21 Dezembro 2021
"Se Faraó e Herodes interpretam o paradigma infalível de interpretação da realidade que nos rodeia – basta pensar no que acontece na rota dos Balcãs, na Bósnia, entre a Bielo-Rússia e a Polônia, nas periferias da Síria, na Mosul iraquiana, da Líbia ao Líbano - a criança representa o inesperado advento que novamente solicita a construção de uma Europa que não se feche sobre si mesma, mas se abra e acolha, ‘salva’, salvando-se assim; uma Europa que só se salva se salvar a vida das crianças e a vida humana", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 20-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Qual é o sabor da história que aconteceu em nossas costas? Vamos resumir primeiro, depois vamos tentar perceber seu sabor ou sabores, em nossas gargantas.
Aconteceu que, na tentativa de identificar os membros de um grupo de refugiados que desembarcaram em nossas costas, os operadores do Estado italiano descobriram uma criança - que se acredita tenha um ano ou talvez menos - que viajava ‘sozinha’. Na linguagem da burocracia, é um "menor desacompanhado". Muito menor. Como chegou a embarcar? Impossível, nessa idade! Muito menos nas docas da Líbia e à noite!
Muitas das histórias dos refugiados que estavam com ele no bote contam que os pais, impossibilitados pelos agentes líbios de embarcar, fizeram um esforço extremo: colocar a salvo a criança deixando-a sozinha no barco, antes de desistir. A reconstrução não é unânime, mas se trata disso.
Pode-se imaginar uma ação furtiva por parte de quem não pôde pagar aos traficantes. Ou um gesto de esperança contra toda esperança, o de colocar a salvo um bebê recém-nascido, entregando uma embarcação condenada ao naufrágio, entre pessoas desconhecidas: o gesto de quem ama um filho a ponto de não o manter para si num inferno pior que a morte; o gesto extremo que desafia a morte por uma última chance de viver como seres humanos.
Agora podemos cuidar do sabor do que aconteceu. O primeiro que atinge o paladar antes do pensamento é 'bíblico'. Todos nós nos lembramos da história de Moisés sendo salvo das águas do Nilo no tempo da escravidão do povo judeu. Quando o Faraó ordena que as crianças sejam mortas, Moisés é colocado na cesta de vime e deixado a flutuar no grande rio. A filha do Faraó o recolhe e o acolhe como um filho. Qual é o gosto na garganta da mãe que o confiou?
Outro sabor pode vir a seguir, de gosto evangélico. Lembramos de Herodes, que procura todos os meninos para matá-los, e José e Maria fogem carregando o pequeno Jesus, embrulhado e escondido. Em breve ouviremos a história desse resgate e dessa salvação. Qual é o gosto na garganta de Maria e José enquanto fogem?
Então, qual é o sabor em nossas gargantas em conhecer esta história totalmente contemporânea e totalmente 'verdadeira'?
Na minha garganta há também outro sabor, despertado pela figura de Eneias, que fugiu de Tróia em chamas, enquanto carrega nas costas seu velho pai, Anquise, e seu filho Ascânio. Dessa fuga viria o futuro: a história conta que foi fundada uma nova cidade, uma nova civilização.
A história - de sabor amargo - de hoje, a meu ver, contém claramente o sinal do possível naufrágio ou falência da nossa civilização, a mesma a que foram expostos, em prol do futuro de humanidade, Eneias, Moisés e, obviamente, Jesus. Ou o sinal da salvação.
Devemos agora nos perguntar profundamente sobre o resgate desta criança desconhecida! Quem o salvou? Nossas autoridades? Quem salvou quem? Outras crianças 'confiadas' podem ter morrido em naufrágios nesse ínterim, deixadas sem nomes e identidades, sem tentativas de socorro, deixadas naufragando no Grande Mar.
Este bebê não tem nome, não o conhecemos. Ele provavelmente ainda não sabe falar, devido à sua idade. Tiveram alguns relatos jornalísticos sobre sua história - não muitos, na verdade -, mas mais ou menos do tipo: "pobrezinho... sozinho, cruzou o Grande Mar!". Tudo bem. Mas por que não falar sobre seus pais? Eles sabiam dos enormes perigos da viagem. Eles sabiam que provavelmente o haviam colocado à beira do abismo da morte.
Mas eles também sabiam como teria sido a sua vida se não o fizessem, pelo menos tentassem. Conseguimos imaginar? Sentimos o gosto? Confiaram-no a pessoas desconhecidas que certamente fariam todo o possível para o levar para o outro lado do mar. Eles o confiaram à 'bondade' humana. Para eles - pais - além do mar havia e ainda há - aqui – a vida, algo ou alguém em que depositar esperança: uma boa civilização, uma boa humanidade. Eles estavam 'certos'? Seu bebê chegou são e salvo. Aqui pode crescer, pode viver. Devemos estar à altura da esperança que esses pais colocaram em nós e em nossa civilização! Seremos?
Há outra mensagem de 'salvação' que aquela criança nos trouxe. Nós sabemos - se quisermos saber - de onde veio e do que escapou. Ainda podemos ignorar e tolerar estar em um mundo onde - das portas de 'nossa casa' - os pais que esperam contra toda esperança colocam seus filhos recém-nascidos nos barcos para que eles ainda tenham uma possibilidade de vida?
Agora sinto prevalecer em mim um sabor, tornado mais doce pelo meu desejo: o de uma nova Eneida e um novo anúncio do menino Jesus, juntos. Se Faraó e Herodes interpretam o paradigma infalível de interpretação da realidade que nos rodeia – basta pensar no que acontece na rota dos Balcãs, na Bósnia, entre a Bielo-Rússia e a Polônia, nas periferias da Síria, na Mosul iraquiana, da Líbia ao Líbano - a criança representa o inesperado advento que novamente solicita a construção de uma Europa que não se feche sobre si mesma, mas se abra e acolha, ‘salva’, salvando-se assim; uma Europa que só se salva se salvar a vida das crianças e a vida humana.
E o que disse o Papa Francisco dias antes desse incrível acontecimento em Lesbos. Infelizmente, parece-me que poucos o tenham ouvido e compreendido bem. Nem mesmo no Natal. Mesmo assim, continuo a desejar.
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Uma criança sozinha no bote - Instituto Humanitas Unisinos - IHU