“A guerra dos Estados Unidos contra o terrorismo foi uma guerra estúpida”. Entrevista com Vijay Prashad

Fonte: Public Domain Archive

21 Setembro 2022

 

Vijay Prashad é historiador e jornalista marxista da Índia. Dirige o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, é editor da LeftWord Books e membro não residente do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros, da Universidade Renmin, da China.

 

Prashad acaba de publicar em espanhol, com Noam Chomsky, o livro La retirada: Irak, Libia, Afganistán y la fragilidad del poder de EEUU (Capitán Swing), uma conversa entre os dois intelectuais a respeito da posição de Washington no mundo e uma forte crítica à sua política externa.

 

A entrevista é de Javier Biosca Azcoiti, publicada por El Diario, 17-09-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

A guerra contra o terror é um elemento constante em sua conversa com Chomsky. Os atentados do 11 de Setembro completam 21 anos. Qual é a sua análise desta política? Valeu a pena?

 

Tudo volta exatamente a essa pergunta. A que os Estados Unidos estavam reagindo? Todos estavam seguros de que a Al-Qaeda era a responsável pelos ataques, então, suponho que o objetivo seria a Al-Qaeda, sua liderança e os que estiveram diretamente envolvidos. Afinal, é uma questão criminal e, se cometo um crime, devo pagar por isso.

 

Temos provas dos próprios afegãos de que os membros do governo do Afeganistão na época, os talibãs, estavam contentes em se livrar de Osama bin Laden. Não tinham problema algum e ofereceram sua entrega sob duas condições: que os Estados Unidos enviassem provas e um processo internacional: existem regras e procedimentos de extradição. Por que tudo isto é suspenso de repente quando se trata dos Estados Unidos? A segunda condição era entregá-lo a outro país porque não teria um julgamento justo nos Estados Unidos. São solicitações normais que qualquer país poderia ter feito. Por exemplo, muitos estados não extraditam para países onde há risco de pena de morte.

 

Contudo, não era do interesse dos Estados Unidos. O governo de Bush tinha algo a demonstrar: “Vocês não podem fazer isso. Nós vamos golpeá-los duro”. E foi o que fizeram. Mas a quem golpearam? Na verdade, não golpearam muito a Al-Qaeda. Golpearam o governo do Afeganistão e o povo afegão, com 20 anos de sofrimento para o povo afegão. Enquanto isso, a maior parte da Al-Qaeda cruzou a fronteira para o Paquistão e desapareceu pelo mundo.

 

Valeu a pena? Não para o povo afegão. Certamente, não valeu a pena. Valeu a pena para os Estados Unidos? Não, foi uma aventura enormemente penosa que termina onde começa: com os talibãs no poder. E a Al-Qaeda se transformou em uma criatura muito diferente. Não foi, como Barack Obama a chamou, a “guerra boa”. Acredito que foi a “guerra estúpida”.

 

Poderia explicar a ideia que desenvolve no livro, quando compara a política externa dos Estados Unidos com a atitude de um mafioso?

 

A filosofia dos Estados Unidos é a seguinte: se não segue nossas regras, golpeamos você. Foi o que vimos na Líbia, onde a União Africana se ofereceu para mediar e altas autoridades do continente iriam em missão para conversar com Gaddafi. No entanto, os franceses e os estadunidenses simplesmente chegaram e atacaram. Não só fizeram o que a ONU havia autorizado, que era criar uma zona de exclusão aérea, como derrubaram o governo, o que é uma mudança de regime e não estava autorizado pela Resolução 1973 da ONU.

 

Os Estados Unidos podem fazer o que desejarem na política internacional e não existe ninguém que os desafie. O Tribunal Penal Internacional não se aplica aos Estados Unidos. Os tratados internacionais de guerra não se aplicam aos Estados Unidos... Mais de um milhão de pessoas mortas no Iraque, em uma guerra ilegal de agressão, e não há sequer uma frase que faça referência a uma investigação. O que aconteceu? Nada. Essa é a atitude do padrinho mafioso. Se você não concorda conosco, vamos bater em você e a polícia não nos dirá nada.

 

Alguém pagou o preço pelas entregas excepcionais [de pessoas acusadas de terrorismo]? De forma alguma. E pelos ataques com drones em outros países para assassinar até mesmo cidadãos estadunidenses? Estou pensando em Anwar al-Awlaki, no Iêmen, e em seu filho menor. Ninguém paga o preço. O mundo todo se preocupa com criminosos de guerra como Putin e Bashar al-Assad, mas não há sequer um pingo de questionamento à atitude dos Estados Unidos.

 

No livro, vocês também falam da fragilidade do poder dos Estados Unidos. Não avalia que a invasão russa da Ucrânia fortaleceu consideravelmente a OTAN e, consequentemente, os Estados Unidos?

 

Na última década e meia, os países europeus tinham iniciado uma lenta, mas firme integração com países como a China e a Rússia. A energia russa chegava à Europa, assim como os investimentos chineses. É verdade que a invasão da Ucrânia impulsionou uma espécie de atitude anti-Rússia, mas isso não é permanente. Não é permanente porque a Europa está presa em um leque de contradições, como a questão da energia. Os preços da energia vão disparar e já estamos assistindo protestos.

 

A Ucrânia não pode se levantar e se mudar para o Texas, mas terá que viver ao lado da Rússia. Precisam chegar a um acordo. A Europa terá que comprar energia da Rússia e, caso contrário, terá que ter usinas nucleares e carvão. E lembremos que Olaf Scholz, por exemplo, governa com Os Verdes na Alemanha.

 

A maioria das guerras termina em um acordo negociado e ninguém vence uma guerra. Guerras não se ganham. Nem mesmo a Segunda Guerra Mundial se ganhou. Olhe para o ressurgimento do nazismo em toda a Europa, hoje em dia. Não é possível dizer que o nazismo foi erradicado e foi a guerra mais clara em que houve um perdedor. Hitler se suicidou e foram realizados os julgamentos de Nuremberg.

 

Mas a Ucrânia não está disposta a renunciar parte de seu território...

 

Vivemos em um mundo de leis, mas também vivemos em um mundo de poder e as coisas acontecem. Entre 1846 e 1848, os Estados Unidos se apoderaram da metade do México. Há pouco, estive na Cidade do México conversando com pessoas do governo de Andrés Manuel López Obrador. “Quando vão colocar sobre a mesa o retorno de Texas, Arizona, Novo México, Califórnia, partes do Colorado e outros?”, disse. “Esse pensamento nunca desapareceu”, responderam.

 

Joe Biden diz que a anexação territorial está fora de discussão, mas fizeram isso há pouco. E depois disso, em 1898, Havaí, Porto Rico, Cuba, Filipinas. A anexação territorial, infelizmente, ocorre. Não estou dizendo que é algo bom e quero que isso fique claro.

 

Em seu documento de segurança nacional, elaborado antes da invasão, os Estados Unidos argumentam que a China é o único competidor capaz de combinar seu poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para estabelecer um desafio prolongado ao sistema internacional. Como você enxerga este enfrentamento nos próximos anos?

 

A única expressão interessante nessa frase é “sistema internacional”. Sim, a China experimentou um desenvolvimento de forma incrível, a partir de 1949, e têm o direito de se desenvolver. O interessante não é que tenham aumentado seu poder, mas que sejam uma ameaça ao sistema internacional. Não é verdade. A China é uma ameaça ao governo dos Estados Unidos e a suas empresas multinacionais.

 

Os Estados Unidos respondem a um desafio comercial real com meios militares e diplomáticos. Considero essa ideia de que é preciso colocar a China em seu lugar muito racista. Se você quer competir com os chineses, fabrique melhores sistemas de telecomunicações.

 

É realmente interessante que os Estados Unidos tenham sido capazes de fazer de Xinjiang o centro de atenção dos direitos humanos internacionais, ao mesmo tempo que não houve absolutamente nenhuma avaliação dos locais secretos que Washington tinha em todo o mundo, inclusive em solo europeu, e onde realizava a entrega extraordinária de pessoas sem nenhum direito.

 

Você definiria a política externa da China e da Rússia como imperialista?

 

A ideia de imperialismo vem principalmente do livro de [John] Hobson, lido por Lenin, que posteriormente escreveu a pequena obra Imperialismo, em 1916. Aposto que a maioria de nossos idiomas recebem a ideia de imperialismo de Lenin.

 

O imperialismo, em minha opinião, é o uso de meios econômicos extraordinários, como o uso da força militar, para obter recursos econômicos. Não é imperialismo o fato de que um país invada outro. Quando a Índia invadiu o Paquistão, em 1971, na guerra de libertação de Bangladesh, não foi imperialismo indiano, foi a Índia invadindo outro país.

 

Não se veem bases militares russas na América do Sul, África, nem em toda a Ásia. Nem sequer se veem bases militares chinesas na África. No entanto, existem mais de trinta bases militares estadunidenses no continente, incluída a maior base de drones do mundo em Agadez, Níger.

 

Os Estados Unidos e a França têm bases de aviões não tripulados em toda a África. A China não tem bases, tem apenas uma estação de apoio à missão da ONU contra a pirataria em Djibuti. A China, bem ou mal, defende o que considera seu território e não está enviando navios de guerra para a costa de San Francisco. Os Estados Unidos, ao contrário, sim, estão enviando navios para a costa de Xangai.

 

O que as intervenções militares dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque e Líbia têm em comum?

 

Eram desnecessárias. Por quê? Jeremy Corbyn disse que todas as guerras terminam com negociações. Então, por que não negociar agora? A razão pela qual não se negocia agora é porque se deseja mudar os fatos sobre o terreno e ter uma posição mais forte para negociar.

 

Quais poderiam ter sido os fatos sobre o terreno para mudar nestas três guerras? As provas demonstram que os afegãos, os iraquianos e os líbios queriam negociar. Não queriam ser destruídos pelos Estados Unidos. Os talibãs no Afeganistão estavam dispostos a entregar Bin Laden.

 

Em 1990, Saddam Hussein estava suplicando aos Estados Unidos para que não atacassem, só pedia uma maneira de se retirar do Kuwait salvando sua imagem. Em 2003, também disse que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro e Hans Blix, um alto funcionário da ONU, havia inspecionado o país e não havia encontrado armas de destruição em massa. Na Líbia, Gaddafi também estava suplicando para negociar e fez tal pedido à União Africana.

 

Então, a pergunta é: por que os Estados Unidos tinham que ir para a guerra? Talvez tivessem que provar algo. É uma questão de poder. Os Estados Unidos não tinham que bombardear o Iraque por petróleo. O petróleo já estava chegando aos Estados Unidos e já dominavam o mercado. Por isso é que digo que são guerras inúteis.

 

Muitas pessoas acusam um setor da esquerda de não ser suficientemente crítico a Putin. Qual é a sua opinião?

 

É um assunto complexo porque, em primeiro lugar, levanta a questão do que é a esquerda. Eu considero que há uma divisão internacional da humanidade. Há pessoas que agora estão indignadas com a guerra na Ucrânia e querem que Putin preste contas, mas não disse nada sobre Iêmen, Palestina, Iraque...

 

Eu não escrevi um artigo, há 20 ou 15 anos, dizendo que era a favor de Putin. Quem fez isto foi Thomas Friedman, quando Putin iniciou a segunda guerra na Chechênia. Pessoas como Noam e eu o criticamos, mas o Ocidente apoiava a guerra de Putin. As duas guerras na Chechênia não causaram indignação nas capitais ocidentais e Putin recebeu autorização para fazer o que fez.

 

Todas as guerras são um desastre e esta guerra também é. Penso que o processo histórico de integração eurasiática é importante. Gostaria de ver mais democracia em todos os países, não apenas na Rússia, mas também na Arábia Saudita e nos Estados Unidos. Gostaria de ver a esquerda crescer com força na Rússia, entender seu próprio lugar e se afastar do nacionalismo, porque agora está capturada...

 

Contudo, entramos em um período em que a demonização dos indivíduos substitui a análise real. Obviamente, sou contra a guerra, mas é preciso fazer uma análise: o colapso da URSS, o retorno da Rússia ao cenário internacional, o que isso significa para o povo russo, por que Putin goza de uma alta aprovação, como é capaz de aproveitar isso em uma série de conflitos...

 

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