29 Março 2023
A InfoAmazônia ouviu a antropóloga Manuela Carneiro Cunha sobre o projeto do governo do estado de Roraima que está introduzindo sementes transgênicas e agrotóxicos em território indígena no estado.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazônia, 24-03-2023.
“Os povos indígenas da Amazônia conservam a agrobiodiversidade, um tipo de agricultura dentro da floresta que favorece o policultivo, não o monocultivo. O valor da beleza de uma roça em vários povos indígenas é a quantidade de variedades de cada planta cultivada”. A afirmação é da antropóloga luso-brasileira, Manuela Carneiro da Cunha, referência em estudos sobre etnologia e antropologia histórica dos povos indígenas e autora de livros premiados.
Manuela conversou com a reportagem da InfoAmazonia sobre as iniciativas que tentam alterar a agricultura dentro dos territórios para atender demandas do agronegócio, como o projeto de grãos do governador de Roraima, Antônio Denarium, que já levou milhões de sementes transgênicas e agrotóxicos para dentro dos territórios.
Manuela lembra que o discurso que tenta transformar o modo de vida dos povos indígenas não é nada novo. Na verdade, ele remonta o final do século 19, quando passou-se a utilizar deste expediente para burlar os direitos dos indígenas sobre suas terras: negar-lhes sua identidade. Também conhecido como discurso de assimilação.
Da criação do primeiro órgão oficial indigenista o Serviço de Proteção do Índio (SPI), em 1910 após massacre dos índios Xokleng, passando por sua substituição pela Funai em 1964, até a constituição vigente, o Estado atuou ao mesmo tempo sob a premissa de proteger, mas também assimilar os povos indígenas à sociedade nacional. “Supostamente esses órgãos existiam para o bem dos indígenas, tinham essa missão”, explica Manuela.
A Constituição de 1988 colocou o discurso à margem e fortaleceu direitos e garantias dos povos indígenas sobre seus territórios.
Bolsonaro foi o primeiro presidente, pós-Constituição de 1988, que negou declaradamente os direitos dos povos indígenas praticando o mesmo discurso civilizatório.
“Desde a [primeira] lei de terras, sempre foi uma questão de se apropriar dos territórios indígenas”, afirma Manuela. “Todos queriam transformar os indígenas, a igreja, os colonos, todos queriam transformá-los e trazê-los supostamente para uma vida mais civil, como se eles não tivessem suas próprias organizações políticas e sociais”.
Segundo a pesquisadora, o modelo baseado na monocultura em larga escala, “que privilegia quantidade e não variedade”, com uso de agrotóxicos e fertilizantes, se provou ineficiente porque “não se trata de quantidade, mas de acesso à comida”.
“Essa revolução verde [modernização da agricultura em escala global] aumentou a produção agrícola, sim, mas às custas de uma diversidade que está ameaçada. Hoje, a grande diversidade de arroz que existia na Índia sofreu baixas, a mesma situação ocorre com as variedades de sementes de milho no México. Ao se desprezar o ambiente e o clima se perderam muitas variedades de alimentos importantíssimos. É uma questão de sobrevivência. Através da diversidade de espécies que têm chances de se adaptarem a mudanças de tempo e clima é que vamos conseguir manter essa diversidade, e quem faz isso de forma tradicional e com valor da diversidade presente como valor de beleza são as populações tradicionais”.
Recentemente, a crise humanitária dos povos Yanomami e que repercutiu mundialmente revelou a falta de alimento disponível para os indígenas por conta da expansão do garimpo de ouro, que poluiu os rios e confinou os povos a áreas reduzidas do território, sem acesso à caça, pesca e coleta de alimentos. Estima-se que centenas de indígenas tenham morrido por causas evitáveis, incluindo desnutrição.
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“A beleza do roçado indígena está na diversidade”, afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU