12 Mai 2022
De acordo com as previsões, se os Estados Unidos vencerem esta guerra, livrando-se de Putin e talvez até da Rússia, poderão se concentrar no jogo do século contra a China, privada do escudo russo, cercada por terra e por mar. Esse é o futuro que nos é apresentado, o que explica as posições que assumimos sobre a guerra até agora. Mas podemos aceitar isso?
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 11-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há necessidade de esperar pelo Apocalipse. O livro está se abrindo nestes dias, nestas horas. É a Otan quem diz: a guerra será longa. De fato, Jens Stoltenberg, que é o seu secretário-geral, declarou: “Os membros da Otan nunca aceitarão a anexação ilegal da Crimeia e o controle russo sobre partes da Ucrânia oriental” (ou seja, os dois territórios do Donbass).
O Corriere della Sera comentou: “O abraço muito caloroso dos aliados poderia acabar sendo embaraçoso para Zelensky”. Poucos dias antes, em 26 de abril, na base estadunidense de Ramstein, a convite dos Estados Unidos, os ministros da defesa de 40 Estados de todo o mundo (até a Nova Zelândia e a Austrália) haviam estipulado uma espécie de Santa Aliança (como Domenico Gallo a chamou) “para ajudar a Ucrânia a vencer a batalha contra a Rússia”.
Ainda antes, no início da guerra, Biden, ao anunciar sanções contra a Rússia como nunca antes vistas, havia lhe atribuído um futuro como “pária”, ou seja, de exclusão e de humilhação, como é a condição dos últimos em Índia, que são os últimos não só em sentido social, mas também metafísico.
Por sua vez, o inglês Johnson havia encorajado a Ucrânia a usar a inteligência e as armas estadunidenses, inglesas, polonesas, italianas e turcas da Otan para retorcer a guerra de Putin contra ele mesmo e atacar os russos nas profundezas do seu próprio território e, portanto, não mais apenas no mar.
Talvez justamente para fugir desse abraço mortal do zelo inglês, Zelensky, exausto pela ruína do seu povo, falando em um momento de lucidez, naturalmente pela televisão, ao público inglês através do Instituto Real Chatham House de Londres, havia levantado a disponibilidade de sair da guerra se os russos se retirassem para as suas posições além-fronteira do dia 23 de fevereiro, mesmo tendo que pagar por esse objetivo o custo da renúncia a reivindicar a Crimeia (que já entrou com o referendo sob a soberania russa) e de não falar do Donbass. Essa notícia era declarada falsa no Ocidente, embora sendo tão verdadeira a ponto de despertar a já mencionada reação de Stoltenberg. Este, colocando a Otan no meio, deixou claro quem era o verdadeiro senhor da guerra, dispondo da Ucrânia como se esta já pertencesse à Otan.
E a guerra, segundo o dirigente atlântico, poderia durar até “meses e anos”, até que Zelensky decidisse continuá-la. Desse modo, ele colocou o poder da paz e da guerra nas mãos do presidente ucraniano, ao mesmo momento em que lhe negava o direito de pôr fim ao conflito renunciando à Crimeia e talvez prometendo uma Ucrânia inofensiva não incluída na Otan.
A partir dessa rápida crônica, parece que o cenário estabelecido ou hipotetizado pelo Ocidente é o de uma guerra de longa duração. Mas não é um cenário improvisado. Como análise, ele já havia sido descrito um ano antes, em 12 de abril de 2021, em um artigo de Lucio Caracciolo, que assim havia ilustrado a programação em curso nos Estados Unidos visando a “liquidar a Rússia e isolar a China”: “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial – escrevera o diretor da Limes – os estadunidenses se encontram enfrentando duas grandes potências, a segunda e a terceira do planeta, em um jogo que já segue a lógica da guerra. Soma zero”.
Nesse esquema triangular, explicava ele, os Estados Unidos têm “uma opção que começa a circular em Washington. E que Biden está ilustrando aos sócios atlânticos e asiáticos, porque os Estados Unidos certamente não podem pô-la em prática sozinhos”. Para os “primos britânicos” e para os países bálticos e russófobos da Otan, assim como para os estadunidenses, essa opção significava “a desintegração da Rússia. No rastro do colapso soviético de 1991”.
Escrevendo sobre o andamento desses trabalhos, o artigo relatava depois que, no front do Mar Negro, os ucranianos estavam deslocando armas e tropas em direção ao Donbass, enquanto os russos estavam fazendo o mesmo na direção oposta e contrária.
“A tensão em torno da Crimeia, mas também na área de Odessa, está aumentando.” E acrescentava: “Por terra e/ou por mar, poderiam ocorrer ‘incidentes’ com efeitos imprevisíveis...”
"E a Rússia?", perguntava-se Caracciolo (diretor da importante revista italiana Limes - nota do IHU). “Não está sendo muito sutil. Se estivesse em apuros, Moscou estaria pronta para a guerra. Porque estaria em jogo a sua própria sobrevivência.” E concluía: “Os próximos meses nos dirão se essa crescente pressão estadunidense, via Otan, sobre a Rússia será contida ou se, talvez inadvertidamente, produzirá a faísca de um conflito com consequências imponderáveis.”
Agora, os meses que se passaram desde então nos deram a resposta. Mas, se Lucio Caracciolo sabia de todas essas coisas, é difícil que Putin também não as soubesse: isso explica a afirmação que ele fez em 9 de maio na Praça Vermelha de que “o perigo crescia a cada dia” e que, por isso, a Rússia havia praticado uma reação preventiva à agressão, “uma decisão forçada, oportuna e a única justa de um país soberano”. Uma decisão, porém, que foi um erro e um crime.
Tudo isso diz que a guerra será longa. Mas quão longa? Segundo a Limes, o futuro será um “caminho de tréguas interrompidas, certamente não de verdadeira paz”. Segundo o analista militar Nicola Cristadori, será uma guerra perpétua, porque “a guerra, a despeito de nós, é conatural ao ser humano, razão pela qual não podemos repousar nos prolongados períodos de paz”.
Heráclito também havia dito nos primórdios da nossa cultura que a guerra é “pai de todas as coisas, de todos os reis, e revela alguns como deuses, outros como homens”. Por essa razão, “the show must go on”, como canta o quarteto de rock do Queen, ou seja, o show deve continuar.
A guerra é esse show, não mais apenas guerra, mas warshow. Assim ela se tornou nas nossas telas de televisão e assim sempre será, exceto as guerras esquecidas e locais, até à última que, se for atômica, não poderá ser filmada por ninguém nem poderá ser interrompida pelas propagandas em alguma maratona ou talk show televisivo. Afinal, hoje toda a realidade, não apenas a guerra, se tornou espetáculo; spectaculum facti sumus, dissera São Paulo profeticamente.
Com o desfile do dia 9 de maio na Praça Vermelha, o espetáculo chegaria ao seu ápice. Durante semanas, ele havia sido anunciado como o evento do século, quando Putin exibiria a sua força, revelaria as suas miras sobre os países vizinhos, anunciaria a guerra mundial, ameaçaria a guerra atômica ou celebraria a conquista da Ucrânia e a vitória da sua guerra.
Mas algo estragou esse espetáculo, quase todos os nossos jornais o vaiaram, as manchetes de capa zombaram da “festa que não houve”, falaram de um Putin doente e derrotado, que havia abaixado a crista, que havia admitido as perdas, que havia dito não à guerra total, que havia excluído a guerra atômica.
De fato, Putin não tinha mostrado força, não tinha feito os aviões voarem; o desfile mais imponente foi o de um milhão de pessoas carregando milhões de fotografias dos mortos na Segunda Guerra Mundial, a “guerra patriótica” contra o nazismo que assim era celebrada.
E, para estragar a festa e interromper o show, Macron também entrou em cena, ao mandar dizer aos Estados Unidos: “Não estamos em guerra com a Rússia. Temos uma paz a ser construída com a Ucrânia e a Rússia ao redor da mesa, mas não será alcançada nem com a exclusão nem com a humilhação”, e acrescentou que a Europa é mais ampla do que a União Europeia, que não deve ceder aos revanchismos e às vinganças, que deve se tornar uma verdadeira comunidade política.
Portanto, a alternativa está posta sobre a mesa. A guerra hoje em curso começou com o desafio estadunidense à Rússia (o latido da Otan na sua fronteira, evocado também pelo papa) e continuou com a catastrófica e genocida resposta de Putin. Ela contempla um mundo sem a Rússia e contra a China.
De acordo com a previsão da Limes, “se os Estados Unidos vencerem esta semifinal livrando-se de Putin – talvez até da Rússia – poderão se concentrar na partida do século contra a China, privada do escudo russo, cercada por terra e por mar”.
Esse é o futuro que nos é apresentado, o que explica as posições que assumimos sobre a guerra até agora. Mas podemos aceitar isso? Podemos aceitar que a guerra ocorra não por um artifício da nossa cultura ainda tão primitiva, mas por uma necessidade da natureza? Podemos renunciar ao repúdio da guerra? Podemos nos adaptar a um mundo onde, como dizem os chineses, a Europa obedece ao impulso que a leva a querer apenas um vencedor definitivo e déspota do mundo inteiro? Podemos desejar um mundo sem a Rússia e em luta contra a China?
Se não o queremos, devemos nos inserir na brecha aberta por Macron, talvez também pela Alemanha de Scholz e de Merkel, e imaginar e lutar por um projeto alternativo. Essa é a tarefa que nos resta realizar.
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O próximo mundo vindouro. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU