08 Abril 2022
“Sofrimento e amor são o mesmo mistério porque só quem ama sofre. O sofrimento, seja na Ucrânia hoje ou no Gólgota há 2 mil anos, é a face do amor em meio ao mal. Como cristãos, devemos sempre resistir ao mal, mas também devemos abraçar o sofrimento em obediência ao exemplo do Mestre”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 08-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
É difícil não virar para o lado, ou não fechar os olhos. As imagens de Bucha, Ucrânia, eram tão dolorosas. O cenário das ruas com corpos atirados, suas mãos amarradas nas costas. A mulher idosa que estava no que era um jardim, onde três cadáveres recebiam minhocas em vez de flores.
Em uma guerra marcada pelas atrocidades que eram transmitidas em tempo real pelo mundo, essas imagens eram muito. Já era ruim o suficiente ver um apartamento bombardeado, ou um hospital que sofria ataques à distância. Os mortos de Bucha foram assassinados à curta-distância. Os perpetradores viram quem eles mataram. Talvez esse fato, a proximidade dos assassinados aos assassinos, responsabiliza por um terror a mais.
As imagens foram pesadas também para o Papa Francisco. Na sua audiência geral em 06 de abril, ele segurou uma bandeira ucraniana trazida da “cidade martirizada” de Bucha e a reverenciou com um beijo. Esse foi um gesto marcante vindo de um papa que tem sido repetidamente cético sobre o nacionalismo e seus símbolos. O papa convidou alguns refugiados ucranianos para se juntarem a ele.
No domingo, 10 de abril, os cristãos do rito latino começarão a Semana Santa. Nós escutaremos a abertura do Evangelho dentro da Igreja, antes da procissão, na qual nós nos juntaremos à multidão cantando “Hosana!” a Jesus como quando ele entrou em Jerusalém. Mais tarde, será lido o segundo Evangelho, o relato da Paixão, e nos juntaremos à multidão gritando: “Crucifica-o!”. A mudança de um Evangelho para o outro é sempre chocante, um lembrete da linha muitas vezes tênue entre a graça e o mal. Será mais difícil este ano, quando a crucificação de Jesus for menos remota, não apenas nas ruas de Jerusalém há 2 mil anos, mas nas ruas de Bucha, Odessa e Mariupol na semana passada. E na próxima semana.
Todos os anos, há a tentação de correr para o final da história, para ouvir o relato do túmulo vazio, primeiro as mulheres e depois os apóstolos compartilhando a notícia milagrosa: Ele ressuscitou. Devemos sempre resistir à tentação de nos apressar. Sabemos como a história termina, mas precisamos nos sentar com a sensação de perplexidade e perda que os seguidores de Jesus sentiram como sua esperança de que ele fosse o Messias caído na catástrofe do Gólgota.
Este ano, a tentação de correr para o final da história é remota. Este ano, é mais fácil sentar-se com a Sexta-feira Santa e a sensação de abandono por Deus que ela convida.
Queremos esperar com o salmista: “Os que semeiam com lágrimas, ceifam em meio a canções. Vão andando e chorando ao levar a semente. Ao regressar, voltam cantando, trazendo seus feixes” (Salmo 126). Mas como podemos? Em vez disso, nos encontramos murmurando o lamento:
Quanto tempo, ó Senhor? Você vai me esquecer para sempre?
Por quanto tempo você esconderá seu rosto de mim?
Javé, até quando me esquecerás? Para sempre? Até quando esconderás de mim a tua face?
Até quando terei sofrimento dentro de mim, e tristeza no coração, dia e noite? Até quando meu inimigo vai triunfar?
Atenção, Javé, meu Deus! Responde-me! Ilumina meus olhos, para que eu não adormeça na morte (Salmo 13).
Ao olharmos para os mortos na Ucrânia, é mais fácil lembrar do Senhor crucificado do que do Senhor ressuscitado, o Deus que foi quebrado, espancado e assassinado, não o Filho de Deus glorificado que reina no alto.
Todas as coisas usuais que dizemos a nós mesmos quando os tempos são difíceis parecem ridículas ou piores quando forçados a confrontar os mortos de Bucha. Acreditamos que Deus é todo-amoroso e todo-poderoso, mas onde estava esse amor e esse poder no mês passado, quando eles foram necessários na Ucrânia? O povo daquele país orou a Deus por proteção e sua oração não foi respondida. Com Jesus, suspiram: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Nós católicos acreditamos na dignidade humana, mas como podemos acreditar nela quando tais atos são feitos? Onde está a dignidade naquele jardim com seus cadáveres? Que crime eles cometeram para justificar sua execução?
Acreditamos na justiça social, mas esses assassinatos zombam da nossa capacidade humana de fazer justiça. Esta semana, em Haia, Ali Kushayb, líder da milícia Janjaweed, foi a julgamento por crimes de guerra por seu envolvimento em atrocidades em Darfur há quase 20 anos. Ele é o único réu dessa guerra. É melhor que ele seja responsabilizado por suas más ações do que não, mas a justiça parece tão pequena comparada ao mal cometido. Se a guerra na Ucrânia terminar amanhã, se as tropas russas voltarem para casa e o povo russo derrubar o belicista e criminoso de guerra Vladimir Putin, nada disso trará esses mortos de volta à vida.
Pregamos um evangelho de solidariedade, mas como demonstramos solidariedade com as famílias das vítimas? O que pode reparar sua perda? Há seis semanas, os vizinhos olharam para aquele jardim, talvez ainda coberto de neve, e o imaginaram logo ficando verde com uma nova vida. Em vez disso, há uma nova morte. As ruas agora repletas de mortos estavam há dois meses repletas de jovens amantes roubando um beijo, pessoas indo de ônibus para o trabalho. Quando um tornado percorre uma região, causando devastação e destruição, uma vez que a tempestade passa, as pessoas das cidades vizinhas, cidades que foram poupadas, vêm em auxílio de seus amigos azarados. Como consolar um povo inteiro, cujas vidas se tornaram um inferno, onde nenhuma cidade foi poupada?
No final, ficamos mudos diante desse sofrimento. As palavras nos faltam e apenas as lágrimas trazem consolo. Lembramos que os amigos de Jó tentaram lhe explicar por que ele sofreu e, no final da história, Deus os repreende por sua presunção. Não devemos imitá-los.
O sofrimento é, por fim, um mistério como o amor, que é o outro lado da moeda da fragilidade humana. Não, isso não está certo. Não é semelhante. Sofrimento e amor são o mesmo mistério porque só quem ama sofre. O sofrimento, seja na Ucrânia hoje ou no Gólgota há 2 mil anos, é a face do amor em meio ao mal. Como cristãos, devemos sempre resistir ao mal, mas também devemos abraçar o sofrimento em obediência ao exemplo do Mestre.
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Na Ucrânia, o sofrimento desafia nossa fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU