22 Abril 2022
Irina é ucraniana, e Albina é russa: juntas, as duas moças carregaram a cruz durante a Via Sacra do Papa Francisco. Nem mesmo esse hino à paz, desejado pelo pontífice na Sexta-Feira Santa, foi poupado das críticas: as mídias católicas ucranianas não transmitiram a procissão em sinal de protesto.
“Mas esta não é a hora do perdão?”, perguntamos a Enzo Bianchi, por muito tempo prior da Comunidade de Bose. “Aquele gesto tinha um significado poderoso. Os ucranianos invadidos e trucidados certamente carregam a cruz, mas também os russos. Não podemos jogar a responsabilidade da guerra sobre um povo inteiro”, explica Bianchi.
“As duas moças que carregavam a cruz tinham todo o direito de invocar a paz e dar um sinal ao mundo. Mas o perdão tem um caminho longo. Também é preciso compreender o sentimento de quem, em um momento tão trágico, sente raiva e ressentimento. O escândalo para mim é que os cristãos não carregam a cruz, hoje como ontem. Isso havia acontecido realmente na paixão de Jesus: nenhum dos seus seguidores carregou a cruz. Quem a carregou foi um camponês de Cirene, Simão. Mas então eu digo que, se não é possível nem rezar juntos nem percorrer juntos o caminho da cruz, o Evangelho é verdadeiramente renegado.”
A entrevista é de Silvia Truzzi, publicada por Il Fatto Quotidiano, 20-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As primeiras afirmações públicas do papa, contra o aumento dos gastos militares e o envio de armas, foram ignoradas pela imprensa, que até gosta muito de Francisco.
Digamos a verdade: o papa foi censurado. As frases que ele pronunciou foram deliberadamente silenciadas, porque neste momento a sua palavra é incômoda para o Ocidente. Eu temo que o Papa Francisco terá cada vez mais dificuldades em ser profeta, como ele é por vocação.
Você escreveu que os poderosos do mundo não querem a paz: por que a via diplomática não parece ser uma opção preferível à continuidade da carnificina?
Esta guerra, para além de quem a sofre, tem muitos, muitos seguidores. Por que todos – o presidente Biden, a Otan, Putin - proclamam que esta guerra será longa? Em primeiro lugar, porque os fabricantes de armas lucram com isso. E depois porque infelizmente os “valores” do Ocidente foram postos sobre a mesa contra os do mundo russo e não europeu. Em nome desses valores, a guerra deve continuar moendo mortes. Por outro lado, até se contrapõe uma espécie de guerra santa, travada contra o Anticristo e o Ocidente corrupto. Ninguém quer negociar, nem mesmo os governos europeus que estão completamente esmagados pelo dos Estados Unidos. Eu sinto vergonha por eles. Todos deveríamos corar diante de uma guerra entre nós, europeus, entre nós, cristãos, diante da nossa participação em uma aliança militar que pretende se expandir contra a segurança de outros países, diante da incapacidade da Europa de parar a loucura de Putin.
Você está em contato com sacerdotes das zonas de guerra?
Sim, especialmente com mosteiros e metropolitas, tanto ucranianos quanto russos. Eles estão assustados, e não se deve pensar que os russos estão nas posições malucas de Kirill. Muitos deles estão entristecidos com aquela que, mesmo que não se queira dizer, é uma guerra fratricida. Onufri, o metropolita de Kiev e de toda a Ucrânia do Patriarcado de Moscou, condenou a guerra várias vezes, pedindo a Kirill e Putin que parem. Essas Igrejas estão marcadas por divisões profundas, embora seja verdade que tanto a Igreja Católica ucraniana de rito bizantino quanto a Igreja autocéfala ucraniana querem a vitória total sobre o inimigo e abençoam as armas do seu exército. Aqui reside um vício, que ainda está muito vivo no Leste e que é a ruína do cristianismo: os cristãos devem parar de pensar que têm uma pátria. Mais cedo ou mais tarde, a religião se cruza com a pátria, e nasce uma mistura explosiva: vimos isso nos Bálcãs e agora vemos na Ucrânia. Os sacerdotes ucranianos me diziam que viram tanques entrando a partir da Polônia ainda em agosto, muito antes do início da guerra. Isso significa que o Ocidente estava se preparando para a guerra.
Crescemos na cultura, no fim das contas, pacífica do pós-guerra e da Constituição que repudia a guerra. Como é possível que tudo tenha mudado tão de repente?
Não nos esqueçamos dos Bálcãs. Não nos esqueçamos de que na época não nos limitamos a mandar armas, mas intervimos diretamente, jogando nós mesmos as bombas, com um governo de esquerda. Essa foi uma mancha indelével que contaminou a nossa Carta. Agora estamos travando uma guerra por procuração, embora sempre na mesma lógica. Há uma paixão pela guerra, um encantamento pela força tão difundido que nos leva a desconsiderar a Constituição e a humanidade. Vejo uma intolerância absoluta: não se suporta o raciocínio, e qualquer outro discurso é deslegitimado. Aconteceu a mesma coisa com a pandemia. Sempre se diz que a primeira vítima da guerra é a verdade, mas não é verdade: a primeira vítima é a razão, porque a guerra é alheia à razão. Depois, consequentemente, a verdade é negada. É por isso que as vozes que questionam e que não querem estar no coro maximalista são silenciadas.
Diz-se: os ucranianos têm o direito de se defender, e, portanto, o envio de armas é justo.
Mas essa é uma escolha hipócrita! Combate-se não com o próprio corpo, mas com o dos outros. As vítimas continuarão sendo ucranianas, mas esta guerra é uma guerra entre o Ocidente e a Rússia, que se quer humilhar e aniquilar a todo o custo. Devemos estar atentos: o nosso amanhã não será mais tão pacífico, o restante do mundo não quer mais reconhecer a supremacia absoluta do grande gigante estadunidense. China, Índia e outros países querem um equilíbrio mundial, não um dono absoluto.
Os defensores da guerra não veem outras saídas.
Se seguirmos em frente, haverá mais vítimas, e estas vítimas são vítimas para sempre, são mortos para sempre. Gostaria de dizer aos beligerantes: por que não vão vocês combater com os seus corpos? Então eu acreditaria em vocês. Mas se vocês continuarem saudando a guerra a partir da sala de estar de vocês, eu não acredito em vocês. Não há valor mais alto do que a vida de cada um: cada um tem uma história, uma família, amigos, amores, sentimentos. Mas, quando um homem é morto, é morto para sempre.
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“Sinto vergonha do Ocidente. O papa e a paz são ignorados.” Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU