26 Abril 2023
Pablo Servigne (Versalhes, 1978) é uma voz atípica, dessas que devem sempre ser ouvidas e lidas com atenção, ainda mais em um mundo com uma perigosa tendência ao pensamento único. Agrônomo, doutor em Biologia e escritor, publicou, junto de Raphaël Stevens, o livro Colapsología (Arpa, 2020), que já foi traduzido para seis idiomas e que vendeu cerca de 120.000 exemplares só entre França, Bélgica e Suíça.
Recentemente, pela mesma editora, foi traduzido e publicado o seu segundo livro, Otro fin del mundo es posible, que já ultrapassa 85.000 cópias, e ao qual se se junta Gauthier Chapelle, também doutor em Biologia e engenheiro. Esta segunda obra, que pertence a uma trilogia que se completa com uma ode ao apoio mútuo, aborda as dimensões mais psicológicas e culturais do desafio que nossa civilização enfrenta: a encruzilhada entre uma mudança climática que está à beira do descontrole e o choque com os limites de muitos recursos-chave.
Entrevistei Servigne virtualmente. Respondeu em um espanhol mais do que decente – sua mãe é colombiana – sempre que lhe foi possível.
A entrevista é de Juan Bordera, publicada por La Marea, 24-04-2023. A tradução é do Cepat.
Em “Outro fim do mundo é possível”, há um alerta: “Nesses tempos de incerteza, a voz dos cientistas é cada vez mais importante”. Não posso começar de outra forma a não ser perguntando: como você vê a prisão de cientistas por alertarem sobre o desafio que temos pela frente? Considera que chegou o momento para que a comunidade científica dê um passo além?
Sim, tenho um amigo que trabalha no IPCC e me diz que está havendo um pequeno cisma na comunidade científica. Ele me conta que não consegue mais conviver com a frustração de não poder dizer o que sente, a verdade. De fato, ingressou no [coletivo] Scientist Rebellion (Rebelião Científica, o movimento que na Espanha, nesse momento, está iniciando seu processo judicial por uma ação no Congresso dos Deputados).
Está ocorrendo uma mudança de tendência para a aceitação da desobediência civil. Estamos vendo muitos climatologistas de prestígio agirem ou darem declarações a seu favor. Contudo, o cisma persiste tanto na comunidade científica quanto na sociedade.
O cisma entre, digamos, os mais otimistas e os mais pessimistas, na verdade, é um falso debate. Preferimos falar de quatro categorias. Entre os otimistas, há outra bifurcação, há os que dizem: “Podemos conseguir”, e fazem tudo o que está ao seu alcance. Esses seriam os otimistas positivos e essa é a posição saudável e eficaz. Nós precisamos deles. Mas, depois, temos os otimistas negativos, aqueles que só querem ouvir boas notícias, silenciam qualquer crítica e normalmente não fazem muito pela causa. Esta posição é provavelmente a mais prejudicial, a responsável por varrer os problemas para debaixo do tapete.
Do outro lado, acontece algo semelhante. Temos os pessimistas positivos, aqueles que dizem: “As coisas parecem ruins, mas devemos fazer tudo o que pudermos”. Estes costumam ser muito mais habilidosos do que qualquer outra pessoa, quando se trata de detectar os problemas. E, finalmente, temos aquele que qualquer otimista detesta, e com razão: o pessimista negativo. É aquele que, com a desculpa de que tudo está perdido, nada faz. Este tipo pode chegar a ser insuportável.
Precisamos tanto dos otimistas quanto dos pessimistas positivos, aqueles que independente do que pensam, buscam agir e atuam. No fundo, sem que percebam, às vezes, complementam-se.
Embora as sufragistas tenham sido muito mais ousadas, e ainda haja margem, é verdade que a implementação e diversificação de táticas, grupos e, sobretudo, objetivos estão aumentando: campos de golfe, megabacias, paralisar aeroportos com bicicletas, murchar pneus de SUVs, causar impactos em edifícios políticos e de poder, quadros em museus etc. Qual é a sua opinião?
Fico encantado, são necessárias. Quando a violência é estrutural e está invisibilizada, então, surge espontaneamente uma resposta que, respeitando os limites, é legítima defesa. Quando as inércias de um sistema desenfreado atentam contra as pessoas que você ama, contra o que te sustenta com vida e em equilíbrio, você tem que responder. É aquela frase de John Seed: “Não estamos defendendo a natureza, somos a natureza se defendendo”. Essa mudança de perspectiva é crucial. Destruir uma floresta a esta altura é destruir uma parte crucial de nós mesmos.
Quase diria que estou surpreso com a suavidade das ações. É tudo muito simbólico. Na América Latina, você já sabe o que acontece com muitos ambientalistas, defensores da Terra: um tiro na cabeça. Vejo os próximos anos com um aumento substancial dessas lutas, talvez violentas, caso o poder não escute. Na França, as autoridades já falam de ecoterrorismo nas lutas contra as megabacias. Com as secas que estamos vivendo, a água é para quem? É o capitalismo contra os bens comuns.
Em relação ao tema energético, na França, recentemente, também ocorreram greves nas refinarias.
Sim, já contamos no primeiro livro [que inspirou a série francesa O Colapso]: se as refinarias pararem, para tudo. No quarto dia, estavam parando de fazer cirurgias, e no quinto os militares já chegaram para restaurar a ordem. A greve provocou tremores, como em um viciado em drogas, porque no fundo isto é o sistema que construímos. Temos um vício fóssil.
Este vício tem dois extremos perigosos: por um lado, pelo excesso, a overdose, que causa o problema de saturar a estabilidade climática; e do outro, pela falta, a abstinência. Se o uso de combustíveis fósseis fosse interrompido de forma rápida e bruta, nossa sociedade se desmoronaria rapidamente. O caminho que ainda podemos percorrer para ir nos livrando da droga sem causar grandes problemas é estreito.
Nesse sentido, houve algumas declarações carregadas de “subtexto” do presidente Macron, quando se referiu ao fato de termos chegado ao “fim da abundância”.
Sim, é horrível dizer isso quando o que se quer dizer é que as condições de vida vão ficar mais duras, mas não para todo mundo, claro. Você diz isso quando vai aumentar a idade da aposentadoria, cortar direitos, mas e quanto aos ricos?
É preciso entender que, em todo caso, na França somos ricos. Até mesmo as camadas menos favorecidas, quando comparado ao nível de vida de muitos outros países. Gostei muito de um slogan usado pelos coletes amarelos: “Migalhas? Sim, mas para todos”.
Afinal, será cada vez mais necessário falar de racionamentos (já estamos vendo isso com a água), de estabelecer mínimos vitais para todos e limites aos quais, por seu poder econômico, jamais colocarão a si mesmos.
Qual a sua opinião em relação a estarem normalizando a palavra decrescimento, no debate? É utilizada por Gustavo Petro, Alberto Garzón, IPCC…
Sim, é muito bom. Em Barcelona, você tem um grupo muito poderoso que trabalha sobre o tema. É importante, simbolicamente, embora talvez chegue um pouco tarde. A crítica que eu faria ao termo é que está muito centrado no econômico. Precisamos de um crescimento dos vínculos, da saúde e de tantas outras coisas. No fundo, nessa batalha semântica, são necessários diferentes termos, conforme os contextos.
Sim, é curioso. Aqui, na Espanha, começa-se a ouvir críticas a tudo o que incorpora a palavra “colapso”. Confundindo ou misturando deliberadamente o que vocês defendem (o estudo dos diferentes colapsos anteriores, não os negar e aprender deles na medida do possível) a partir do que passaram a chamar de “colapsismo”, um termo mais pejorativo relacionado ao pessimismo.
O colapso é uma história muito poderosa. É um mito. Mas que, assim como a morte, ocultamos em nossa sociedade o máximo possível. E você já sabe, tudo o que você oculta acaba emergindo, normalmente, com formas mais perversas, e é por isso que essas pessoas estão apenas parcialmente certas. Em 60 anos de ecologia política, o colapso ou a colapsologia foi a palavra que – na França – mais conseguiu gerar afetos, mobilização e até produção cultural. Mas é apenas a metade da história.
Em quase todas as civilizações existiram mitos relacionados ao colapso ou ao fim do mundo, mas costumam vir acompanhados por histórias de renascimento, e é precisamente essa a parte que nos falta. É preciso inventar essa parte. Você não consegue imaginar o número de pessoas que nos escrevem agradecendo por termos dado um sentido a algo que não compreendiam, e que adaptaram suas vidas a estilos mais coerentes.
O medo é uma emoção que provoca ação, desde que não seja tão grande que cause bloqueio. Há quem diz que o medo só serve para uma partida rápida. Bem, essa é justamente a situação que temos pela frente. Contudo, não podemos ter medo do medo, pois isso é muito pior do que enfrentá-lo e acaba levando cada vez mais a uma sociedade de controle. Eu acredito que a possibilidade de colapso, que tantos cientistas já reconhecem que está aí, é motivadora se bem trabalhada emocionalmente.
Considera que esse “medo do medo” tem a ver com a ascensão da extrema-direita na Europa, em contraste com os projetos mais ou menos de esquerda que estão ganhando espaço na América Latina?
Sim, bem, já sabe que sou um tanto cético em relação a muitos projetos de esquerda. Diante desses projetos, tenho 50% de esperança e 50% de vigilância. Mas, sim, a extrema-direita chega quando buscamos segurança e conforto acima de tudo, custe o que custar, e temos que descartar seja quem for. Na Europa, estamos um pouco apagados e… somos velhos [risos]. Sim, de verdade, somos velhos! E isso se nota também.
Os velhos costumam cair mais na armadilha de buscar ordem e segurança a todo custo. E, no fundo, quando muitos problemas se juntam, tende-se a buscar esse “retorno do pai”, essa figura autoritária que reconduza, quando justamente é uma grande parte do problema. Na natureza, a organização de forma vertical é a menos eficiente, e não é por acaso.
A distopia, tão comum no imaginário coletivo, seria uma espécie de resposta a essa negação do problema, como ocorre nas fases do luto?
Nunca tinha visto por esse ângulo. Para mim, a distopia é, ao mesmo tempo, um espelho distorcido dos defeitos da nossa sociedade e uma forma de fomentar a mudança nos fazendo sentir medo. O grande número de filmes pós-apocalípticos dos últimos anos é, na minha opinião, um indício de que temos que aprender a pensar no fim, na morte. É um ponto cego em nossa psique coletiva, que vem à luz com formas, às vezes, monstruosas porque não é bem trabalhado.
Você participou de um documentário muito interessante – “Once You Know” (2020) - junto com outras vozes como Richard Heinberg, Susanne Moser e Jean-Marc Jancovici.
Várias pessoas tinham proposto que fizéssemos um documentário sobre o tema do colapso, mas quando veio essa proposta a vimos com clareza. Sua abordagem ao tema é muito semelhante ao que fazemos neste livro. O colapso é um pouco como o mito de Medusa: você tem que olhar, para evitar, mas de canto. Caso contrário, você queima (ou vira pedra). E Emmanuel Capellin fez um filme muito equilibrado, com ação e reflexão.
Sem nos conhecermos, trabalhávamos as mesmas questões a partir de um ponto de vista muito semelhante: a falta de conexão no Ocidente com o nosso interior, especialmente nos homens, que desde pequenos somos ensinados a não sentir, a mutilar nossas respostas emocionais, uma herança da fábrica de soldados.
As poucas emoções que eram permitidas tinham a ver com a ira, com a cólera, gerando um sentimento de vazio e desconexão consigo mesmo e com a natureza. Esse é um dos pontos centrais tanto do documentário quanto do livro: a diferença entre sobreviver e realmente viver, como voltar a sentir e reconectar, criar vínculos entre humanos e também com os não-humanos, porque sem essa mudança, o resto é quase impossível.
Lançamos o livro antes porque o processo editorial é mais rápido, mas a conexão entre as duas obras é evidente e ocorreu ao mesmo tempo. Agora, somos vizinhos [risos].
Por que a ciência pós-normal pode ser útil para estudar a transição energética e os possíveis colapsos?
No laboratório, quando os parâmetros estão controlados, é fácil para os cientistas/engenheiros resolverem os problemas técnicos. Um problema leva a uma solução. Contudo, quando o problema está fora do laboratório, por exemplo, um projeto paisagístico, então, o nível de dificuldade aumenta: a complexidade, o que está em jogo na política etc. Então, é impossível fazer “ciência normal”.
Por exemplo, não existe uma solução científica para a mudança climática: ao mesmo tempo, é necessário assumir compromissos e escolhas políticas e culturais para evitar que a situação piore. Esses tipos de hiperproblemas (ou grandes objetivos, ou problemas perversos etc.) são reconhecidos pelo fato de que as soluções técnicas propostas costumam piorar a situação.
Alguns teóricos desenvolveram uma “ciência pós-normal”, feita da complexidade e da intervenção de toda a sociedade civil... e, portanto, abandonam a fantasia da sacrossanta objetividade científica. Portanto, a palavra “solução” não é mais a melhor para descrever o que poderia resultar dessas trocas.
Um fantástico estudo de Oreskes, Brysse e outros analisa os perigos da moderação na comunidade científica, e como isso é comum: escolher sistematicamente o lado menos dramático. E a sociedade? Podemos fazer alguma coisa para despertá-la da letargia?
Essa é uma excelente pergunta, que está se tornando cada vez mais central. Pessoalmente, acredito que não estamos tão assustados quanto deveríamos, considerando o que está em jogo e os riscos envolvidos. Há 15 anos, alerto como um bombeiro que avista um incêndio. Por isso, parece-me perigoso diminuir a gravidade dos riscos nos discursos.
Para mim, é uma forma de mentir para as pessoas... e de mentir para nós mesmos. Para pensar, é muito pior ser muito otimista do que ser muito pessimista: se você diz que tudo vai ficar bem e a catástrofe realmente ocorre, perderemos tudo! Se você diz que é muito grave e, finalmente, não ocorre, ou então o alerta é bem-sucedido, ou nada acontece, o que se perde sempre será menor do que no outro cenário.
Não sei se você conhece a palavra pluriverso, que é um conceito derivado das ideias de decrescimento que explica que existem diferentes receitas, possíveis respostas, segundo os diferentes contextos. Aceitar isto será melhor do que sempre brigar para saber quem tem a razão?
Sim, é por aí que temos que ir: um mundo plural, um mosaico de formas de ver o mundo. Temos muito a aprender em termos de sabedoria de certos povos não ocidentais, alguns dos quais já passaram por colapsos e aprenderam a viver em equilíbrio com a Terra.
A pluriversidade é uma resposta lógica à dominação do Ocidente durante cinco séculos, ao lado totalitário do universal, que queria apagar todas as outras culturas do mundo. É uma resposta decolonial e saudável porque cria diversidade. Acredito que devemos estar sempre atentos a cultivar a diversidade porque é a única forma de encontrar caminhos em um ambiente em mudança. É um princípio de vida. Onde a diversidade se extingue (pela monocultura, que também pode ser cultural), aparece a morte.
Alianças estratégicas com movimentos sociais, setores sindicais etc. Em conflitos trabalhistas como as greves nas refinarias francesas, você vê o germe de um possível despertar da população ou mesmo de uma revolta?
Sim, com cada movimento social, com cada catástrofe (incêndios, secas, inundações, guerras, pandemias etc.), há uma tomada de consciência. Mas, para mim, a verdadeira consciência vem em uma fase posterior, quando percebemos que todas as crises estão interligadas, que não faz sentido priorizá-las e que se trata de um problema sistêmico. É quando, então, realmente, algo transformador pode acontecer.
A questão nuclear francesa. Parece que volta a ocorrer um pequeno ressurgimento.
Esta é uma verdadeira tragédia. A escolha francesa pela energia nuclear é uma opção lógica, quando se pensa a curto prazo e com um cérebro técnico… do século passado! Quando se pensa a longo prazo, com toda a complexidade do mundo, então, a nuclear é uma opção desastrosa.
Na França, apostamos na energia nuclear com o argumento do clima (argumento que não é defensável), sem percebermos que estamos tornando nosso futuro muito mais arriscado. Penso que em termos de energia, o caminho a seguir não é buscar a sobriedade, mas se desvencilhar o máximo possível. Devemos reduzir drasticamente nosso consumo, aprender a viver com menos, muito menos. Somos viciados em energia e a retirada será difícil, mas a alternativa não é melhor, então, temos que fazer isto.
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“Há uma mudança de tendência para a aceitação da desobediência civil”. Entrevista com Pablo Servigne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU