16 Junho 2022
A escritora iraquiana Alia Mamdouh deixou seu país em 1982, mas quase não escreve sobre outra coisa: “Só me resta escrever sobre o Iraque”. Aos 78 anos, senta-se em um hotel de Madri, horas antes de apresentar seu romance Al Tanki: tras las huellas de una mujer iraquí, e passa a criticar a invasão estadunidense, o atual bloqueio político em seu país e a censura que sofreu em praticamente todo o mundo árabe com seus escritos contra a ditadura, o machismo e o patriarcado.
“Quando vejo as imagens do que acontece na Ucrânia, lembro de meu país. Nós vivemos isso: guerras, deslocamentos em massa, bombardeios indiscriminados…”, diz a escritora. “Eu me identifico com o povo ucraniano que está sendo arrasado e, portanto, a Rússia deve ser condenada, mas todos sabemos que o Ocidente, especialmente no Iraque e no mundo islâmico, é o grande defensor do critério duplo e da hipocrisia”, acrescenta.
A entrevista é de Javier Biosca Azcoiti, publicada por El Diario, 14-06-2022. A tradução é do Cepat.
Você saiu do Iraque em 1982. Por quê?
Não saí do país por questões políticas, mas por uma decisão pessoal, proveniente de uma série de divergências com quem, então, era meu esposo. Além disso, naquele momento, o serviço militar era obrigatório, estávamos em plena guerra com o Irã e meu único filho seria convocado. Eu não queria que ele fosse e pegamos o garoto e fomos para a França. Ficamos lá por um curto período e depois fomos para o Marrocos, onde trabalhei como diretora de um jornal saudita.
Só voltei ao Iraque em 1987 para um festival literário de uma semana. Sigo com o Iraque dentro de mim, seu povo, seus problemas, seus cheiros... Mas o Iraque de hoje não é o que eu conheci. Aquele Iraque não existe mais. Todas as pessoas que estavam lá, não estão mais: emigraram, foram forçadas ao exílio ou morreram.
O bairro que descrevo no romance se transformou em ruínas. O único motivo pelo qual eu voltaria ao Iraque é para denunciar o grande crime cometido contra o país, com base na intervenção estadunidense.
O Iraque é para mim como minha própria existência. Não me resta outra coisa a não ser escrever sobre o Iraque. Caso contrário, sobre o que posso escrever?
Após o que seu país viveu, em 2003, qual é a sua opinião sobre a reação dos Estados Unidos e outros países da Europa à invasão da Ucrânia?
Todos sabemos que o Ocidente, especialmente no Iraque e no mundo islâmico, é o grande defensor do critério duplo e da hipocrisia e foi o que notavelmente sofremos com a luta contra o chamado terrorismo internacional. O que está acontecendo na Ucrânia, no entanto, é algo diferente. Trata-se de um conflito entre dois países europeus em que há também uma questão relacionada à OTAN, aos interesses geoestratégicos da Rússia e uma série de erros internacionais.
Quando vejo as imagens do que acontece na Ucrânia, lembro de meu país. Nós vivemos isso: guerras, deslocamentos em massa, bombardeios indiscriminados... Eu me identifico com o povo ucraniano que está sendo arrasado e, portanto, a Rússia deve ser condenada, mas o Ocidente também deve ser condenado.
Nós conhecemos o Ocidente e sabemos que ele diz uma coisa e faz outra e que age de maneira sorrateira. Havia uma série de pactos com a Rússia que foram descumpridos. Basta que na Europa vocês sejam os servos dos Estados Unidos. Vocês são países fortes e Washington tem sua própria política para o Oriente Médio e para a Europa, prejudicial para vocês mesmos.
Todas as guerras da América são fora de seu país e para alcançar a estabilidade interna tenta exportar esses conflitos. A Europa é uma das grandes derrotadas do conflito na Ucrânia e do ponto de vista de uma pessoa que, há 20 anos, sofreu uma invasão do Iraque e que foi vendo todo o processo de assédio e destruição no Oriente Médio, nada disso soa novo.
A hegemonia estadunidense está em decadência e há uma situação de podridão interna que, ao mesmo tempo, está fazendo com que os conflitos sejam exportados e que se crie um estado de tensão com a finalidade de manter a dominação, que não é real, pelo maior tempo possível. Na verdade, o que aconteceu no Iraque foi uma demonstração de força, mas não de domínio.
Hoje, os Estados Unidos ainda são capazes de entrar na sala, colocar os maus alunos contra a parede e ordenar sanções, retirar ou dar armamentos..., mas isso está desaparecendo. Também vemos o mesmo no aspecto racial: o grupo branco dominante cada vez é menor e há uma espécie de relutância em aceitar tal realidade.
Eu compreendo que os jovens fiquem fascinados com os Estados Unidos e que não compreendam que digamos que são o vilão do filme. As séries, a música, até as roupas que vestimos... tudo isso marca a forma como os vemos. Nós, no entanto, temos outra visão. Diferenciamos entre o povo americano, pelo qual temos grande respeito, e a política externa dos Estados Unidos, que é um câncer, concretamente, no Oriente Médio.
Os europeus devem perceber que os Estados Unidos quase nunca dizem a verdade sobre seus planos e intenções. Eu vivo na França, sinto-me europeia e me causa grande pesar ver como os europeus, frequentemente, continuam caindo nos mesmos erros em relação aos Estados Unidos.
O que a invasão significou para você e seu país?
A ocupação do Iraque não é só dos americanos, mas de muitos outros, como iranianos, milícias e atores regionais e internacionais. Os americanos eram os que mandavam e apesar de terem saído em 2011, deixaram seus conselheiros e assessores e são os que controlam o país nos bastidores.
Um dos protagonistas da novela Al Tanki se chama Mujtar, que passa o tempo todo bêbado para esquecer o desastre, mas diz uma frase que reflete muito bem o caráter dessa pessoa e de muitos iraquianos: “Meu único objetivo nesta vida é permanecer vivo, pois continuar com vida supõe um desafio para os Estados Unidos”.
Você sofreu censura no Iraque e em outros países árabes?
Em praticamente todos os países árabes. Há dois romances [não estão traduzidos para o espanhol], La garçonne e El deseo, que são proibidos. O primeiro foi publicado em 2000 e é sobre uma mulher andrógina que sofre perseguição, tanto por motivos políticos como por sua orientação sexual. É uma acusação contra o Partido Baath e o Governo de Saddam Hussein. A protagonista se apaixona por um comunista, é presa e torturada.
Em El deseo, um homem iraquiano de 50 anos, opositor político e pertencente ao ramo comunista antibaathismo, acorda de manhã e, de repente, descobre que seu pênis desapareceu [em árabe a palavra pênis tem a mesma raiz de recordar]. Então, tiram dele não apenas a capacidade de ser, mas também de recordar de modo fidedigno seu passado.
Começa a fazer uma série de elucubrações sobre sua vida sexual e política, como se tentasse “recondicionar” sua existência a partir de memórias fragmentadas. É uma espécie de alegoria sobre como o indivíduo iraquiano perdeu a capacidade de fazer uma análise autocrítica e de seu país. É também uma crítica ao poder patriarcal e ao poder onímodo desse varão que acredita ser o dono da realidade.
Quando vai ao médico, faz uma série de circunlóquios para não se concentrar no problema real, como se fosse incapaz de reconhecer a natureza de seu infortúnio. Há uma cena na qual o protagonista diz: “Imaginem vocês que todos os varões com poder e capacidade de comando acordem e percebam que nenhum deles tem pênis e que quando olham para o céu veem todos flutuando como se fossem mísseis. Tenho certeza de que as guerras acabariam”.
O Líbano foi o único país árabe onde houve a publicação, mas mesmo lá é difícil encontrá-los, pois os livreiros os mantêm fora de vista, por precaução.
Por causa desses dois livros, fui acusada de obscena, vulgar, grosseira e rude. Eu gostaria de ser ainda mais vulgar, grosseira e rude para atingir o nível máximo de vulgaridade que este mundo alcançou. De qualquer forma, sei que este livro é reproduzido clandestinamente em muitos países árabes.
Estou no fim de meus dias, dirijo-me para o meu próprio desaparecimento e pouco me importo com as críticas que eu possa receber. Menos ainda pelo conteúdo sexual de minhas obras. Não me importo se há pessoas que se incomodam pelo que aparece neste ou naquele romance.
Por que é tão difícil formar Governo no Iraque, sete meses após as eleições?
Porque há uma disputa entre o Irã e os Estados Unidos em solo iraquiano. É o resultado de uma situação criada em que o país afetado não tem soberania própria. Os Estados Unidos dirigem tudo nos bastidores e o Irã é o outro poder efetivo.
No papel, graças ao sistema de cotas confessionais, criado pelos estadunidenses e a influência de seus líderes e milícias, é a comunidade xiita que exerce maior domínio. No entanto, existem dois grandes blocos dentro da comunidade xiita. Um é arabista e nacionalista e o outro é mais partidário de uma relação de aliança firme com o Irã. Esse é o problema.
Como em grande medida os atores políticos internos do Iraque dependem de potências regionais e internacionais, estamos nesta situação. Faltam-nos líderes com uma margem razoável de autonomia. Por isso, são incapazes de entrar em acordo para formar um Governo, porque nem os estadunidenses e nem os iranianos concordam com as alternativas dadas.
Não é que os Estados Unidos deixaram um Estado ou um sistema institucional deficiente, mas, sim, que destruíram as estruturas do país e o que temos agora é a sua consequência. Temos uma corrupção política institucionalizada. O problema está em nós, em nossas elites e dirigentes, que se tornaram uma espécie de associados desses interesses externos.
O Iraque superou o sectarismo entre sunitas e xiitas?
No Iraque existe um sistema de cotas confessionais imposto pelos Estados Unidos. Agora, a religião e a pertença confessional se tornaram um negócio. Quanto mais membros você tiver em sua comunidade, mais influência terá. Entramos em um círculo vicioso e esse confronto é mais conveniente para as elites da comunidade majoritária, que é a xiita.
Esse sectarismo existia antes de 2003?
Pode ser que sim, mas era muito brando. Nunca soube se eu era sunita ou xiita. Na minha família tínhamos avós sunitas e xiitas. Nunca soube quem era quem, nem em que se diferenciavam uns dos outros. Também não me interessava, nem me importava muito.
De fato, não sabia que tinha parte sunita e xiita até me casar, mas nas costas dos tanques dos Estados Unidos trouxeram um Governo completo e tentaram criar uma nova realidade que é o que transformou o Iraque em um cadáver que fede. Qualquer pessoa que se aproxime notará esse cheiro.
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“A Rússia deve ser condenada, mas o Ocidente é o grande defensor do critério duplo”. Entrevista com Alia Mamdouh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU