19 Abril 2022
Risco global. Guerras mais ou menos conhecidas, de Moçambique à Etiópia, do México ao Iêmen, até o pesadelo do Afeganistão que voltou a mergulhar no obscurantismo com os Talibãs e nas crescentes tensões no Mar da China.
A reportagem é de Alberto Magnani, publicada por Il Sole 24 Ore, 17-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quase 4 mil vítimas, pelo menos 800 mil deslocados, execuções sumárias de civis. Parecem as notícias que chegam diariamente da Ucrânia, centro da escalada que fez com que a guerra retornasse nas fronteiras europeias. Só que estamos falando de Moçambique, o estado da África Austral castigado pelo aumento da violência jihadista na província setentrional de Cabo Delgado. As tensões que desgastam o país, um dos mais pobres do continente e do mundo, são um exemplo dos conflitos "esquecidos" que ocorrem paralelamente ao da Ucrânia: guerras propriamente ditas, desordens, violências contra civis perpetradas por milícias terroristas ou por forças de segurança estatais que deveriam contê-las.
Mapa de Moçambique, destaque para Cabo Delgado e Pemba. Fonte: Wikicommons
Não é fácil chegar a um levantamento global, mas as estimativas convergem na ordem das dezenas de guerras e crises militares em curso em 2022. O Council of Foreign Relations, think tank estadunidense, detecta pelo menos 27 crises em curso, limitando-se àqueles com um interesse mais ou menos incisivo na política externa dos EUA. Outros levantamentos empurram o total para mais que o dobro, falando de cerca de 60 conflitos ao redor do mundo. Com números arrepiantes sobre as vítimas: o banco de dados especializado da Acled registrou quase 151 mil apenas entre abril de 2021 e abril de 2022, dentro e fora do perímetro das “guerras” tradicionais. Eles vão do massacre da violência criminosa no México, com pelo menos 150 mil vítimas desde 2006, até a crise humanitária na Venezuela; das consequências do golpe de estado em Mianmar em 2021 à guerra civil que divide Camarões; da eclosão da violência no Sahel ao destino incerto do Afeganistão, abandonado a si mesmo após o retorno ao poder dos Talibãs.
Não é surpresa que as duas frentes mais quentes ainda sejam a África, especialmente na região subsaariana, e o Oriente Médio. A África testemunhou um crescendo ainda mais abrupto de instabilidade sob a Covid, a pandemia que interrompeu mais de duas décadas de crescimento e alimentou as crises latentes - ou já explodidas - em várias regiões do continente. Além do caso de Moçambique, preso entre a ascensão das milícias e a ineficácia da repressão estatal, o continente é disseminado por conflitos envolvendo gangues armadas, forças filiadas a redes islamistas ou exércitos regulares.
O epicentro é a região do Sahel, faixa que percorre as fronteiras ao sul do Saara, dominada pelo aumento da violência jihadista no triângulo entre Burkina Faso, Mali e Níger: ainda é a Acled a estimar 5.720 vítimas entre os três países somente em 2021, com mais de 3.000 "eventos violentos" que vão desde ataques a civis até distúrbios políticos. O rastro de tensões se expande na Somália com o destaque dos milicianos do al-Shabaab e na Nigéria com as violências ligadas - também - à rede islamista do Boko Haram, até conflitos internos como os que permeiam Camarões e Etiópia: o ex "milagre" do Chifre da África, precipitado pelo entusiasmo internacional numa guerra civil entre os defensores da independência do Tigray ao governo central de Abiy Ahmed, o Prêmio Nobel da Paz agora acusado de uma involução autocrática pela repressão do dissenso interno e da própria gestão do conflito.
A área em laranja abrange o território do Sahel (Mapa: stepmap.de)
A outra frente crítica continua sendo a do Oriente Médio. As hostilidades em curso vão desde a guerra no Iêmen, em seu sétimo ano em 2021, até a nova escalada de ataques no conflito entre Israel e Palestina, com um número crescente de vítimas nas últimas semanas e o medo de uma escalada ainda maior, até mesmo se estendo além das fronteiras com o Líbano. Mais a leste, enquanto isso, agrava-se a emergência que dominava as atenções até alguns meses atrás: a do Afeganistão, que voltou ao poder dos Talibãs com a queda de Cabul em agosto passado e a retirada dos Estados Unidos no mesmo mês. O país vive uma crise econômica e humanitária sem precedentes, com um PIB em queda livre superior a 30% em 2021 (estimativa do FMI), riscos de insegurança alimentar para quase um em cada dois cidadãos e o cenário, temido pelas Nações Unidas, de despencar na chamada pobreza universal: o equivalente a 97% da população obrigada a sobreviver com menos de um dólar estadunidense por dia.
E tudo isso enquanto o governo dos talibãs enfrenta ameaças internas, como os milicianos do ISIS, e as violências contra a população continuam num ritmo constante. O alvo são principalmente minorias étnicas e religiosas, mulheres e figuras ligadas ao governo anterior. A Acled registrou 290 ataques a civis apenas entre agosto e dezembro de 2021, custando a vida de 420 pessoas.
As tendências registradas em janeiro de 2022 sugerem que "os civis continuarão em alto risco de violência sob o novo regime talibã", declara uma pesquisa sobre o país assinada pelos analistas Asena Karacalti e Ashik KC.
Justamente 2022 corre o risco de reservar cenários ainda mais sombrios, ao lado ou como consequência da agressão de Moscou em Kiev. Em uma análise anterior à escalada militar da Rússia, a ONG International Crisis Group havia identificado os 10 conflitos mais insidiosos para 2022. O primeiro era justamente aquele na Ucrânia, seguido pela guerra civil na Etiópia, pelos desencolhimentos para o Afeganistão dos Talibãs, as relações turbulentas entre Estados Unidos e China, o "triângulo" conflituoso entre Irã, Estados Unidos e Israel, os confrontos entre Israel e Palestina, os tumultos no Haiti, o Mianmar após o golpe de 2021 e a insurgência islâmica na África, uma macrocategoria que inclui os movimentos das várias formações que se referem (ou exploram) a guerra de religião no continente.
Mapa do Afeganistão e países de fronteira. (Foto: Britannica)
A África pode ser uma das regiões mais afetadas pelas consequências da guerra na Ucrânia, exacerbando e multiplicando as frentes de tensão dentro dela. Luca Raineri, pesquisador da Scuola Sant'Anna em Pisa, identifica pelo menos quatro fatores de crise, desde os impactos econômicos até a proliferação de empreiteiras russas no continente. Enviados por Moscou nas "outras" guerras, as menos vistas. "Por um lado, existem os impactos econômicos da interrupção das importações de cereais e do aumento dos custos da energia", explica Raineri. "Do outro, o posicionamento de vários países africanos numa posição 'não pró-ocidental' no que diz respeito à guerra na Ucrânia e o crescimento da presença de mercenários russos, da Líbia ao Mali.”
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Não apenas a Ucrânia, 60 conflitos estão ocorrendo em todo o mundo com milhares de mortes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU