02 Agosto 2022
O economista sérvio Branko Milanović fala do futuro da economia russa, por que Francis Fukuyama se equivocou, em 1989, e explica que o capitalismo é “o único sistema socioeconômico do mundo”.
A entrevista é de James Pethokoukis, publicada por Letras Libres, 01-08-2022. A tradução é do Cepat.
A Rússia é um país com vários recursos naturais, uma população bem-formada e uma profunda base científica. No entanto, a Rússia é apenas o 67º país mais rico do mundo per capita. Por quê?
O problema da Rússia é o que chamei de sua “história econômica circular”. Para se enriquecer, as nações precisam de paz interna e externa, não de caos. Vale lembrar a famosa afirmação de Adam Smith de que “a paz, os impostos fáceis e uma administração de justiça tolerável” são suficientes para que os países passem de uma renda muito baixa a renda muito alta.
A Rússia não teve essa experiência por todo um século. O período de rápido crescimento econômico, após a eliminação da servidão em 1861, ou seja, antes do fim da escravidão nos Estados Unidos, terminou com a Primeira Guerra Mundial e depois com a revolução bolchevique e a Guerra Civil.
Outra aceleração do crescimento, nos anos 1930, por meio da industrialização stalinista, foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial. A retomada do crescimento dos anos 1950 e 1960 desacelerou com Brezhnev, mas ao menos não houve declínio, naquele momento. O declínio veio com a dissolução da União Soviética e a transição para o capitalismo.
O PIB russo diminuiu mais de 40% (mais do que diminuiu o PIB dos Estados Unidos, durante a Grande Depressão). No último episódio da dinâmica “crescimento-guerra-e-retomada”, os resultados relativamente bons da Rússia de Putin, até aproximadamente 2012, terminaram definitivamente com a guerra.
Outras razões talvez mais fundamentais podem ser debatidas acerca da falta de avanço tecnológico da Rússia, mas gostaria de destacar um fato muito simples que, muitas vezes, é ignorado: para se tornarem desenvolvidos e ricos, os países precisam de estabilidade e crescimento constante, por longos períodos. Para qualquer pessoa razoável (exceto o presidente da Rússia), isto simplesmente se traduz no fato de que a Rússia precisaria de ao menos cinquenta anos de paz, estabilidade e uma administração de justiça tolerável para alcançar os países avançados. Nunca teve essa oportunidade.
Por quanto tempo continuarão as sanções ocidentais à Rússia? Qual será o efeito a longo prazo na economia política do país?
Acredito que as sanções continuarão por várias décadas, pois os problemas abertos pela invasão russa à Ucrânia são excepcionalmente difíceis de resolver politicamente. São tão difíceis, se não mais, que o problema do Oriente Médio (Israel-Palestina), o problema cipriota (Chipre do Norte) e o de Índia e Paquistão (Caxemira). Nenhum desses problemas foi resolvido nos últimos 50-70 anos. Então, o problema entre a Rússia e a Ucrânia também não será resolvido, o que, por sua vez, significa que as sanções ocidentais, e especialmente as estadunidenses, permanecerão em vigor.
As sanções terão um impacto devastador na economia russa. Esse impacto é de médio a longo prazo. Não faz sentido se concentrar nas oscilações diárias ou semanais das taxas de juros ou câmbio, como muitas pessoas fazem.
A Rússia terá que recorrer à substituição de importações em circunstâncias únicas, nas quais é impossível a importação de maquinaria fabricada no exterior, normalmente necessária para colocar em curso a substituição de importações. Terá que adotar o que chamei de “substituição regressiva de importações”, ou seja, substituir os bens produzidos atualmente no Ocidente, começando pelas colheitadeiras, carros e aviões, até as batatas fritas e a novocaína (para cirurgias odontológicas), por substitutos nacionais inferiores e antiquados.
Em outras palavras, a política será basicamente retroceder em termos de desenvolvimentos tecnológicos e/ou buscar reinventar tudo novamente por suas próprias forças. Ninguém na história se viu obrigado a isso.
É nesse sentido que a substituição “regressiva” de importações é fundamentalmente diferente da substituição de importações de Stalin, que, na parte técnica, baseava-se na tecnologia ocidental, ou seja, na tecnologia avançada da época.
A ideia de que a China de alguma forma ajudará a Rússia a não ter que retroceder é parcialmente correta. Contudo, a China terá muito cuidado para não cair nas sanções secundárias dos Estados Unidos. Além disso, a China não pode substituir o Ocidente em todos os campos tecnológicos. A própria China depende em muitos âmbitos da cooperação com o Ocidente.
Permita-me mencionar que daqui a cinco ou seis anos o transporte aéreo civil russo não poderá atender áreas distantes. Não será possível voar diretamente de Moscou a (digamos) Vladivostok. Em muitos aspectos, o modo de vida russo retrocederá, tecnologicamente, aos anos 1980. Podemos dizer: “Ah, mas as pessoas viviam, e muitos muito bem, nos anos 1980.” É verdade, mas é muito diferente viver com a tecnologia dos anos 1980 nos anos 1980, do que viver com a tecnologia dos anos 1980 atualmente.
Ainda é adequado chamar a Rússia de oligarquia ou agora é evidente que os oligarcas são favorecidos pelo estado sem nenhuma influência?
Essa é uma pergunta muito boa. Antes da guerra, quando pouco se ameaçava com as sanções, a suposição no Ocidente era que os oligarcas eram suficientemente influentes para que, diante do medo de perder todo (ou quase todo) o seu patrimônio, ficassem focados e estimulados em dissuadir Putin da invasão. Isto não aconteceu. Então, a suposição em que se baseava toda essa ideia de ameaçar os oligarcas com sanções era errônea. É importante levar isso em conta por duas razões.
Em primeiro lugar, não temos nem ideia do motivo pelo qual os oligarcas estão sendo punidos hoje. Suponho que seja por não serem suficientemente poderosos. O Ocidente está dizendo para eles: “Agora, sabemos que vocês não são poderosos e vamos puni-los por isso.” Não é estranho? Eu escrevi sobre isso aqui.
Em segundo lugar, a natureza da oligarquia russa havia mudado de forma fundamental entre Yeltsin e Putin. Escrevi sobre isso, aqui, em 2019. Para dizer de forma simples, com Yeltsin, os oligarcas mandavam.
Tomemos como exemplo a famosa reunião de inverno dos principais multimilionários russos, de 1996, em Davos, quando, junto com George Soros, decidiram financiar a campanha presidencial de Yeltsin, trazer assessores e consultores estadunidenses e fazer tudo o que era possível para ajudar Yeltsin a vencer em junho (de 1996). Foram bem-sucedidos e ricamente recompensados por meio do famoso acordo de empréstimo por ações.
Com Putin, as coisas mudaram, ainda que gradualmente. Foi conduzido ao poder por Berezovsky, que acreditava que seria o marioneteiro e Putin a marionete. Contudo, na verdade, Berezovsky acabou se enforcando (provavelmente) em sua antiga casa na Inglaterra.
Sob o mandato de Putin, os principais oligarcas (não necessariamente todos) só podiam conservar seus bens, caso não contrariassem os interesses do Estado, definidos por Putin e pelos ministérios do poder, e podiam aumentar sua riqueza, caso fizessem o que o Estado dizia.
A relação de poder entre os ultrarricos e os governantes políticos se inverteu. Parece que em Washington e Londres, até 24 de fevereiro de 2022, não estavam conscientes dessa mudança ou talvez fingissem não estar.
Você disse que o capitalismo é “o único sistema socioeconômico do mundo”. É provável que isso mude a longo prazo?
Para entender o que quero dizer e responder sua pergunta, voltemos à definição de capitalismo que uso em Capitalismo sem rivais. Não é uma definição muito original. Foi utilizada tanto por Karl Marx como por Max Weber. É simples. É poderosa e situa o “b” na forma como a produção é organizada, não (como fazem as definições amadoras de capitalismo e socialismo) na forma como a distribuição é realizada.
Para chamar um país de capitalista, a definição requer, em primeiro lugar, que a maior parte da produção seja realizada por empresas cujos ativos são de propriedade privada. Em segundo lugar, que os proprietários dos ativos administrem direta ou indiretamente as empresas que, por sua vez, utilizam mão de obra contratada para produzir coisas ou serviços.
O fato de a mão de obra ser contratada é importante: os trabalhadores não desempenham um papel empresarial, apenas lhes é dito o que precisam fazer. O sistema de produção é totalmente hierarquizado. Por último, a tomada de decisões econômicas é descentralizada.
Agora, temos propostas sérias para mudar alguma das três partes dessa definição para nos afastarmos do capitalismo? Eu não observo isso. Para ser claro, vejamos o que isso implicaria, ou seja, enumeremos as condições sob as quais o capitalismo mudaria de forma substancial.
Por exemplo, se fossem nacionalizados os ativos. Isto é óbvio. Em segundo lugar, quando a maior parte da produção é realizada por pequenos produtores (trabalhadores-proprietários). Nesse caso, não haveria mão de obra contratada. Com efeito, os trabalhadores (que ao mesmo tempo também são capitalistas) exercem o papel empresarial. E em terceiro lugar, se a coordenação econômica está centralizada, digamos que através de um plano explícito ou uma forte regulamentação governamental das atividades-chave.
Como eu disse, não vejo nenhum desses elementos tendo muito apoio hoje. No entanto, posso imaginar algumas mudanças. Por exemplo, é possível que no futuro haja mais empresas que se assemelhem às atuais startups. As pessoas com ideias buscam capital.
Nesse caso, o capitalista não é mais, direta ou indiretamente, o “decisor”, é apenas o prestamista, o investidor. O capital continua sendo privado, obtém um rendimento, mas o fato de ser proprietário não lhe dá o direito de administrar a produção. Esse papel corresponde ao trabalho, na verdade, às pessoas com ideias.
Um sistema no qual os proprietários do dinheiro são simplesmente provedores desse dinheiro, sem qualquer papel de gestão e no qual esse papel recai sobre o trabalho, não é mais capitalista no sentido em que o defini. Esta é uma mudança que posso imaginar.
Outro é o processo que documentei em Capitalismo sem rivais para os Estados Unidos e várias economias avançadas. Chamo isso de homoploutia. Isto significa que um número cada vez maior de pessoas que estão (digamos) nos 10% da camada superior da distribuição da renda total dos Estados Unidos estão tanto nos 10% da camada superior da distribuição de renda pelo capital, como nos 10% da camada superior da distribuição de renda pelo trabalho. Em outras palavras, não são apenas pessoas ricas: estão entre os trabalhadores mais ricos e entre os capitalistas mais ricos.
Esse é um capitalismo muito diferente, “novo”. No capitalismo clássico, os capitalistas mais ricos não estão entre os trabalhadores mais ricos. Não se preocupam em trabalhar, dirigem suas empresas. Contudo, agora, é possível ter um gerente muito bem formado, que possui uma renda do trabalho muito alta, poupa dessa renda, investe e obtém uma renda de capital muito alta que o coloca entre os 10% dos capitalistas mais ricos, enquanto ele/ela já está entre os 10% dos trabalhadores mais ricos.
Como eu disso, isto significa uma grande mudança em comparação ao passado. Tem algumas características positivas e outras negativas. Mas deixarei os leitores de Capitalismo sem rivais descobrirem quais são.
Em ‘O fim da história’, em que Fukuyama acertou e em que se equivocou?
Admiro profundamente o trabalho de Fukuyama em As origens da ordem política. É, na minha opinião, um livro de primeira classe. Eu escrevi duas resenhas a seu respeito. Mas equivocou-se em 1989. É o que vemos claramente agora. Houve dois erros.
Em primeiro lugar, as revoluções de independência nacional e autodeterminação, que eram essencialmente revoltas nacionalistas, foram proclamadas por Fukuyama e outros maîtres à penser da época como revoluções da democracia. Desde o início, este foi um quebra-cabeça para mim.
Se eram as revoluções da democracia, do liberalismo e do plurinacionalismo, por que as três federações comunistas foram dissolvidas, em vez de se limitarem à democratização? Por que, para utilizar um contraponto, a Espanha foi democratizada e mantida como uma federação democrática de base étnica, enquanto todas as federações étnicas comunistas foram dissolvidas?
Fica claro que havia algo a mais do que a simples democratização, e esse algo a mais era a autodeterminação étnica. Esta era a característica crucial das revoluções da Europa do Leste, a democracia era contingente.
Toda a ideologia de 1989 fugiu dessa questão. É uma questão fundamental, porque responder a essa pergunta não só manifesta a verdadeira natureza das revoluções, como também responde à pergunta sobre o que motivou uma série de guerras, incluindo a atual, que presenciamos desde 1989.
Houve doze guerras nos chamados países em transição. Todas elas foram travadas nas antigas federações comunistas, e onze destas doze guerras foram guerras pelas fronteiras (a única guerra que não foi pelas fronteiras foi a guerra civil no Tajiquistão.) Portanto, a resposta sobre o que motivou essas revoluções deve ser óbvia para todos, exceto para as mentes mais dogmáticas.
Contudo, mesmo que Fukuyama tivesse um pouco de razão em sua explicação de 1989, a observação mais ampla que fez, seguindo Hegel, em relação a um termo na evolução das instituições humanas, a saber, a democracia na esfera política e capitalismo na esfera econômica, é simplista e é pouco provável que se torne realidade.
Conforme o próprio Fukuyama demonstra em Origens…, a experiência humana, seja a história, a filosofia, o pano de fundo econômico, as instituições, a “cultura” etc. dos diferentes povos, é tão diversa que acreditar que um sistema se ajustará a todas essas necessidades e crenças tão diversas é pouco menos que utópico. E o perigo da utopia de Fukuyama, como o de todas as utopias, é que o desejo de invocar sua existência leva inevitavelmente ao conflito.
Se acreditarmos que Rússia e China, Egito e África do Sul, Nigéria e Brasil, Irã e Argélia, Birmânia e Arábia Saudita, e todo o mundo neste vasto mundo estariam melhor se tivessem um sistema, o sistema político ocidental, logicamente temos que convencê-los disso. E se caso se obstinam em persistir no “errôneo de suas formas”, temos que guerrear com eles. Assim, a utopia de Fukuyama leva a uma cadeia interminável de conflitos.
Por que o crescimento econômico é importante? Não conseguimos o suficiente e podemos redistribuir o que temos?
Nunca conseguiremos o suficiente porque o desejo humano de “melhorar”, como o chamava Adam Smith, não tem limites. Se tivéssemos um apetite limitado por todas as coisas, poderíamos imaginar uma sociedade estacionária. Mas nossas necessidades não são fisiológicas, são determinadas pela sociedade. Cada desenvolvimento cria novas necessidades.
Não tínhamos necessidade de telefones celulares antes que existissem. Mas agora temos essa necessidade. Agora, não temos a necessidade de voar para Marte em uma excursão de final de semana (embora Elon Musk possa pensar assim). Hoje, para nós parece um pouco estranho ter essa “necessidade”. Mas daqui a várias gerações, não será tão estranho. Será como a nossa “necessidade” de sair de férias para o México ou Itália.
Então, o crescimento econômico e as necessidades estão, por assim dizer, em uma relação dialética: mais crescimento cria novas necessidades que exigem mais crescimento para satisfazê-las. Isto não tem fim.
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“A vida na Rússia retrocederá aos anos 1980.” Entrevista com Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU