02 Setembro 2022
O cardeal Muller sobre a recente reunião de cardeais no Vaticano: “Talvez estavam envolvidos demais em tecer louvores a uma constituição apostólica já em vigor e agora imutável, um texto que nunca foi submetido ao escrutínio do colégio cardinalício. Digo isso com ironia, com uma ponta de amargura. É como se nos tratassem como alunos do primeiro semestre, como se precisássemos ser doutrinados, mas não quero criar polêmicas".
No consistório recém-concluído com quase todos os cardeais do mundo - evento que não acontecia desde 2014 - o silêncio do Vaticano sobre o destino do cardeal emérito de Hong Kong, o chinês Joseph Zen ze-Kiun, pesou como uma pedra, ausente de Roma porque está em prisão domiciliar por levantar a voz contra Pequim, defendendo os direitos humanos tanto em Hong Kong quanto na China. “Haverá um processo injusto no próximo mês. Ninguém levantou a questão gravíssima de nosso coirmão Zen. Não foi feito pelo reitor, cardeal Re, nem pelo secretário de Estado, Parolin, nem mesmo pelo Papa. Não houve nenhum documento de solidariedade, nenhuma iniciativa de oração para ele”.
Quem fala em entrevista ao Messaggero é o Cardeal Gerhard Muller, renomado teólogo e ex-prefeito da Congregação da Fé, curador da obra completa de Joseph Ratzinger.
A entrevista com o Cardeal Gerhard Muller é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero, 01-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O senhor acredita que Zen tenha sido abandonado à sua sorte por ser um personagem incômodo, já que ele defende os católicos chineses pertencentes à Igreja clandestina não alinhada com o Partido Comunista ou há algo mais por baixo?
Espero que não seja abandonado. O Consistório extraordinário teria sido uma oportunidade para declarar plena solidariedade a Zen por parte de todos os cardeais do Colégio.
E o que aconteceu em vez disso?
Nada mesmo. Obviamente, há razões políticas por parte da Santa Sé que impedem tais iniciativas. Refiro-me ao acordo para a renovação dos bispos recentemente assinado com o governo de Xi. Lamento dizê-lo, mas não podemos submeter os interesses da Santa Sé e do Estado do Vaticano à dimensão eclesial e à verdade.
Em que sentido?
Talvez a Igreja devesse ser mais livre e menos vinculada às lógicas de poder, mundanas, consequentemente mais livre para intervir e, se necessário, criticar aqueles políticos que acabam suprimindo os direitos humanos. Neste caso, pergunto-me porque não criticar Pequim. Zen é um símbolo e foi preso mediante um pretexto, não fez nada, é uma autoridade, corajosa e muito temida pelo governo. Ele tem mais de 80 anos e nós o deixamos sozinho.
O Vaticano renovou recentemente o acordo com a China para nomeações episcopais, talvez as apostas sejam um pouco altas e talvez seja melhor usar a diplomacia...
Se necessário, a Igreja também deveria criticar os poderosos deste mundo. E, além disso, o exemplo de Pio XII deveria ter-nos ensinado alguma coisa, a verdade nem sempre pode ser sacrificada.
O Papa Francisco poderia fazê-lo?
Espero que sim. O silêncio desse consistório sobre o caso Zen me causa temores. Um pouco como a questão de Putin. É claro que o nome do representante da Federação Russa não é pronunciado em público porque teme-se o efeito que poderia ter sobre a minoria católica na Rússia. Um padre alemão que mora na Sibéria explicou isso recentemente. Putin pode expulsar todos os católicos da noite para o dia ou criar dificuldades para eles. A situação não é fácil.
Melhor então o silêncio e talvez trabalhar nos bastidores, não lhe parece?
A verdade diante das perseguições deveria sempre ser destacada. Para Zen não foi feita sequer uma proposta de oração coletiva.
Desculpe-me, mas havia mais de 200 cardeais no consistório: eles não poderiam assumir autonomamente a iniciativa de um documento comum de solidariedade?
Não houve oportunidade, não se encaixa na tradição e talvez com esse clima interno ninguém se sinta disposto. Houve algumas trocas, isso sim, mas apenas entre alguns de nós. Infelizmente não conseguimos fazer mais nada porque havia os tempos ligados aos grupos de trabalho, o tempo disponível não era muito. E talvez estivessem todos empenhados demais tecendo louvores de uma constituição apostólica já em vigor e agora imutável, um texto que nunca foi submetido ao escrutínio do colégio cardinalício. Digo isso ironicamente, com uma ponta de amargura. É como se fôssemos tratados como alunos do primeiro semestre, como se precisássemos ser doutrinados, mas não quero criar polémicas.
Voltemos a Zen...
O receio de intervir num tema dessa natureza que tem a ver com as relações com a China é óbvio, na minha opinião. A situação com Pequim é complexa, as informações aqui chegam apenas parcialmente e, infelizmente, nem todas são boas e triunfais. A Igreja clandestina atualmente é perseguida em muitas áreas e se depara com bispos patrióticos mais obedientes ao estado ateu de Pequim do que ao Papa. O silêncio sobre Zen no consistório não gostaria que indicasse o fato de que este cardeal idoso seja consagrado, sacrificado no altar da razão de estado, para defender e levar adiante o acordo diplomático com Pequim. Eu entrevejo esse risco e sinto dor.
Poderia realmente ser sacrificado?
Infelizmente, essa dúvida está aumentando em mim. Além disso, não é a primeira vez na história da Igreja que cristãos exemplares são sacrificados. Às vezes, o cinismo da política prevalece sobre a liberdade que o Evangelho nos ensina. Seja, porém, o vosso falar: sim, sim, não, não.
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O cardeal Muller ao Papa: ”O Cardeal Zen será processado pela China, o Vaticano não pode sacrificá-lo à razão de Estado” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU