano, tanto o agro quanto a agricultura alimentar. O último orçamento do Plano Safra foi feito pelo governo Bolsonaro e privilegia mais o agro do que a agricultura alimentar, e isso terá efeito no governo Lula, que colherá uma safra alimentar talvez insuficiente no início do seu governo, depois de ter feito, antes das eleições, uma campanha eleitoral baseada na promessa de “acabar com a fome do povo”.

Em síntese: as pessoas votam para mudar a política; elas estão com fome, com problemas alimentares, que estão acumulados há muito tempo. Diante da expectativa da população, o que se pensa é que essa situação seja resolvida a curto prazo. Mas a curto prazo não se resolve nada, até porque a safra está plantada e ainda tem que se colher o que está plantado. Além disso, temos uma estrutura de comercialização e um financiamento de comercialização muito ruins para este ano.

Riscos da aliança partidária


O meu medo é que os financiamentos do Plano Safra correspondentes à parte alimentar estejam atrasados. E que haja um bloqueio proposital de financiamento. Tenho conversado com agricultores e pessoas interessadas em financiamentos alimentares, e eles relatam que não conseguem obter financiamento das instituições de crédito oficiais. Tenho medo, pois, de que isso seja um bloqueio deliberado para atrasar a produção e a comercialização agrícola. Meu medo é justamente porque estamos em uma situação em que a estabilidade do governo depende muito de uma articulação partidária, e não propriamente de uma articulação política. Distinguindo entre uma coisa e outra, partido não é propriamente algo que tenha a mesma concepção política; junta-se nele muita coisa diferenciada, sem um propósito comum.

Qual é o risco? O risco é que a aliança partidária feita em nome da governabilidade não aguente uma situação social que venha a prejudicar a sociedade, sobretudo os mais pobres, e que venha representar uma frustração em relação às promessas de campanha de Lula. Esse é o risco principal porque, se houver uma decepção muito grande a curto prazo, ela vai provocar uma instabilidade social, e a instabilidade social provoca instabilidade política, e a instabilidade política provoca instabilidade institucional. Isso é mais sério do que qualquer coisa que tenha acontecido. O fundamental é a estabilidade social do país e a estabilidade social, hoje, depende de ações a curto prazo. O governo tem que eleger como prioridade absoluta a questão agrícola, a questão alimentar. O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES [Aloizio Mercadante] anunciou que o financiamento da agricultura alimentar será prioridade. Isso é muito importante, porque os financiamentos do BNDES, tradicionalmente, eram direcionados para projetos de longo prazo. A prioridade agrícola ajudará a garantir a estabilidade social e política.

Demanda e oferta

Observe o seguinte: o Programa Bolsa Família resolve problemas da pobreza absoluta pelo lado da demanda monetária: dá-se dinheiro para as pessoas e elas vão ao supermercado para comprar alimentos. Agora, o que o supermercado vendeSe não tiver produção equivalente, não se vende nada e tem inflação. Então, tem que ter um equilíbrio entre demanda e oferta. A demanda é sustentada com dinheiro e a oferta, com produção. Esse tem que ser o caminho, e é por isso que a prioridade da agricultura é fundamental.

Com isso, não quero dizer que se tenha que abandonar o agro. Não é preciso; este é um setor que está indo muito bem. Ele é altamente subsidiado; é o setor mais subsidiado da economia brasileira e está dando uma boa resposta porque a nossa situação externa é ancorada nele e é muito boa. O superávit comercial é garantido sobretudo pelo agro. Mas a agricultura alimentar é fundamental para a estabilidade social porque, com o agronegócio, não se garante a estabilidade social. As pessoas não comem soja, milho, madeira. Tem que ter um equilíbrio entre o longo prazo (agro) e o curto prazo (produção alimentar) para sustentar o equilíbrio geral da economia e do próprio governo.

IHU – Nas últimas semanas, assistimos a um cabo de guerra entre a ala econômica e a ala política do governo em torno do subsídio à gasolina e alguns analistas dizem que também há tensões em relação às decisões a serem tomadas acerca dos juros muito altos, das possibilidades de crescimento econômico e da elaboração de um novo arcabouço fiscal. O senhor tem dito que a resolução da questão monetária fiscal é a mais urgente a ser resolvida. Quais são as principais disputas dentro do governo hoje e o que as motiva?

José Carlos de Assis – A questão monetária fiscal não vai ser resolvida, e o fato de ela não ser resolvida compromete o governo a médio e longo prazos. É preciso ter uma virada revolucionária nesse campo porque o mercado domina o Congresso Nacional e o Congresso Nacional, atendendo ao mercado, não vai fazer uma reforma fiscal monetária profunda. Não adianta ter essa expectativa. Nós temos que tentar mobilizar a sociedade para que ela pressione o Congresso Nacional em favor de medidas intermediárias, não medidas revolucionárias. E nesse ponto há muitas coisas a serem feitas.

A equipe do governo está dividida mesmo. O próprio [Fernando] Haddad tem uma linha muito conversadora, mas eu não critico muito porque sei que ele está amarrado de alguma forma ao mercado e, se ele tentar fazer qualquer coisa diferente – e é preciso fazer alguma coisa diferente –, vai barrar na resistência do mercado, que tem o poder do apoio da grande mídia. Este é um dado da realidade. Não é uma questão de inteligência, de lógica, de coerência; é uma questão de realidade política. A única forma que vejo de resolver isso é pelo movimento de massa: colocar milhões de pessoas na rua para mudar a cabeça do Congresso Nacional.

Proposta fiscal monetária X economia de finanças funcionais

Simone Tebet disse que a proposta fiscal monetária do Haddad é muito boa para todo mundo. Duvido que seja, porque ele está cercado de economistas convencionais. Mas o que nós, economistas progressistas, pretendemos, a economia de Finanças Funcionais – a partir da qual dei o exemplo da agricultura alimentar –, esta, sim, é boa para para todo mundo. A economia de Finanças Funcionais vale para toda a economia porque propõe ter demanda e oferta equilibradas. Se o governo adotar esse modelo, exemplificado no caso da comida e da situação alimentar, todo mundo ganha porque a pessoa que está com fome ganha, a pessoa que produz ganha, a pessoa que comercializa ganha, e a pessoa que financia ganha. Só não ganha o setor financeiro sustentado de forma absoluta pela especulação.

É esse tipo de economia (Finanças Funcionais) que tem que ser colocado na mesa para discutirmos, e esta é uma discussão que deve orientar um movimento de massa. Eu queria ver isso no centro da economia do Papa Francisco. Estou falando para o IHU, que é uma instituição que tem uma vinculação grande com a Igreja Católica, e acho que a discussão é por aí mesmo: temos que mudar a política econômica numa direção correta que atenda às pessoas. Eu, particularmente, acho que isso significa voltar aos ideais socialistas. Não é o ideal socialista da Rússia soviética ou da China, na parte ideológica, mas o que faz a economia chinesa na prática. A economia chinesa é uma economia de produção e não de especulação; é uma economia de juros baixos e é por isso que ela dá tão certo em termos econômicos. Infelizmente, não é uma economia aberta do ponto de vista político, mas do ponto de vista econômico e social está indo muito bem. É a economia de ponta no mundo atual. Esta é a questão: imaginar e colocar em marcha, através dos grandes movimentos sociais, uma nova economia.

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IHU – Como pôr em marcha essa mobilização nos termos que o senhor propõe hoje, em que a sociedade também está dividida, rachada, influenciada por questões ideológicas mesmo em termos sociais?

José Carlos de Assis – A sociedade não está rachada; está dominada. É diferente. Esta é a questão. O sistema financeiro domina a sociedade brasileira há muito tempo. A Constituição nos proibia, antigamente, de fazer contratos de juros sobre juros. Ao longo do tempo, por Medidas Provisórias, isso foi mudando e hoje são estabelecidos contratos de juros sobre juros. Tente comprar à vista qualquer produto elétrico. Você não consegue porque querem cobrar juros sobre juros para que as pessoas paguem, através do comércio, ao sistema financeiro, uma parte importantíssima da renda nacional. Isto é o domínio absoluto do sistema financeiro.

Sócios do sistema financeiro

Normalmente, o sistema produtivo e o sistema comercial deveriam estar em conflito com o sistema financeiro porque parte da renda deles é capturada pelo sistema financeiro. Por que eles não se rebelam? Porque são sócios do sistema financeiro; é aí que se dá o domínio do sistema financeiro. Compare a taxa básica de juros com a taxa básica comercial. A taxa básica de juros é a taxa fixada pelo Banco Central. As taxas comerciais são da ordem de 100, 120%, enquanto a taxa básica de juros é de 13%. Então, ninguém fala na taxa comercial e ela poderia ser regulada pelo Banco Central, mas não o é. Poderia ser regulada por lei e não o é.

Fernando Gasparian, que foi meu editor durante muito tempo, lutou bravamente para colocar um limite na taxa de juros durante a elaboração da Constituição de 1988. Ele conseguiu, mas a medida foi derrubada logo depois da Constituinte. Havia sido estabelecido um limite de 12% ao ano. Hoje, nós temos taxas de juros de até 500% no cartão de crédito. Isso é um crime. Trata-se de uma coalizão entre os sistemas comercial, produtivo e bancário. Só se resolve isso com o movimento de massa, quando as pessoas compreenderem o que acontece. Isto significa o seguinte: se o eixo principal da sociedade é o trabalhista, acredito que isso tem que ser feito via centrais sindicais, com todos os movimentos sociais, inclusive os movimentos identitários, para que se tenha na rua milhões de pessoas para mudar o sistema monetário, financeiro e fiscal brasileiro.

Questão fiscal e monetária

Sobre a questão fiscal e monetária, ela funciona da seguinte forma: não há nenhum problema com o déficit fiscal, desde que ao déficit corresponda um financiamento produtivo que tenha retorno garantido, porque, em contrapartida ao déficit, tem produção e, portanto, tem equilíbrio entre demanda e oferta no mercado. Não há nenhum risco, pois, ao ter déficit ou dívida. O Estado que emite moeda soberana, ou seja, a própria moeda, não quebra com déficits. Ele é soberano e provedor de moeda; ele nunca vai quebrar, a não ser quando a dívida é externa. Mas o Brasil não tem dívida externa; tem superávit externo muito grande por causa do agro e uma reserva acumulada de quase 400 bilhões. Então, o país está completamente sem problemas na área externa. O problema interno se resolve mesmo com déficit e dívida, se tiver contrapartida de financiamentos responsáveis.

Ao financiamento deve corresponder produção física equivalente de longo e curto prazo. Como se equilibra isso? É claro que se saírem fazendo muitos investimentos de longo prazo, rodovias, ferrovias, há um risco de desequilíbrio porque se estará produzindo, mas não se estará gerando a receita correspondente imediatamente, porque o investimento é de longo prazo. Os investimentos de curto prazo são relacionados a demandas de curto prazo: alimentos, roupas etc. Então tem que ter um equilíbrio entre financiar o curto e o longo prazo. Essa é a essência da economia de Finanças Funcionais, que tem todo um lado técnico para ser compreendido, como o fato de ter uma moeda soberana.

A moeda soberana é aceita na sociedade não porque é emitida pelo Estado, mas porque, ao emitir a moeda soberana, o Estado emite o tributo no qual é paga a moeda. O Estado só aceita pagamento de tributo na moeda soberana e é por isso que ele não quebra em moeda interna. Como disse, ele só quebra – se quebrar – em moeda externa. É essa a questão central. Não existe isso de que o déficit público, quando é resultante de financiamentos sólidos e responsáveis, vá provocar a quebra do Estado. Isso não vai acontecer nunca porque o Estado emite moeda e, ao emitir moeda, ele está irrigando a economia, o setor privado está comprando essa oferta de moeda e, ao comprá-la, parte dela volta para o próprio Estado na forma de pagamento de tributo, sendo que o resto entra em circulação na economia. É essa a questão central e que foi violada pela política neoliberal desde a década de 1980.

IHU – Em seu novo livro, “A economia brasileira como ela é” (2022), o senhor afirma que a economia política brasileira tem sido “uma máquina de concentração de renda e de riqueza por conta de desníveis estruturais e conjunturais, na qual o setor realmente eficiente é o que promove a especulação financeira desenfreada, com os mais modernos recursos tecnológicos do planeta, que nada aproveitam, porém, à atividade produtiva real e à promoção social”. Como interromper esse processo?

José Carlos de Assis – Infelizmente, não tem saída, a não ser com uma mudança institucional profunda. O exemplo do juro comercial do cartão de crédito que mencionei acima é justamente para mostrar como é difícil sair dessa situação, embora seja uma questão básica de ser resolvida porque não implica articulação entre política fiscal e monetária. Seria possível resolver isso no nível da política bancária convencional, mas não se resolve. E não se resolve porque todos estão dominados pelo sistema financeiro, e o sistema financeiro está articulado com o sistema comercial, e o sistema comercial com a grande mídia. O sistema industrial está diminuindo no Brasil por causa da política cambial, que está articulada à política monetária. Isso tudo envolve uma situação de estagnação ou regressão da economia. Essa situação, a longo prazo, é destrutiva para a economia brasileira. É o que estamos vendo. Então, como se resolve? Resolve-se com uma grande mobilização, no nível de mobilização de massa.

Há duas reformas em perspectiva no governo Lula: a fiscal monetária e a tributária. Elas estão articuladas. O Congresso se coloca majoritariamente contra qualquer atualização do sistema monetário financeiro e do sistema tributário. Como vamos resolver a questão com o Congresso que está aí? A única coisa que podemos fazer é o que estamos fazendo: falando sobre essas questões e apontando as contradições do sistema. Não tem outro jeito.

O Papa Francisco tomou a iniciativa sensacional de convocar os Jovens Economistas para proporem uma nova economia voltada para os pobres, mas só que ele tinha que ter convocado os velhos economistas, porque quem conhece o que tem acontecido há décads no Brasil e no mundo são os velhos. Eu sou um testemunho da economia brasileira desde a década de 1960.

Economia de Francisco. A construção de uma economia que faz viver e não mata:

IHU – Como ocorreu a guinada de uma economia de produção para uma economia especulativa ao longo das últimas décadas?

José Carlos de Assis – Nós temos que separar a questão política, ideológica, da questão econômica. Antes da década de 1960, o Brasil era uma economia de crescimento, de produção. O que temos hoje, e que ainda não foi destruído pelos governos Temer e Bolsonaro – e por FHC, que também destruiu parte do patrimônio estatal brasileiro –, foi construído à base de dívida. Dívida é positiva quando se faz um projeto responsável. A grande infraestrutura econômica brasileira foi feita à base de dívida, com planejamento, conduzida por um grande ministro do planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, que planejou o primeiro e o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento – PND ao longo da década de 1970. Esses planos foram inspiração para a China e foram a base da criação de uma grande parte da infraestrutura brasileira. Mas isso teve um custo em dívida externa, porém, inicialmente, sem problemas. Só que aconteceu uma virada do sistema internacional, a crise do petróleo e a crise dos juros, e isso pegou o país com uma acumulação de dívida muito grande.

É aqui onde entra o Fundo Monetário Internacional – FMI, quando se dá a virada [para a economia especulativa]. A condição do FMI para pagarmos a dívida foi um acordo de financiamento. O acordo consistia em fazer uma política fiscal e monetária para reduzir a demanda interna a fim de sobrar reais para a exportação, criando dólar, porque só se paga a dívida externa se for em dólar. Mas o acordo não cobria todo o financiamento de que o país precisava para pagar as parcelas da dívida externa. Então o FMI deixava uma margem grande para ser financiada pelos bancos privados. Obviamente, os bancos privados cobravam juros muito acima dos que o FMI cobrava. Essa situação deixou a porta aberta para o sistema privado entrar no país, cobrando taxas de juros mais altas. Com isso, o país começou a acumular dívidas com o setor privado internacional muito altas, dando início ao processo de financeirização da economia brasileira no começo da década de 1980. Depois, isso se acelerou, veio o Consenso de Washington, mais tarde o Forum de Davos e a globalização, com os “conselhos” de economistas neoliberais para que acelerássemos o processo de privatização de empresas estatais para pagar dívida externa. Tudo isso implicou no enquadramento cada vez maior ao sistema financeiro, que estrangulava e estrangulou o país ao longo do tempo, especialmente nos governos Temer e Bolsonaro.

Alternativas

Havia alternativa. A alternativa era ter acesso a um sistema bancário de financiamento mais barato porque aí, em vez de uma economia de especulação, teríamos uma economia de produção, que financiava a dívida a baixo custo, interna e externamente, e equilibrava oferta e demanda através da produção. Aumentando a produção, sobravam mais reais para pagar a dívida externa e financiar o déficit corrente, se houvesse.

Esta é a diferença entre a economia de produção e a economia de especulação: uma se baseia em financiamentos à base de altas taxas de juro, e a outra se baseia em financiamento à base da taxa de juro mais baratas. Esta é a essência. É disto que trato no livro “A economia brasileira como ela é”, como uma tentativa de explicar às pessoas, conceitualmente, como funciona nossa economia. Escrevi quase 30 livros de economia. Escrevi na década de 1980 sobre os escândalos financeiros da época da ditadura, sobre a degradação do sistema habitacional e as fraudes acobertadas pelo regime militar. Depois disso, tratei da crise brasileira, da dívida externa e de outras questões. Mas, desta vez, escrevi um livro pequeno para ser compreendido de forma pedagógica, para as pessoas entenderem do que se trata, porque estamos mergulhados em uma terrível manipulação ideológica. A grande mídia (Estadão, Folha de S.Paulo, O Globo) sabe do que se trata, mas os donos dos jornais são sócios do sistema e ganham dinheiro com isso, não querem alterar a situação e, principalmente, a política fiscal e monetária.

IHU – No livro, o senhor também aborda as ilusões da economia brasileira no tratamento de questões como desemprego, estagnação econômica, taxas de juros, inflação, dívida pública, gestão de crédito, política monetária, pacto federativo e sistema financeiro. Qual é a raiz da ilusão no tratamento desses problemas?

José Carlos de Assis – Tudo isso começa e termina na questão fiscal e monetária. Na questão tributária é onde aparece a questão da renda, e o instrumento da concentração de renda, como disse, é a política fiscal e monetária, porque é através delas, com os subsídios fiscais para os ricos, que se privilegiam setores da economia. Sem subsídio eles não funcionam e, com isso, a distribuição e a concentração de renda são afetadas. Já a política monetária, através do BC, é uma forma direta de concentração de renda a favor dos ricos, pelas taxas de juros elevadas. Como se enfrentar isso? Voltamos ao começo: poderíamos ter uma boa contribuição se o presidente do Banco Central estivesse alinhado com políticas progressistas. Mas não temos um presidente de BC assim.

Os governos Temer e Bolsonaro criaram três travas na economia para impedir nosso desenvolvimento. Aliás, tem uma trava que foi instituída já na Constituição de 1988, segundo a qual, se tiver sobra orçamentária em algum item do orçamento, não se pode usar essa sobra para financiar o setor produtivo, porque tem que aplicar na dívida pública, a fim de reduzi-la. Isso é um absurdo porque a dívida pública não atrapalha ninguém se ela estiver sendo bem gerenciada. Mas os três entraves gerados pelos governos Temer e Bolsonaro são:

1) Superávit primário. Para que fazer superávit primário? Superávit é gastar menos do que se arrecada, ou seja, arrecadar mais do que gastar. Para quê? De novo, para aplicar o dinheiro do superávit no pagamento da dívida pública? É uma insensatez.

2) A outra trava é a própria ideia do equilíbrio fiscal, isto é, forçar o governo a só gastar o que se arrecada. Mais uma vez: para quê? Para evitar o crescimento da dívida pública? Mas há países, como Japão (226%) e Itália (145%) que tem uma dívida pública em relação ao PIB muito maior do que 100%, e estão funcionando muito bem. Quaisquer outros países da Europa têm altas dívidas públicas. Não tem sentido usar o superávit para pagar a dívida pública porque ela não incomoda ninguém, a não ser que a dívida pública do país seja em moeda estrangeira. Não é o nosso caso; nossa dívida é em moeda nacional. Assim, deveríamos usar nosso superávit fiscal para financiar projetos públicos responsáveis, e autossustentáveis. Isso não provoca inflação.

3) Instituição do teto de gastos. Sobre isso já se discutiu bastante e essa não é uma questão técnica, é uma questão de imbecilidade. Trata-se de comprometer, durante vinte anos, a estagnação econômica brasileira. Não faz nenhum sentido.

Essas são travas criadas pelos governos anteriores ultraneoliberais para não deixar que a economia brasileira fosse retomada. Com essas condições, na verdade, os governos Temer e Bolsonaro, travaram a economia brasileira independentemente de quem fosse eleito presidente da República. Atuaram claramente em uma perspectiva de que o partido da oposição provavelmente ganharia as eleições de 2022. Lula poderia ter vencido antes se a Lava Jato, que foi uma conspiração da direita, não tivesse impedido sua eleição. Mas o que a direita brasileira teme, desde FHC, é que os progressistas voltem ao poder. É uma situação que se prolonga ao longo da história. Por isso digo que não é uma questão que vai ser resolvida tecnicamente. Tecnicamente, basta juntar meia dúzia de economistas e resolvemos todos os problemas econômicos brasileiros de uma tacada. Mas o problema não é técnico, é político.

IHU – Alguns teóricos, como o sociólogo Boaventura de Sousa Santos e Pablo Stefanoni, jornalista e historiador, entre outros, têm chamado a atenção para o fato de que a política se transformou em um espetáculo onde só há ideologias, não há ideias. Além disso, há uma confusão de tal modo que está difícil distinguir o que vem a ser claramente um projeto de desenvolvimento de esquerda e de direita. O senhor concorda com esse diagnóstico? Se sim, qual é o impacto dessa política ideológica na economia brasileira?

José Carlos de Assis – Eu concordo porque essa é uma crise da democracia. No século XIX, as coisas eram muito simples: na sociedade, por um lado, tinha o movimento operário e, por outro lado, a burguesia, que, em geral, estava associada ao governo a pretexto de garantir estabilidade social. Isso prevaleceu no século XIX, mas a sociedade começou a tornar-se cada vez mais complexa. Hoje em dia – vou dizer uma coisa que é bastante antipática –, uma das coisas que prejudicam são os movimentos identitários, porque eles espalham a demanda em vez de concentrar a demanda em questões essenciais. É claro que o movimento dos negros, o movimento das mulheres e o movimento gay, para ficar só nesses exemplos, têm ampla razão, numa democracia, de reivindicarem seus direitos, mas esses movimentos identitários deveriam se integrar no movimento geral da sociedade para defender a própria democracia e uma economia mais justa. Não vejo que o movimento das mulheres ou dos negros tenha que ser algo exclusivo deles. Deve implicar a integração das mulheres e dos negros no movimento geral da sociedade por justiça social. Essa é uma questão complicada, pois hoje existem muitos movimentos sociais, nacionais. O nazismo está crescendo muito porque é um aspecto degenerado do movimento identitário. Isso prejudica a mobilização social centralizada em determinados aspectos essenciais para a mudança da sociedade.

Concordo com essas personalidades que você cita, dizendo que as coisas se tornaram muito complexas. É muito difícil governar hoje. Tome como exemplo a organização do governo Lula: 37 ministérios! Você acha que com 37 ministérios se governa alguma coisa? Agora, o presidente é obrigado a fazer isso porque do contrário não tem base política. A única forma de seu governo se salvar é pelo sucesso. Por isso estou preocupado com a questão da demanda alimentar. Se Lula colocar comida na mesa do brasileiro, como ele prometeu, pelo menos desse lado ele se salva. Mas se houver um fracasso nessa área, fragmentará muito a sociedade e ele perderá totalmente o controle da governabilidade do país. Marx dizia que quando há conflito, a solução é dialética e se resolve o conflito com um pacto num nível superior, uma síntese, de um modo que atenda, de alguma forma, os dois lados.

Síntese

A dificuldade é fazer uma síntese histórica e ir para frente. Este é o problema. Por isso foi importante, no pós-guerra, os movimentos sociais e políticos do norte da Europa. Foi uma pena que poucos países aderiram a esses movimentos: os americanos recuaram para uma economia centrada nos interesses da burguesia, enquanto os países do norte da Europa – Noruega, Suécia e Dinamarca – evoluíram para situações em que articularam interesses do patronado e interesses da classe trabalhadora. Fizeram uma síntese fantástica. Se esse modelo tivesse sido disseminado pelo restante do mundo, as coisas estariam resolvidas. Mas não foi. Os americanos fizeram uma economia radicalmente favorável ao capital e depois se tornaram piores ainda com o neoliberalismo. A Europa fez a mesma coisa: boa parte da Europa foi atrás dos EUA e está nisso até hoje. Estamos cada vez mais longe de uma síntese. Iniciativas no plano das ideias nós temos. Essa do Papa Francisco para uma nova economia é muito boa. Já está na hora de fazermos iniciativas mais amplas.

Convenção sul-americana

Eu disse para o [Luiz Gonzaga] Belluzzo que deveríamos tentar fazer uma grande convenção sul-americana ou latino-americana de economistas e políticos para discutir, especificamente, as questões monetária, fiscal e tributária. Se fizéssemos uma coisa desse tipo e controlássemos minimamente a agenda, a grande imprensa não teria como ignorar. Na época em que conversei com ele, estávamos no governo Bolsonaro, mas agora que estamos com Lula, gostaria de voltar a esse assunto, porque ele é conselheiro do Lula, para ver se o tema, tratado internacionalmente, tem algum impacto no Congresso.

Uma convenção também poderia ter uma influência no movimento de massa e uma influência nas próximas eleições – espero que esse Congresso não se repita. Esses parlamentares só se envolvem com dinheiro público e eles dificilmente o terão [no governo Lula].

[Arthur] Lira disse que Lula não tem base para aprovar projetos. Precisa negociar com o Congresso. Sei como ele operou, como líder do Centrão, no governo Bolsonaro, com o orçamento secreto manipulado junto com a Casa Civil e com empresários da construção civil. Quando ele diz que Lula precisa negociar com o Congresso, me pergunto o que significa negociar. Para a opinião pública, negociar significa conversar, entrar em acordo. Mas a realidade não é essa. É : “Eu quero o projeto X do qual possa tirar 10%, 20%, 30%”. Isso é negociar para o Congresso Nacional.

[Carlos] Lacerda, que foi governador da Guanabara – uma figura muito controversa porque atacou Getúlio, a criação da Petrobras e outras iniciativas nacionalistas importantes –, era absolutamente rigoroso na questão do interesse público. Acabei de escrever um livro-entrevista sobre ele, a partir de uma entrevista com o principal assessor dele, o ex-ministro Raphael de Almeida Magalhães. É uma entrevista fascinante sobre o que é governar com planejamento e articulação. Sabe como ele fazia? Se tinha um projeto importante para passar e se os políticos ameaçavam vetá-lo, ele ia para a rádio e a televisão e esculhambava com a pessoa de uma forma tão agressiva que acabava com a possibilidade de o político, em qualquer época, ser reeleito. E assim, os parlamentares votavam a favor dos projetos. Não sei se Lula teria coragem de fazer isso, até porque, considerando o tamanho da direita no Congresso hoje, é mais complicado levar isso na base da pressão da opinião pública ou simplesmente pelo discurso e a retórica. Mas essa era a forma como o Lacerda fazia.

IHU – No livro “Depoimento”, Lacerda concedeu uma longuíssima entrevista, explicando suas atitudes, mudanças de posições políticas. Como analisa a figura dele, tão controversa, no percurso de desenvolvimento do Brasil?

José Carlos de Assis – Há dois Lacerdas: o político e o administrador. O meu livro é baseado no Lacerda administrador. Como administrador, ele é fascinante. Como político, o que aconteceu é que ele era social-democrata, tipo social-democrata do Norte da Europa, odiado pelos comunistas, porque os comunistas achavam que a social-democracia traía os ideais marxistas, quando, na verdade, ela fazia uma síntese dos ideais marxistas. Mas como Lacerda tinha uma retórica muito forte, ele atacava, e os comunistas tinham ódio do Lacerda e contra-atacavam. Por isso ele ficou com essa imagem controversa de conspirador contra presidentes da República. Tudo isso é verdade, ele fez isso mesmo e era um golpista. Isso é inequívoco. Agora, ele criou, na Guanabara, um padrão de excelência administrativa que jamais foi repetido.

O que aconteceu em seguida foi a degradação completa dos governos da Guanabara ao ponto de os cinco ex-governadores do Rio de Janeiro terem passado – ou ainda estão – na prisão. Resolvi escrever esse livro sobretudo para dar um padrão de comparação, para mostrar o que era o ideal de um político com compromisso social-democrático. Ele não usou o termo social-democrata porque à época o conceito de social-democracia ainda não estava bem estabelecido. Ele acabou se aproximando muito dos EUA, mas era, na prática, um socialista. O governo dele estava fundado na educação, na saúde, no saneamento básico, nos transportes. Tudo prioridade pública. Lacerda inaugurou uma escola por dia, fez Guandu, o maior programa de saneamento do Brasil, jamais feito por qualquer outra administração, estadual ou federal. Não reconhecer isso é um absurdo.

Recordo tudo isso para dizer que, quando se tem um projeto para valer – e ele tinha e era reconhecido –, é possível fazer algo. O azar foi que ele participou do golpe de 64, acreditando que os militares devolveriam a ele, pessoalmente, o poder. Depois ele rompeu com os militares e ajudou na reconstrução democrática, tendo morrido antes de vê-la introduzida no país.

IHU – O presidente Lula também é uma figura aclamada, criticada, controversa, para alguns. Como o senhor analisa a figura dele neste contexto de pensar um projeto de país?

José Carlos de Assis – Ele tem que ser pragmático porque, se for principista, se resolver governar segundo princípios, não governa porque vai até determinado ponto e ultrapassa os limites e não consegue fazer mais nada. A esquerda, por exemplo, é principista. Leio artigos sobre o governo Lula e vejo muito principismo. Alguns dizem que tem que prender todos os generais. Não é bem assim. Tem que fazer as coisas com moderação. Tem que contemporizar, infelizmente, também na economia.

O presidente está tentando fazer as coisas moderadamente, mas vai ter um embate porque ele é cercado por um grupo de economistas inclinados para o lado conservador e tem economistas que estão ligados à linha das Finanças Funcionais. Esses grupos não são fáceis de ser conciliados, até porque são contraditórios e aí prevalece a dialética. Enquanto não ocorrer uma síntese, não se chegará a uma solução. Geralmente, a síntese acontece no plano das ideias e o plano das ideias não antecede a realidade. Primeiro é a realidade; depois a ideia.

IHU – Um dos novos fenômenos do mundo complexificado, que o senhor mencionou anteriormente, é o novo regime climático, que precisa ser considerado nas propostas de desenvolvimento e projetos de país, visando a justiça socioambiental e a transição energética. Como o senhor tem refletido sobre um projeto de desenvolvimento para o Brasil neste novo contexto?

José Carlos de Assis – Isso no Brasil está praticamente resolvido, sobretudo com a eleição do Lula. Acho que ele vai se dedicar a essas questões profundamente e tem apoio internacional para isso. No Brasil, conseguiremos resolver o problema do florestamento e reflorestamento na Amazônia, mas conciliar isso com o que está acontecendo no restante do mundo será muito difícil.

O problema obviamente é resto do mundo, porque a questão climática é uma questão mundial e não uma questão brasileira. Aí a situação é pior por causa da guerra. Os russos já estavam reticentes a entrar em acordo (COP 26) e a integração deles no acordo climático é importante. Agora, com a guerra na Ucrânia, a situação será pior ainda. O estúpido bloqueio [do gás] russo torna os países europeus altamente dependentes da exportação de petróleo. Não tem como, por aí, baixar significativamente a emissão de CO2. A guerra na Ucrânia, aparentemente, vai se estender por muito tempo. Então, não vejo uma solução o encaminhamento de uma solução para a questão climática a curto prazo.

Os marcos de 2030 e 2050 da ONU para redução do efeito estufa provavelmente não serão cumpridos, e se o marco de 2050 não for cumprido, o planeta Terra estará comprometido. Já estamos passando por situações extremas e vivemos isto diariamente. A primavera e o verão marcaram tragédias ambientais muito grandes, e de agora para frente serão cada vez piores. Ficaremos fazendo remendos, correndo atrás do prejuízo. É uma perspectiva trágica para a humanidade.

IHU – Quais suas expectativas em relação à reconstrução do Brasil, especificamente na questão econômica e social, no terceiro governo Lula?

José Carlos de Assis – Vou ser chato, mas vou voltar ao ponto: tudo depende da questão fiscal e monetária, da questão da distribuição da renda e do sistema tributário. Lula terá que ser pragmático, e a esquerda do PT vai ter que entender isso. Ele não vai poder fazer um governo de anjos. Vai precisar negociar no sentido do Lira e, se tiver que gastar um milhão ou dois milhões para corromper alguns parlamentares, que faça isso e salve boa parte da política econômica séria.

Se quiser fazer um governo de anjos, ele não governará. Estou falando isso de modo muito realista. Lula sabe fazer isso. Ele é um sindicalista. Negociou a vida toda e fez os dois primeiros governos na base da negociação, embora ele não tenha nada de corrupto pessoalmente. A Lava Jato foi imputada a ele de forma completamente cínica para evitar sua terceira eleição à época. De fato, o Le Monde, da França, reproduzido pelo The New York Times, dos EUA, explicou que a Lava Jato foi uma guerra híbrida contra o Brasil para evitar a terceira eleição do Lula.

Governo pragmático

Ele terá que fazer um governo pragmático se quiser governar, e nós precisaremos ser tolerantes em relação a isso. Agora, pode ter conflitos insolúveis e, em todo caso, o importante é o movimento de massa. Queria ver as centrais sindicais se levantarem, convocarem os movimentos identitários, juntar todo mundo em torno de um projeto nacional. Tem que primeiro entender isso. Entendendo, as coisas ficam facilitadas, porque forma-se um consenso.

IHU – O senhor sugere uma teoria monetária moderna para reorganizar a economia internacional. Em que consiste essa proposta?

José Carlos de Assis – A teoria monetária moderna se baseia na questão fiscal monetária. Sintetizando muito, é o seguinte: o governo pode ter déficit – isto é, liberar dinheiro para financiamentos de projetos concretos sem cobertura de receita fiscal, e sem correr o risco de inflação. A condição é que o financiamento resultante do déficit público seja for aplicado em projetos bem articulados e responsáveis de curto, assim como de médio e longo prazo. É uma articulação entre planejamento e execução. A essência da teoria monetária moderna é essa. A sua justificação teórica é complexa e não precisa ser explicada aqui. Mas a essência prática dela é que pode ter déficit, sim.

Em segundo lugar, não precisa pagar a dívida pública porque, se ela estiver sendo financiada a juros baixos, o Banco Central pode manipular a taxa de juros para financiar o impacto dela na distribuição e concentração de renda; não tem problema nenhum. Então, não precisa ficar com a obsessão de fazer superávit primário, de não furar o teto de gastos, de reduzir a dívida pública. Isso tudo é bobagem do ponto de vista técnico. É uma manipulação política para manter a economia atada ao sistema financeiro.

Os financistas vão alegar que, se o país tiver uma dívida pública alta, essa situação põe em risco a estabilidade financeira do país. Mas por que interessa a eles a dívida pública alta? Porque são eles que manipulam os papéis da dívida pública. Eles é que recebem e operam a dívida pública com taxas altíssimas sem fazer nada, sem produzir, ganhando 13,75% de taxa base ao ano sem nenhuma contrapartida de produção. Isso é o fim da picada porque é só para concentrar renda, com deslocamento da renda real para a renda financeira. Estrangula o país, como está estrangulando. Nós estamos sendo estrangulados, literalmente.

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